Olá, bom dia.
À medida que nos aproximamos da eleição mais decisiva da história recente do ocidente, a esquerda americana continua a ficar pasmada com certas perceções republicanas do povo que - em teoria - deveria votar no Partido Democrata. Por exemplo, os "liberais" não percebem porque é que as minorias étnicas – hispânicos, asiáticos e até negros – votam cada vez mais em Trump. Se o sistema e o próprio Trump são racistas, como diz a teoria woke, porque é que as minorias votam em Trump? Sucede que essas minorias não são blocos, não são monólitos fechados em caixinhas, ao contrário do que pensa a esquerda woke.
Esta facção dominante da esquerda – liderada por brancos privilegiados – diz que está a proteger “os negros” e, por arrasto, fecha todos os negros numa caixinha étnica. Como diz a ativista negra Nicole Avant, isso implica negar o individualismo aos negros. Um negro não é só um negro, é também alguém de uma classe social ou de uma religião. Há negros mais conservadores e outros mais progressistas, tal como sucede nas comunidades brancas. O indivíduo vem antes do grupo, não o contrário. E é um pouco estranho que a esquerda liberal americana tenha esquecido isto. Como salienta outro intelectual negro americano, John McWhorter, o wokismo das elites yankees é tão paternalista ou mesmo racista como o velho supremacismo branco sulista. E cada vez mais negros estão em revolta contra esta paternalismo. Não é por acaso que uma maioria de negros concordou com o fim da affirmative action.
Ou seja, é preciso ver as pessoas para lá da cor da pele. Há outras variáveis, a ideologia, a religião, a classe social. Há comunidades negras evangélicas muito conservadoras que estão assustadas com a vaga de radicalismo progressista que veem do lado democrata. Por outro lado, sendo mais pobres e mais ligados aos empregos braçais, muitos negros sentem que fazem parte de uma classe social (“working men”) e, como tal, apreciam o protecionismo do novo partido republicano, que roubou a velha agenda da esquerda: não quer comércio livre porque isso deslocaliza fábricas, não quer imigração porque isso baixa o salário ou a jorna. Em resultado, o voto negro em Trump pode passar de 3% para 23% - um absoluto terramoto que ainda não entrou nas narrativas.
E vale a pena continuar.
I. FACTO DO CONTRA
Tiroteios: a polícia não é racista
Uma das narrativas mais poderosas dos últimos anos é o BlackLivesMatter e o “defund the police”, isto é, a ideia de que a polícia é uma forma horrível e racista no coração da América. Já aqui fiz menção ao desastre – para o Partido Democrata – que é a ideia do “defund the police”. A esmagadora maioria dos negros não concorda com isso. Pode concordar com a ideia de que há racismo na América, mas não concorda com essa diabolização da polícia e sabe que, sem polícia, o crime sobe de imediato. Mas há mais: será que a polícia é mesmo racista nos tiroteios? Roland Fryer provou que não. Repare-se que Fryer tinha tudo para acreditar na narrativa conveniente: é negro, vem de uma família pobre do gueto, foi revistado inúmeras vezes pela polícia, a sua família foi presa devido ao clássico ciclo de violência e droga. Enquanto investigador académico, ele queria acreditar que a polícia era mesmo racista no uso de força letal (tiroteio). Mas sucede que descobriu que a realidade é diferente. Neste extenso trabalho de campo, Fryer percebeu duas coisas: a polícia tem um bias contra negros quando se trata do uso não letal de violência (ou seja, stop and frisk); mas não existe bias ou racismo quando se trata do uso letal de violência (arma de fogo).
Numa famosa conversa com Bari Weiss, Fryer contou um pormenor decisivo dos bastidores do estudo: ele andou no terreno com os polícias; e colocou oito investigadores no terreno. Quando a primeira vaga de resultados chegou, Fryer não quis acreditar e, por isso, contratou oito novos investigadores para uma segunda investigação. Os resultados foram os mesmos: não, não há racismo no uso letal de violência. Portanto, a narrativa escolhida pelos mass media – que isolam imagens de tiroteios isoladas aqui e ali – produz uma distorção da realidade.
Há dois factos que não se explicam. 13% da população (negros) entra em 50% dos tiroteios. Isto é um facto, não é uma opinião. E este facto não se explica pelo alegado racismo da polícia. A polícia está a jusante e lida com problemas já na foz; a montante, há com certeza muitas razões que explicam esta desproporção de negros nos casos de violência letal. Há razões exteriores ao indivíduo negro (racismo, pobreza), mas também há razões que partem do indivíduo negro ou da cultura mainstream negra. Por exemplo, há alguma manifestação cultural tão machista e tão devota da violência como o hip hop mainstream que temos tido? E Roland Fryer tem aqui de novo um dado empírico relevante e pouco debatido. Porque é que os miúdos negros (sobretudo os rapazes) têm sistematicamente piores resultados escolares do que todos os outros, mesmo de outras minorias pobres? Pegando na sua experiência pessoal e sobretudo num extenso trabalho de campo, Fryer percebeu uma coisa: se um rapaz negro estudar a sério, passa a ser visto no grupo como alguém que está a “tentar ser branco”, e isso tem uma enorme penalização social; esse rapaz é visto como um traidor ou pária. Os estudos e os livros são vistos como algo pouco másculo e pouco negro. Em consequência, os resultados escolares de quem vive nesta cultura não podem ser brilhantes em média. No entanto, convém dizer que não há aqui nada de específico; é um padrão universal. Esta automutilação do negro americano – através da recusa dos estudos - é igual àquela que ocorre na velha classe trabalhadora na Europa. Podem encontrar isso na autobiografia de Didier Eribon, nos romances de Ferrante ou de Edouard Louis. Eu tentei fazer o mesmo no meu romance “As Três Mortes de Lucas Andrade”, isto é, tentei dizer - entre outras coisas - que a tal masculinidade tóxica, seja num negro ou num branco - condena as pessoas à pobreza.
II. CONTADO NÃO SE ACREDITA
Os reis do plástico
Se querem mesmo mudar o mundo e ter uma ação ecológica precisa e concreta, os jovens da Climaximo podiam deixar essa mania de atirar tinta a quadros e pessoas e, em vez disso, podiam ir até às Filipinas ou Tailândia ou Vietname ou Cambodja. Não, não estou a pedir-lhes que façam os retiros espirituais da moda nestes países asiáticos. Estou a dizer outra coisa: se querem mesmo limpar a terra, a começar no oceano, é para esses países que devem ir, porque o plástico que acaba no mar vem sobretudo destes países. Eu não acreditei à primeira, de facto. No top dez dos maiores poluidores ao nível do plástico no mar, encontramos as Filipinas, a Malásia,a Índia, a Indonésia, a China, o Vietname e a Tailândia. O resto do mundo é insignificante ao pé destes países neste item. Porque é que os jovens não fazem voluntariado nas ONGs que limpam rios e praias nestes países? Porque não fazem protestos à porta das embaixadas destes países? Também podem tentar argumentar que o ocidente exporta parte do seu lixo para estes países. Nesse sentido, podiam fazer protestos cirúrgicos e bem pensados que despertassem as pessoas comuns para essa transferência de lixo e de responsabilidade.
III. FACTO ESCONDIDO
A imigração ou tráfico de seres humanos?
Quando vejo dados e reportagens sobre esta nova vaga de imigração asiática (ou quando a vejo ao vivo), fico sempre com esta dúvida: é imigração ou é tráfico de seres humanos? É por isso que destaco no Expresso desta semana esta peça de Hugo Franco.
IV. A LENTE DA ARTE
O estado de direito popular (não populista)
Muitos pensavam que a seleção dos jurados para o julgamento de Trump iria demorar uma eternidade. Na verdade, só durou três dias devido ao evidente compromisso dos americanos com este lado do seu patriotismo cívico: servir no júri do tribunal. O que me fez lembrar um dos grandes filmes americanos dos anos 50, “Twelve Angry Men” (1957), de Sidney Lumet e com Henry Fonda. Conta a história desses heróis discretos, os jurados, os cidadãos que participam no processo legal e no julgamento de um concidadão. A personagem de Fonda começa numa posição isolada, 1 para 11; todos os outros acham que o réu – um rapaz hispânico – é obviamente culpado. Através de um espírito factual, Fonda vai desmontando as perceções erradas dos colegas e acaba por provar que o rapaz está inocente. E faz isto apenas e só porque é o seu dever cívico. No final, sai do tribunal incógnito e vai à sua vida – um herói discreto.
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