Todas as semanas dizia a mesma coisa aos assistentes sociais: “A minha filha vem buscar-me esta quinta-feira.” Depois de um episódio que a levou às urgências de uma unidade de saúde no Norte do país, Maria recebeu alta médica mas ficou a viver no hospital. Uma situação de abandono que se arrastou por longas semanas. “A sua filha perdeu o autocarro”, dizia-lhe, repetidamente, Jorge Rosado, diretor artístico dos Palhaços d’Opital, uma associação sem fins lucrativos que diariamente visita idosos internados no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
A história de Maria, octogenária, está longe de ser um caso isolado. Se durante a pandemia o abandono de idosos nos hospitais teve uma redução significativa, atualmente regista-se um aumento drástico: segundo dados do sétimo Barómetro de Internamentos Sociais, de 2023, estavam internados “de forma inapropriada” quase 1700 pessoas. Um número que se traduz num aumento de 60% relativamente ao ano anterior, quando se totalizavam 1048 casos. Abandonados pelas famílias, sem recursos financeiros, habitação ou em lista de espera para lares, resta-lhes pouco mais do que aceitar a vida confinada entre as paredes de um quarto de hospital ou de um corredor.
Foi de tanto esperar pela quinta-feira que Maria começou a convencer-se de que aquela era realmente a sua casa — um hospital. Jorge Rosado, que já se dedica há quase duas décadas a levar diariamente a alegria aos idosos internados, desabafa: “Quando saio do personagem [Doutor Risotto, como é conhecido entre os doentes], é impossível não ficar a pensar no quão descartáveis são consideradas estas pessoas.”
Manuel Caldas de Almeida, presidente da União das Misericórdias, traça um cenário “dramático”: “Esta situação que se passa nos hospitais do SNS é gravíssima.” E se para os idosos aceitar uma realidade tão dura como o abandono é difícil, as consequências em termos da assistência à população em geral facilmente se tornam sistémicas: “Um hospital é destinado a internamentos curtos. Ora, se temos 100 camas e 30 estão ocupadas por vagas sociais, por doentes com alta mas que não têm para onde ir, todo o sistema fica comprometido”, afirma o também médico. “Há uma redução da capacidade instalada que impede o acesso a quem realmente precisa e revela, ao mesmo tempo, uma enorme ineficácia e desperdício do sistema.”
Segundo o mesmo estudo, realizado pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) em parceria com a EY e com o apoio da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) e da Associação dos Profissionais de Serviço Social (APSS), os internamentos sociais custam quase €52 milhões por ano ao Estado. Mais uma vez, comparando com dados do ano anterior, o aumento é considerável: em 2022 o valor anual destes custos ficou pelos €19,5 milhões.
O problema não é apenas social ou financeiro. Ana Escoval, professora associada de Políticas e Administração de Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública e sócia da Associação de Administradores Hospitalares, chama a atenção para outra variável: “Além dos problemas causados pela ocupação total, os idosos abandonados nos hospitais ficam, naturalmente, mais expostos e vulneráveis, em risco acrescido.”
O diálogo entre os hospitais, Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e Ministério da Saúde foi considerado numa portaria de 2 de fevereiro deste ano, precisamente para um melhor planeamento da alta hospitalar, assim como a articulação institucional com lares, misericórdias e IPSS, com vista ao acolhimento e acompanhamento dos idosos que permanecem internados mesmo após alta hospitalar.
“Cerca de 50 misericórdias acolheram casos sociais do SNS, que rondam um total de transferências de 500 utentes para ocupar vagas extra-acordo existentes nos lares das misericórdias”, confirmou Manuel Caldas de Almeida. Com particular gravidade nos hospitais de um grande centro urbano como Lisboa, no Porto o cenário não é muito diferente. “Temos casos de abandono. Falamos de pais ou mães que são deixados no hospital e que nunca mais os vão visitar ou levam para casa”, afirma o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares. “Tem muito a ver com o envelhecimento da população e com o facto de a sociedade não estar estruturada para as alterações demográficas. O apoio domiciliário não responde às necessidades destas pessoas. No Porto damos apoio a 60 pessoas abandonadas nos hospitais.”
Natal no hospital
Se a ausência de retaguarda familiar e os parcos recursos explicam muitos dos internamentos sociais prolongados no tempo, há também casos cujas razões são de mera conveniência. Jorge, com perto de 80 anos, é um exemplo: todos os Natais a família deixava-o internado no hospital. “Só lá voltavam depois da passagem de ano. As pessoas acham que para ter um bom Natal têm de se livrar de tudo o que é incómodo e fator de stresse”, lamenta Jorge Rosado, que luta diariamente por passar outra mensagem: “Precisamos de transmitir às novas gerações o valor dos mais velhos, a sua sabedoria, os seus ofícios. Uma pessoa com demência pode não ser a melhor companhia no Natal. Mas o velhinho deve estar na mesa da Consoada, para que os filhos e netos percebam que um dia serão eles a precisar de serem cuidados.”
Ainda assim, Rosado não se esquece do inverno passado. “Em dezembro começámos a intensificar as visitas, e depois das reuniões com o enfermeiro-chefe apercebi-me de que havia muita gente internada com mais de 80 anos. Foi então que a enfermeira me disse: ‘Está a chegar o Natal.’”
P&R
Quantos doentes ocupam atualmente as chamadas ‘camas sociais’?
Segundo dados do sétimo Barómetro de Internamentos Sociais, existem atualmente quase 1700 camas ocupadas por pessoas internadas apenas por razões sociais, nomeadamente por carência económica, ausência de família que acolha estes idosos ou por dificuldade nas respostas sociais por parte de instituições, lares e misericórdias.
Que custos representam estes utentes para o Serviço Nacional de Saúde?
Segundo a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, os internamentos sociais têm um custo anual ao Estado que ronda os €52 milhões. Durante a pandemia verificou-se uma queda significativa deste tipo de internamentos, mas os números voltaram a subir: em 2023 registou-se um aumento de 60% destes casos.
Quanto tempo dura, em média, um internamento social?
Depende das várias respostas existentes, quer nos lares e nas misericórdias e das próprias famílias. Atualmente, a média de permanência de um idoso no hospital, com alta médica, ronda os 61 dias. Este número aumentou exponencialmente, já que em 2022 a média era de 29 dias. A principal causa é a dificuldade para obter vaga num lar.
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