Palavra de ordem: rentrée. Para haver equivalente português bastaria dizer ‘regresso’, ‘recomeço’ ou ‘reabertura’. Mas este é um dos casos em que o cidadão bem-falante opta pelo termo que oferece à flacidez depressiva de fim de férias um impulso fortificante e vitamínico, uma espécie de férias linguísticas no final das férias físicas. Ao usarmos ‘rentrée’ até parece que vamos para fora, fica bem, surfa-se a onda. Leva-se com mais do mesmo embora diferente, pleno do sentido das novas experiências, ainda que se trate de uma traslação, igual à anterior e à anterior da anterior, e provavelmente igual à que se verificará daqui a um ano.
No campo dos livros, rentrée significa o desvendar do que há muitos meses vem sendo preparado, escrito, traduzido, planeado, desenhado, prefaciado e impresso. E é sempre – sempre – uma avalanche literária no meio da qual é preciso abrir caminho. As novidades deste ano não se esgotam numa crónica, mas entre os livros recebidos há alguns que apetece manusear. É o caso de “A Guerra Guardada”, fotografias de soldados portugueses em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique de 1961 a 1974, livro acartonado editado pela Tinta-da-China, com coordenação de Maria José Lobo Antunes e de Inês Ponte, sobre um lado oculto da guerra colonial. Incluindo textos de várias autorias, o volume teve arranque na exposição homónima, no Museu do Aljube, entre janeiro e abril de 2022, que integrava 40 coleções privadas de soldados e respondia à pergunta: “que guerra foi guardada durante décadas por aqueles que nela combateram?”
O que se percorre nestas páginas é uma tentativa de compilação de todo esse manancial fotográfico engavetado. Por vezes, vemos também o que se escreveu por trás das imagens, as dedicatórias, as graças, as saudades. Os mergulhos no Índico, os retratos individuais e em grupo, os locais, os instantâneos de um quotidiano árido e de tronco nu. E depois, a análise do material, o reconhecimento de que, como dizem as coordenadoras do livro - antropólogas a arriscarem-se no território dos historiadores - “a guerra não terminou com o fim dos confrontos que opuseram o regime do Estado Novo aos movimentos de libertação. Ela continua a existir, ainda hoje, nas investigações, criações e produções culturais que revisitam a sua história e os legados contemporâneos”. Como se naturalizou o império colonial na televisão, como ainda hoje atuam os seus fantasmas – entre o esquecimento e a recordação -, quem lutava e quem não, e que guerra travavam aqueles que desertavam são algumas das temáticas presentes nos textos. Dois anexos gráficos e destacáveis fazem parte do projeto, com tocantes trabalhos plásticos de Ana Vidigal e Lino Damião.
Por vezes, há coincidências felizes. Por exemplo, a saída concomitante de “Banho de Sangue Americano”, o último ensaio de Paul Auster antes da sua morte em abril deste ano, pela ASA. Trata-se de um texto descrevendo uma outra guerra, aquela em que a sociedade americana está mergulhada a um nível quotidiano e transversal – a da posse, a idolatria e o uso de armas de fogo. “Todos os anos, aproximadamente quarenta mil americanos morrem devido a ferimentos de bala, o que é mais ou menos equivalente à taxa anual de mortes em desastres nas estradas e autoestradas da América. Dessas quarenta mil mortes a tiro, mais de metade são suicídios (...). Adicionem-se os assassínios por armas de fogo, as mortes por acidentes causados por armas de fogo, as mortes causadas por armas das forças policiais, e a média que resulta é de mais de cem americanos mortos por balas a cada dia que passa. Nesse mesmo dia que passa, há mais de duzentos feridos por armas de fogo, o que se traduz em oitenta mil por ano. Oitenta mil feridos e quarenta mil mortos, ou seja, cento e vinte mil chamadas de ambulâncias e recursos às urgências por cada doze meses”, lemos no fragmento destacado na capa.
Com fotografias de Spencer Ostrander – imagens a preto e branco dos cenários dos massacres, que Auster diz serem “fotografias do silêncio” -, o livro propõe uma incursão autobiográfica que desemboca na análise do fenómeno das armas nos EUA. “Os americanos são vinte e cinco vezes mais atreitos a levar um tiro do que os habitantes de outros países ricos e ditos avançados”, escreve Paul Auster afinando o tom, notando: “A diferença é tão grande, tão impressionante, tão desproporcionada em relação ao que se passa noutros lugares, que temos de perguntar porque será. Porque é que a América é tão diferente – e o que nos torna o país mais violento do mundo ocidental?” Porém, não são os factos que respondem à circunstância de tanto derramamento de sangue não exigir “uma ação nacional, um esforço concertado” por parte das autoridades e dos dirigentes do país. O que parece haver é “um direito inato à violência”, além de “um país dividido ao meio desde que nasceu, não apenas entre brancos e negros ou colonos e índios, mas entre brancos e brancos também, pois a América é a primeira nação do mundo a ter sido fundada na base dos princípios do capitalismo, que é um sistema económico propulsionado pela concorrência e, por conseguinte, pelo conflito”.
Atente-se ao quadro esboçado por Colson Whitehead em “Tratado de Vigaristas”, agora lançado pela Alfaguara. O vencedor de dois Pulitzer publica o segundo volume da “trilogia de Harlem”, que começou em 2021, regressando ao mesmo cenário ficcional numa Nova Iorque dos anos 1970, decadente, suja e violenta, mas não impermeável ao humor. Tal combinação assume-se como esqueleto de um livro, comovente e divertido, com um rol de personagens que só um grande autor é capaz de esboçar. De resto, a personagem principal é, como no livro anterior, a própria cidade, bela entre escombros, perfumada entre o lixo, boa entre os maus, da qual todos se ressentem amando-a ao ponto de a preferir com os seus milenares - “como a rocha milenar sob Manhattan” - defeitos. Por vezes, há que espreitar como um livro acaba para lhe sentir o pulso: “A cidade recuperara, eles tinham sobrevivido, o futuro chegara e parecia uma merda. A vizinhança queixava-se. Diziam que a cidade não era a mesma, preferíamos como era dantes. Era o que diziam de cada vez que a velha cidade desaparecia e uma nova lhe ocupava o lugar.”
Em 2021, à “Esquire”, Whitehead falou assim sobre a personagem de Carney, central também no novo livro: “Ele não gostaria de viver na casa onde cresceu. Não quer ser um criminoso. Não quer viver como o pai, que era um ladrãozeco. Ele quer uma mulher e filhos e todos os pormenores da classe média que lhe foram negados. Mas ele é quem é. Para mim, isso é muito interessante e dinâmico: seguir quem se quer ser versus quem se é de facto. Eventualmente, os seus olhos abrem-se para a forma como as coisas funcionam no Harlem e na cidade. Toda a gente é corrupta. Toda a gente troca envelopes. Passa-se por todas estas montras todos os dias e não se sabe que há um jogo de dados nas traseiras. Toda a gente cozinha, exceto a mulher e os filhos. Então, porque não? Há tantos graus diferentes de quão mau se pode ser.”
Carney reincidiu, Colson reincide. A América reincide e renova-se, sem contradição. Reincidamos nós também nas novas leituras que se avizinham.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“Triste Tigre”, de Neige Sinno (Presença)
“Este é o livro mais poderoso e profundo que alguma vez li sobre uma criança devastada por um adulto. Todos devem lê-lo. É um grande acontecimento literário”, disse a Nobel francesa Annie Ernaux sobre este romance vencedor, entre outros, do Femina e do Goncourt, escrito por uma francesa que reside no México.
“A Forasteira”, de Olga Merino (Quetzal)
História de uma reclusão no interior de uma Espanha rural e desertificada, que o “El País” define como “uma emocionante viagem às origens e segredos do passado”, por uma autora nascida em Barcelona que, em 2022, ganhou o Prémio de Criação Literária da Real Academia Espanhola.
“Revolução”, de Arturo Pérez-Reverte (ASA)
Do escritor prolífico de Cartagena e grande admirador de Joseph Conrad, chega-nos mais um grande romance que começa assim: “Esta é a história de um homem, de uma revolução e de um tesouro. A revolução foi a do México, no tempo de Emiliano Zapata e Francisco Villa. O tesouro foram quinze mil moedas de ouro de vinte pesos das chamadas ‘maximilianos’, roubadas num banco de Ciudad Juárez, a 8 de maio de 1911. O homem chamava-se Martín Garret Ortiz, e tudo começou para ele na manhã desse mesmo dia, quando ouviu um disparo distante.”
“A Selva Dentro de Casa”, de Possidónio Cachapa (D. Quixote)
De pendor autobiográfico, uma criança conta a história de um jovem enviado para a guerra em África. “Este livro é dedicado a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto-e-branco, e que nunca pediram para ver”, lemos.
“Noite Sem Lua”, de John Steinbeck (Livros do Brasil)
Mais um romance do autor de “As Vinhas da Ira” e Nobel da literatura em 1962. “Às 10 e 45 estava tudo acabado. A cidade estava ocupada, os defensores derrotados e a guerra terminada.” Ou de como começar magistralmente um livro.
NÃO-FICÇÃO
“A Língua dos Filhos”, de Clara Rowland (Tinta-da-China)
Conjunto de ensaios sobre como a literatura se move – contemporiza, opõe, resiste, aspira - de geração em geração, por uma académica do departamento de Estudos Portugueses da FCSH, da Universidade de Lisboa. “A língua dos filhos interroga ou questiona a autoridade no seio da família ou na própria ideia de literatura.” Três capítulos edificam o livro - “Nome”, “Filiação” e “Morada”.
“Mundo Material”, de Ed Conway (Temas e Debates)
Livro de Ciência do Ano para o “The Times”, este é um livro que nos explica de que modo materiais como a areia, o sal, o cobre, o petróleo e o lítio “criaram impérios, arrasaram civilizações e alimentaram o nosso engenho e a nossa ganância durante milénios”, e como “a batalha pelo seu controlo determinará o nosso futuro”.
“O Princípio de Peter”, de Laurence J. Peter e Raymond Hull (Gradiva)
Bestseller do “The New York Times” há mais de duas décadas, este livro escrito em 1969 é um clássico sobre a gestão, aqui reeditado com prefácio de Robert I. Sutton, que nos diz: “O Dr. Peter observou que uma das razões pelas quais tantos funcionários são incompetentes é a circunstância de as aptidões requeridas para conseguir um emprego não terem muitas vezes nada a ver com aquilo que se exige para exercer o trabalho em si. (...) As aptidões necessárias para dirigir uma grande campanha política pouco têm a ver com as exigíveis para governar.”
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