“Tempos Modernos”, filme de Chaplin de 1936, criticava como os trabalhadores eram tratados. Mas podia aplicar-se hoje à reforma em Portugal
FOTO D.R.
Política: a medida que permite acumular salário com a reforma só voltará a ser negociada na próxima legislatura. Aprovada em Conselho de Ministros mas fora do OE, fica assim no papel a possibilidade de uma passagem mais suave para a vida não laboral
Travar a fundo. A imagem serve para ilustrar o que é a passagem à reforma em Portugal. Dentro do carro estão quatro pessoas com 66 anos e quatro meses, obrigadas a abrir as portas, deixar a viatura na berma da estrada e voltar para casa. No último Conselho de Ministros liderado por António Costa foi aprovada a resolução que estabelece o Plano de Ação de Envelhecimento Ativo e Saudável 2023-2026 (PAES), que inclui um acordo de rendimentos que permitirá aos trabalhadores mais velhos acumularem o salário com a reforma parcial. Mas isto só depois de março. Por agora, é deixar o carro na berma e voltar para casa.
“Trata-se de uma medida legislativa que o Governo não tem neste momento capacidade para efetuar”, afirma ao Expresso a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. A ideia, diz Ana Mendes Godinho, “é permitir uma passagem mais suave entre o mercado de trabalho e a reforma”. “Sendo feita de forma progressiva, possibilita que o trabalhador mantenha o seu contrato de trabalho a tempo parcial, acumulando assim os seus rendimentos com uma parte da reforma. Promove ainda a passagem de testemunho aos trabalhadores mais novos, com maior transmissão de conhecimento.” Sem especificar o modo de implementação, a ministra lembra que terá “sempre de ser negociada em sede de concertação social”. “Consta do acordo de reforço de rendimentos e terá de ser regulamentada em articulação com os parceiros sociais.”
Nuno Marques, diretor do PAES, acredita que “ficará para o próximo Governo”. Até porque o plano aprovado em Conselho de Ministros terá de ser executado até 2026, uma vez que é financiado em grande parte por fundos europeus. “Não é uma reforma antecipada mas uma passagem mais flexível: ou seja, quem quiser estar a tempo inteiro a trabalhar poderá fazê-lo, mas também será possível uma saída do mercado de trabalho de forma gradual, diminuindo a carga horária, oferecendo mais opções para quem quer continuar a trabalhar”, acrescenta.
“Acho a medida importante e com mérito. Muitas pessoas deixam a sua atividade de um dia para o outro e essa passagem pode ser traumática. Ficam sem fazer nada e alteram as suas rotinas”, diz o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares. “Isto implica uma grande articulação entre as entidades públicas e as empresas. Acredito que o futuro Governo vai voltar a discutir esta medida, como já aconteceu no passado.” O provedor nota outra vantagem: a renovação das gerações. “Se existem estágios para jovens, também poderia haver políticas públicas para que os mais velhos possam deixar o seu trabalho progressivamente. Há países onde, em vez de continuarem a trabalhar, vão prestar apoio numa instituição, beneficiando de uma majoração no IRS.”
Apesar desta flexibilização da reforma não constar no Orçamento do Estado (OE) 2024 — o que permitiria uma subida nos rendimentos dos mais velhos —, o Governo aprovou aumentos generalizados nas pensões (ver P&R). Um desses aumentos, destaca Nuno Marques, é no complemento solidário para idosos. “É a primeira vez que temos esta medida, fundamental, porque o valor situa-se acima do limiar da pobreza. É muito importante sublinhar isto, assim como outros apoios como o acesso a medicamentos mais baratos.” Ao mesmo tempo, “o aumento das reformas será efetivo na capacidade de compra dos pensionistas”, uma vez que supera a inflação prevista para 2024.
Efeito guilhotina
Quando, em 2015, António Costa subiu ao poder com a ‘geringonça’, a reforma parcial foi incluída no programa de Governo da então coligação entre PSD e CDS. A memória é do ministro que havia liderado a pasta do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Pedro Mota Soares. “Julgo que agora peca por tardia. Trata-se de compatibilizar a idade da reforma com o envelhecimento ativo. Estas pessoas poderiam assim manter-se ativas, relacionarem-se, estarem em sociedade”, acredita o ex-ministro. “Temos dificuldades em arranjar pessoas para o mercado de trabalho, e a ‘reforma part-time’ permite-nos manter trabalhadores mais velhos ativos, sem horário completo.”
Além de promover o envelhecimento ativo, uma transição suave para a reforma afigura-se como essencial para atenuar os efeitos negativos de quem termina obrigatoriamente o trabalho ao atingir os 66 anos e quatro meses: isolamento social, diminuição da saúde, degeneração cognitiva, só para dar alguns exemplos. “Conheço pessoas que são vítimas do ‘efeito guilhotina’: até 31 de dezembro estão a trabalhar e no dia 1 são impedidas de entrar no seu local de trabalho. Claro que a reforma parcial será sempre uma medida voluntária”, completa Mota Soares.
Em todo o caso, existe um plano de ação para o envelhecimento ativo. Conta com 135 medidas concretas e seis pilares de atuação: saúde e bem-estar; autonomia e vida independente; desenvolvimento e aprendizagem ao longo da vida; vida laboral saudável ao longo do ciclo de vida; rendimentos e economia do envelhecimento; participação social. “É um compromisso de intervenção com respostas ao nível dos cuidados de saúde integrados, da segurança social e da habitação. Temos também medidas focadas na reconversão e requalificação de trabalhadores em função de competências que são críticas para o mundo laboral, nomeadamente nas áreas do digital e da transição energética e ambiental”, afirma Ana Mendes Godinho. O plano de ação contempla ainda a “adaptação dos locais de trabalho em função do próprio aumento da esperança média de vida”.
Trata-se de um investimento inédito na longevidade: €1300 milhões. Parte deste valor, afirma Nuno Marques, “sai do OE, mas a maioria é financiada através do PRR e da Agenda Portugal 2030”. O diretor do PAES deixa, porém, um alerta: parte das medidas não vão ter resultados a curto prazo. “Este plano de atuação terá reflexos nas próximas décadas, embora haja uma aposta forte na população já envelhecida.”
P&R
Que medidas estão previstas no OE para a longevidade?
Uma das principais está relacionada com o complemento solidário para idosos. O Governo aprovou uma convergência integral deste apoio acima do limiar da pobreza. Trata-se de um reforço de €62,45 para cada idoso. No total estão inscritos no OE do próximo ano €55 milhões para esta medida, que vai beneficiar 150 mil pessoas acima dos 65 anos.
As pensões vão aumentar?
Em 2024 as pensões vão aumentar acima do valor da inflação. Segundo o documento aprovado em 29 de novembro, no início de 2024 vai haver uma subida de 6% para pensões entre os €301 e os €1018, com um valor mínimo de aumento de €18. Para as pensões superiores a €1085 e até €3055 o aumento será de €61. Por fim, as pensões superiores a €3055 terão um aumento mínimo de €172.
Estes valores são válidos para todas as carreiras contributivas?
Não. Os aumentos no regime geral de Segurança Social variam entre os €319 para carreiras contributivas inferiores a 15 anos e €462 para quem descontou 31 anos ou mais. As pensões pagas pela Caixa Geral de Aposentações também aumentam: os valores desta subida serão entre os €298 para carreiras contributivas entre os 5 e os 12 anos e €493 para descontos superiores a 31 anos. O regime não contributivo registará uma atualização para os €245.
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Textos originalmente publicados no Expresso de 29 de dezembro de 2023
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