Este texto de opinião é sobre o aborto voluntário. O direto ao aborto é uma questão de autonomia que está constantemente a ser posta em causa. Não me refiro aos abortos por má formação fetal ou em caso de violação, mas às interrupções voluntárias da gravidez desejadas pelos mais diversos motivos.
Um terço dos hospitais em Portugal são objetores de consciência — não realizam interrupção voluntária da gravidez, vulgo aborto, daqui em diante identificada também como “IVG”. No entanto, este artigo não se debruçará sobre a lei do aborto em si, devidamente relatada no artigo de Carolina Monteiro – Mestranda em Medicina, pós-graduada em Sexualidade Humana – sobre a implementação da Lei do Aborto. Além disso, esta crónica não menospreza, de todo, todas as mulheres que anseiam por ser mães e não conseguem, que têm abortos espontâneos de fetos queridos, nem pais e mães que procuram adoptar crianças.
Um pouco de contexto
Antes de 1984, qualquer tipo de aborto, independentemente do contexto, era proibido em Portugal. Como refere Carolina Monteiro, com as devidas fontes, “Nesta altura, ocorriam entre 100 mil e 200 mil abortos clandestinos por ano, dos quais 2% terminaram na morte de mulheres. A primeira lei sobre a sua licitude apenas incluía alguns casos: perigo de vida física e psíquica para a mulher, por violação e/ou malformação do feto. Embora tenha sido um primeiro passo para a lei atual, as suas condições restritas levaram a que 98% dos abortos ocorressem na clandestinidade.”
Por muito que já tenham passado 39 anos desde o primeiro passo em direção à descriminalização do aborto e 16 anos desde o último referendo em que ganhou o “sim”, o pudor em relação ao aborto continua em alta. Este é um dos direitos humanos de autonomia mais postos em causa na política, não tivesse recentemente acontecido a revogação desse mesmo direito nos EUA. Mesmo a nível nacional, com o ressurgimento de partidos de direita extremamente conservadores, vemos a bandeira antiaborto tida como “pró-vida” a ser hasteada mais uma vez.
Ser a favor da legalização do aborto não quer dizer que queira abortar
Uma pessoa que é a favor da legalização da IVG não é uma pessoa que necessariamente queira abortar se engravidar, são questões independentes. Eu posso nunca querer abortar voluntariamente na vida, mas ser a favor de que haja essa escolha com segurança para quem o quiser fazer. Até porque, antes da legalização (e mesmo agora, quando há a impossibilidade de obter a IVG por algum motivo) as mulheres punham a vida em risco, e até morriam, ao fazer abortos caseiros ou em clínicas clandestinas, contraindo infecções graves, fazendo perfurações do útero, tendo dor extrema, tudo isto sem nenhum apoio.
A mulher que decide abortar
Nenhuma mulher anseia por um dia ter de fazer uma IVG. Nenhuma. Nenhuma adora passar pelo processo, seja com medicamentos ou intervenção cirúrgica. Não é um processo fácil para o corpo: é doloroso, física e psicologicamente, com a agravante de termos a sociedade, e até alguns profissionais de saúde, a incutir culpa na mulher. A mulher que quer uma IVG, simplesmente não quer estar grávida e não quer ser mãe, pelo menos naquela fase da sua vida.
Até recentemente, praticamente nenhuma mulher que tivesse passado por uma IVG o admitiria. Felizmente, hoje as coisas começaram a mudar. Conheço várias mulheres que o fizeram e falam abertamente sobre isso. Algumas são agora mães, porque quiseram, porque já têm condições económicas e emocionais para isso. Uma das vozes públicas que fala abertamente sobre a sua IVG é a atriz Jameela Jamil.
Importa, então, combater o estereótipo de que as mulheres que decidem abortar são as irresponsáveis que não querem saber das consequências da sua “promiscuidade”, que usam “o aborto como método contraceptivo” – expressão errónea, porque já houve concepção, e típico de quem não sabe o que uma IVG acarreta física e psicologicamente. Neste processo de julgamento, raramente se põe em causa o homem que libertou o espermatozóide que fecundou o óvulo. Como piada, até se pode dizer que o óvulo estava lá descansadinho, um paz de alma, na maior parte das vezes sozinho, quando de repente chega um batalhão de espermatozóides, como se fosse a meta de um sprint de 100 metros.
As mulheres que decidem fazer uma IVG não são somente as “irresponsáveis”. Aliás, já basta de se colocar a responsabilidade contracepcional sempre para cima da mulher… E mesmo que seja uma adolescente que não usou qualquer tipo de contraceptivo, está no seu direito de fazer uma IVG e não merece julgamento, merece apoio e informação. Não só ela, como o rapaz. Se é para chamar de irresponsável, chamem aos dois. Além disso, qualquer método contraceptivo pode falhar. Qualquer um. Não obstante, o relatório de 2018 relativo às IVGs mostra que o grupo etário dos 15 aos 19 anos representa 9,28% das IVGs, próximo do grupo dos 40 aos 44 anos, com 8,24%.
Este retrato estereotipado de irresponsabilidade, para além de problemático, como vimos, é erróneo. Não há uma caracterização única das pessoas que procuram IVGs:
- Mulheres que sabem que se continuarem a gravidez vão ter de ser mães solteiras e não têm nem condições económicas, nem sociais, nem uma rede de apoio;
- Pessoas que para continuarem com a gravidez têm de parar medicação que lhes dá qualidade de vida;
- Mulheres que já têm muitos filhos e não têm como suportar mais ou simplesmente não querem mais;
- Pessoas que sabem que não têm, pelo menos de momento, estabilidade emocional para continuarem como a gravidez;
- Situações em que o companheiro que não usou preservativo ou que o tirou sem ela reparar a meio da relação sexual (este último ato é chamado de “stealthing”, e é considerado uma violação);
- Casais que usaram preservativo e houve uma fuga sem que tivessem reparado;
- Mulheres que tomaram a pílula contraceptiva de emergência, mas não resultou por algum motivo, como aconteceu com Jameela Jamil. (A atriz contou que, apenas seis horas depois da relação sexual em que o preservativo rompeu, ela tomou a pílula. O/A farmacêutico/a não a avisou que a pílula poderia perder eficácia quando a pessoa que a toma tem peso acima de certo valor. Conclusão: ela fez tudo bem e engravidou na mesma, dado o seu peso na altura.)
Por último, o único motivo que é preciso para se fazer uma IVG é a pessoa que está grávida não querer estar grávida. O argumento de “não quer a criança que a tenha e a dê para adoção”, não tem em consideração, de todo, as implicações da gravidez no corpo de uma mulher. Esse chamado “estado de graça” só o é para quem pode e para quem o quer. Querer uma IVG não é só sobre não querer ser mãe, é sobre não querer, ou até não ter condições, para se estar grávida. Não falo só das questões físicas durante a gravidez – alterações hormonais, desconforto, problemas dentários, necessidade de suplementos, consultas, e todos os gastos e apoio necessário que isto acarreta –, mas também do custoso pós-parto ainda pouco falado graças ao embelezamento do processo da gravidez e da maternidade como um mundo encantado e maravilhoso (quando é desejada, pode ter tanto de maravilhoso como de desgastante). Imaginem, agora, passar por tudo isto quando não se quer estar grávida ou ser mãe.
Além disso, está provado cientificamente que o feto não sente dor antes das 20 semanas. Sendo que em Portugal é possível fazer IVG até às 10 – no resto da União Europeia são 12 semanas – não há risco de dor para o feto.
Educação Sexual e o peso da contraceção que as mulheres acarretam
É preciso, sem dúvida, aumentar a literacia corporal e sexual de toda a população, de todas as idades, sem pudor, e normalizar o direito a impor limites sobre o seu próprio corpo.
Desta forma, é indispensável a existência de Educação Sexual e a sua centralização no prazer e consentimento, para além da proteção. Mostrar como funciona o corpo humano, ser-se inclusiva em termos de sexualidade e falar de todos os métodos contraceptivos e de como, e em que contexto, os utilizar devidamente.
Atualmente, existem 20 métodos contraceptivos disponíveis ao público, sendo que apenas o preservativo protege as pessoas envolvidas de Infeções Sexuais Transmissíveis. Deve ser utilizado mesmo quando a relação sexual não acarreta risco de gravidez.
Acima de tudo, qualquer método é falível, especialmente se for mal utilizado. Por isso, a única forma de conseguir que não haja mesmo possibilidades de gravidezes indesejadas seria pregar e praticar o celibato. Como é que isto seria viável? Não sejamos inocentes. Tal seria contrariar a natureza do corpo humano, para além de ser nocivo para a saúde mental, atribuindo culpa ao ato natural sexual.
É relevante deixar a nota de que uma das coisas mais irónicas quanto ao desejo de alguns partidos de proibir educação sexual nas escolas, por a considerarem promíscua, é que esses mesmos partidos são contra o aborto voluntário. Se as pessoas não souberem devidamente como funcionam os métodos contraceptivos, como vão evitar gravidezes indesejadas?
A pílula que não é só do dia seguinte
Ao contrário do que muita gente pensa, a pílula “do dia seguinte” não é abortiva: se a fecundação já tiver acontecido, não provoca o aborto. Por esta razão, quando mais cedo for tomada após a relação sexual desprotegida, maior a sua eficácia.
Mesmo assim, há a ideia errada, até pelo nome que comumente lhe é atribuído, de que só é possível tomar no dia seguinte para ser eficaz. Como se pode ler no site do SNS24, a pílula “deve ser tomada dentro das 72 horas após as relações desprotegidas e no máximo até ao 5º. dia, sendo que quanto mais cedo for tomada, maior a sua eficácia”.
Se forem comprar a pílula de contracepção de emergência – nome mais correto – façam as vossas perguntas à/ao farmacêutica/o sem pudor. Se vos calhar um/a funcionário/a que vos está nitidamente a julgar – aconteceu-me há uns anos –, o meu conselho é que vão a outra farmácia. “Não estou confortável com a sua postura. Vou a outra farmácia, com licença.” O preconceito que alguém tem sobre ti nunca é culpa tua.
Continua a haver, muitas vezes, o receio de tomar esta pílula por ser uma “bomba”. Como já disse Patrícia Lemos, é preciso ter cuidado nesta associação de contracepção de emergência a “bomba” porque é menos “bomba” para o corpo uma pílula de contraceção de emergência do que uma IVG.
O lado do homem que não tem poder
É natural que possa haver um sentimento de impotência por parte do homem que não pode decidir sobre a continuação ou não de uma gravidez da qual também ele foi responsável. Mesmo assim, o útero não é dele, a decisão não pode ser dele. O que pode fazer é apoiar a mulher que decidiu continuar ou não com a gravidez.
Ora, na eventualidade do homem querer ser pai, não pode obrigar alguém que não o quer fazer a passar pelo processo moroso da gravidez e do consequente pós-parto. Por outro lado, se não quer ser pai, pelo menos agora, e vai ser, o que acarreta preocupações emocionais e monetárias, compreendo que possa ser muito desafiante. Mesmo assim, o útero não é dele, a decisão não é dele.
Aproveito este último caso como um argumento para impulsionarem, finalmente, a comercialização de uma pílula hormonal contraceptiva para pessoas com pénis. As investigações existem.
Notas finais
Mesmo sendo legal realizar uma IVG em Portugal, continua a haver imenso pudor a falar no assunto e uma culpa quase automaticamente associada, impulsionada quer por parte da sociedade, quer por muitos profissionais de saúde. Este entrave meio encoberto em relação às IVGs é ainda apoiado pela falta de apoio psicológico após IVG.
O direito ao aborto é uma questão de autonomia e de consentimento, de a mulher fazer o que quer com o seu corpo e com a sua vida, com segurança. Porque, quem quer abortar, vai abortar. A legalização permite que quem o faz, o faça com segurança, preservando a sua vida.
É literalmente desumano querer obrigar alguém a ser mãe.
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Ligações relevantes:
Lista atualizada de Estabelecimentos em Portugal públicos oficiais onde se pode realizar IVG.
Leis do aborto pelo mundo.
Métodos contraceptivos disponíveis.
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