Guerra no subsolo de Gaza: manual do Hamas detalha estratégia de batalha nos túneis
Soldado israelita no interior de um túnel que o exército diz ser "de comando" do Hamas
JACK GUEZ
Documento apreendido pelas forças israelitas e analisado pelo “The New York Times” detalha a operação militar subterrânea do Hamas, num trabalho de pormenor desenvolvido ao longo de anos e que dificulta os objetivos de Israel
Durante anos, o Hamas desenvolveu um plano de guerra subterrânea, em que explica em pormenor como navegar na escuridão por baixo de Gaza ou disparar armas automáticas em espaços confinados para conseguir máxima letalidade. O documento data de 2019, foi apreendido pelas forças israelitas em novembro e é agora revelado pelo “The New York Times”.
O manual faz parte do esforço do grupo para preparar uma operação militar subterrânea capaz de resistir a ataques prolongados e abrandar as forças terrestres israelitas, um trabalho bastante anterior ao ataque de 7 de outubro de 2023 e à atual guerra com Israel. Contém instruções sobre como camuflar as entradas dos túneis, localizá-los com bússolas ou GPS, entrar rapidamente e movimentar-se eficazmente: com uma mão na parede e a outra no combatente à frente.
“Enquanto se move no escuro dentro do túnel, o combatente precisa de óculos de visão noturna equipados com infravermelhos”, lê-se no documento, escrito em árabe. As armas devem ser automáticas e disparadas a partir do ombro. “Este tipo de disparo é eficaz porque o túnel é estreito, pelo que os tiros são dirigidos para as zonas de morte na parte superior do corpo humano”, justifica. Enquanto alguns túneis servem para efetuar ataques, outros são sofisticados centros de comando e controlo ou ligam fábricas de armas subterrâneas a instalações de armazenamento. Alguns também funcionam como centros de comunicação.
O Exército israelita anunciou ter descoberto o maior túnel do Hamas, com cerca de quatro quilómetros de comprimento e 50 metros de profundidade, situado em Erez, na fronteira a norte do enclave palestiniano
Apenas um ano antes de atacar Israel, o líder do Hamas na Faixa de Gaza, Yahya Sinwar, aprovou a instalação de portas anti-explosão para proteger a rede de túneis contra ataques aéreos e terrestres, no valor de 225 mil dólares. O documento de aprovação indicava, segundo o diário norte-americano, que os comandantes das brigadas do Hamas tinham analisado os túneis sob Gaza e identificado locais críticos no subsolo e à superfície que precisavam de ser fortificados. Os comandantes foram mesmo instruídos a cronometrar, ao segundo, o tempo que os combatentes demoravam a deslocar-se entre vários pontos subterrâneos.
Os oficiais israelitas passaram anos a procurar e a desmantelar túneis que o Hamas poderia utilizar para entrar em Israel e lançar um ataque, mas avaliar a rede subterrânea dentro de Gaza não era uma prioridade, de acordo com um alto funcionário israelita, porque uma invasão e uma guerra em grande escala pareciam improváveis. Agora, quase um ano após o início do conflito, Israel tem tido dificuldade em atingir o objetivo de desmantelar o Hamas.
No início da guerra, as autoridades israelitas calculavam que a rede de túneis se estendia por cerca de 400 quilómetros. Neste momento, acreditam que tem o dobro da extensão, e continuam a descobrir novos túneis. Suspeita-se que o próprio Sinwar gere a guerra e escapa à captura a partir de um túnel.
Um combatente das brigadas al-Qassam, o braço armado do Hamas, fotografado à entrada de um tunel na Faixa de Gaza
As informações a que o “The New York Times” teve acesso mostram como ambos os lados tiveram de adaptar as respetivas táticas no conflito. Ao mesmo tempo que Israel subestimou os túneis, o Hamas preparou-se para batalhas subterrâneas que não se concretizaram. Israel estava relutante, especialmente no início, em enviar tropas para o subsolo, onde poderiam enfrentar combates. O Hamas tem feito principalmente emboscadas a soldados perto das entradas dos túneis, evitando confrontos diretos.
“O facto de o Hamas se esconder em túneis e gerir grande parte dos combates a partir daí prolonga a guerra”, considerou um porta-voz militar ao diário norte-americano. Já um alto funcionário do Hamas recusou-se a comentar a estratégia dos túneis. O antigo chefe dos serviços secretos militares de Israel, Tamir Hayman, aponta que “a estratégia de combate do Hamas baseia-se em táticas subterrâneas”, o que constitui “uma das principais razões pelas quais conseguiram resistir às forças israelitas até agora”. Certo é o impacto para os civis palestinianos do foco israelita na destruição dos túneis, dado que muitos passam por baixo de áreas densamente ocupadas. Desde o início do conflito, morreram em Gaza mais de 40 mil pessoas.