Guerra no Médio Oriente

Impasse em Gaza: “Após 150 dias dias de horror, provou-se mais uma vez que não há solução militar sem visão política”

Distribuição de comida, na cidade de Gaza
Distribuição de comida, na cidade de Gaza
Omar Qattaa / Anadolu / Getty Images

O ataque do Hamas, a 7 de outubro de 2023, que deixou Israel em choque e fez ruir a noção de segurança que o Estado judaico nasceu para assegurar ao povo sofrido, aconteceu há cinco meses. Desde esse dia passaram outros 149 de bombardeamentos, morte, fome e doença em Gaza. As exigências de cada um dos lados são linhas vermelhas mútuas. Em Israel os familiares dos reféns desesperam sem saber dos seus, em Gaza a fome já não é ameaça: chegou e vitimou crianças

Impasse em Gaza: “Após 150 dias dias de horror, provou-se mais uma vez que não há solução militar sem visão política”

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Os líderes do Hamas fazem conferências de imprensa, a partir das capitais do mundo árabe onde se refugiaram, a dizer que um acordo de cessar-fogo está nas mãos de Israel. O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, maior aliado de Israel na guerra, diz que a bola está do lado do Hamas.

O impasse não é politicamente insustentável para nenhum dos campos. Quem realmente sofre são os habitantes da Faixa de Gaza, onde a fome já não é só ameaça e os corpos emaciados de crianças começam a aparecer nas redes sociais com um filtro enegrecido por cima e um aviso: “Tem a certeza de que deseja ver este conteúdo?”

Ler sem ver é mais do que suficiente para não querer saber mais. Porém, obscurecer não é o papel das organizações não-governamentais nem dos jornalistas que continuam no terreno. A agência Reuters falou com uma mãe palestiniana, num hospital de Gaza, onde a sua filha de dois anos acabara de morrer. A menina tinha deficiências graves de cálcio e potássio e nem a família nem o hospital tinham alimentos para supri-las. “As mães não estão bem alimentadas, muitas não podem amamentar os filhos. Não temos leite artificial. Isto levou à morte de crianças aqui na unidade de cuidados intensivos. Também no berçário há muitas mortes”, afirmou um dos médicos, Ahmad Salem.

“A segurança e a proteção do nosso povo só serão alcançadas com um cessar-fogo permanente, o fim da agressão, a retirada [de Israel] de cada centímetro de Gaza (…)”.

A entrada de ajuda humanitária tem sido exigência constante nos discursos dos políticos um pouco por todo o mundo. No entanto, quase 40% das missões de ajuda coordenadas pelas Nações Unidas foram recusadas ou impedidas por Israel no mês passado, informou o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU (OCHA). Em fevereiro, 86 das 222 missões (ou seja, 39%) em zonas que necessitavam de coordenação foram recusadas ou impedidas por Israel.

Distribuição de ajuda por via aérea sobre a cidade de Gaza
AFP / GETTY IMAGES

Um relatório da ONG Refugees Internacional, divulgado esta quinta-feira, indica que Israel “impediu, de forma consistente e infundada as operações de ajuda dentro de Gaza, bloqueou operações de socorro legítimas e resistiu à implementação de medidas que poderiam genuinamente melhorar o fluxo de ajuda humanitária para Gaza”. A organização afirma que Israel está “comprovadamente a não cumprir” as medidas provisórias juridicamente vinculativas ordenadas em 26 de janeiro pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) para facilitar o fluxo de ajuda e diminuir o sofrimento humanitário em Gaza.

A comida que tem chegado é lançada por aviões militares dos Estados Unidos e da Jordânia, apesar de haver milhares de quilos de comida presos nas fronteiras entre Israel, Egito e Gaza.

Hamas e Israel querem acabar a guerra?

Como tem sido escrito por jornais e académicos desde o início da guerra, esta serve tanto os cabecilhas do Hamas, que continuam a receber centenas de milhares de euros do Irão, Catar e Turquia (tanto na forma de armamento, do Irão, como de ajuda humanitária ou lucros de negócios legais que os seus representantes mantêm por todo o mundo árabe) e mantêm-se relevantes enquanto “força de resistência”, como Benjamin Netanyahu, que sabe que o dia em que deixar de ocupar a cadeira de primeiro-ministro de Israel começa a ganhar consistência a possibilidade de que possa ir preso por causa dos processos onde é suspeito de fraude e abuso de poder.

Esta quinta-feira, a delegação do Hamas saiu do Cairo sem solução para um cessar-fogo. É também sabido que Israel nem sequer enviou delegação, apesar de não ser necessário, porque é feita pelos Estados Unidos em seu nome.

Yossi M“Há muitas preocupações filosóficas sobre a natureza humana e a sua capacidade de infligir dor extrema aos outros, mas, ao mesmo tempo, sobre o completo fracasso do sistema de segurança coletiva global, se não para o impedir, pelo menos para o mitigar”

Yossi Mekelberg
Analista político especializado em Médio Oriente da Chatham House

O Hamas afirmou, terça-feira, que não poderá haver “troca de prisioneiros” antes de um cessar-fogo permanente e da retirada total de Israel de Gaza. “A segurança e a proteção do nosso povo só serão alcançadas com um cessar-fogo permanente, o fim da agressão, a retirada [de Israel] de cada centímetro de Gaza... e a entrada de ajuda para o nosso povo em Gaza é a nossa maior prioridade”, afirmou um dos representantes do Hamas, Osama Hamdan, numa conferência de imprensa em Beirute, citado pela CNN.

O mês do Ramadão, o mais sagrado no calendário dos muçulmanos, começa a 10 de março, havendo pressão para que algum tipo de paz pudesse ser encontrada antes dessa data. Até porque a possibilidade de que a revolta se espalhe à Cisjordânia é real.

Assim chegámos aos cinco meses de guerra, sem grandes demonstrações de vontade política de acabar com ela. “Após 150 dias dias de horror, provou-se mais uma vez que não há solução militar para conflitos sem visão política. Por mais horrendo que tenha sido o ataque do Hamas em 7 de outubro, o objetivo de destruir o Hamas e conduzir uma guerra que não tem em conta a população civil, está a provar a falta de pensamento estratégico para estabelecer objetivos políticos que sejam alcançáveis e que tornem Israel mais seguro e protegido”, diz ao Expresso Yossi Mekelberg, analista político especializado em Médio Oriente da Chatham House. “Há muitas preocupações filosóficas sobre a natureza humana e a sua capacidade de infligir dor extrema aos outros, mas, ao mesmo tempo, sobre o completo fracasso do sistema de segurança coletiva global, se não para impedi-lo, pelo menos para o mitigá-lo.”

Violações em grupo e angústia de quem espera

Em Israel também há famílias desesperadas pelos seus reféns, perdidos nos túneis do Hamas. Estarão mortos ou vivos? O Hamas já avisou que não consegue produzir a lista de reféns vivos que Israel exige antes de concordar com qualquer cessar-fogo, porque a intensidade dos bombardeamentos não permite recolher dados. E quando passam cinco meses do ataque de 7 de outubro, uma equipa de investigadores da ONU anunciou o que as vítimas desse dia já tinham denunciado.

Pramila Patten, representante especial da ONU para a Violência Sexual em Conflitos, afirmou, citada pela BBC, que a sua equipa “encontrou informações claras e convincentes de que a violência sexual, incluindo a violação, a tortura sexualizada e o tratamento cruel, desumano e degradante” foram cometidos contra os reféns. Além disso, há “motivos razoáveis” para acreditar que essa violência pode estar “a ser exercida contra os que ainda se encontram em cativeiro”.

Uma das testemunhas dos ataques de dia 7 gravou um vídeo para ser usado nas investigações das autoridades israelitas, que foi também entregue à BBC, onde essa mulher descreve ter visto outra mulher a ser “passada de homem para homem” para ser violada “enquanto estava viva e a sangrar das costas”. Os atacantes cortaram “o peito da vítima” e “brincaram com ele na rua”, descreve o texto no site da emissora britânica.

A esperança de um homem cada vez mais isolado

Numa troca de mensagens com o Expresso, um dos mais conhecidos negociadores da libertação de reféns por parte de Israel, Gershon Baskin, disse que há vários aspetos que têm de ser assegurados antes de a guerra poder acabar: os reféns têm de ser libertados, a fronteira entre Gaza e o Egito tem ser ser impermeabilizada ao contrabando e o Hamas não pode continuar a controlar a Gaza.

No entanto, mesmo que todas essas condições tivessem asseguradas, e Israel permanecesse em Gaza, a guerra não acabaria, porque a presença militar israelita em Gaza garantirá a continuação da insurreição armada contra as tropas israelitas e garantirá a continuação do apoio da população de Gaza ao Hamas”.

“O Hamas só será totalmente derrotado quando a ocupação terminar também na Cisjordânia e existir um Estado palestiniano reconhecido ao lado do de Israel”

Gershon Barkin
Ativista israelita e negociador da libertação de reféns

Baskin foi um dos envolvidos na libertação do militar israelita Gilad Shalit, preso cinco anos em Gaza (2006-11), e, quando esta guerra chegou, acreditou ter no palestiniano que o ajudara a libertar Shalit — Ghazi Hamad, membro do Hamas — um portal para lá do ódio. Enganou-se. E escreveu-lhe uma carta, que o Expresso publicou.

Baskin diz que, do seu lado, o empenho na resolução é o mesmo. Continua a parecer-lhe claro que “o Hamas só será totalmente derrotado quando a ocupação terminar também na Cisjordânia e existir um Estado palestiniano reconhecido ao lado do de Israel”.

Ao mesmo tempo que estas considerações chegam ao WhatsApp, aparece no site da Administração Civil de Israel, o organismo responsável pelos colonatos israelitas na Cisjordânia, a notícia de que o plano para construção de mais 3400 novas habitações em três colonatos está na fase final de aprovação. Serão construídos na Área C da Cisjordânia (60% do território total da Cisjordânia, por isso, parte de um futuro Estado palestiniano). Desde os acordos de Oslo que não havia tantos planos para a construção de casas de israelitas em território que a lei internacional não reconhece como israelita.

Parece difícil entender como é que esse sonho adiado de Baskin pode tornar-se tangível quando o sofrimento todos os dias cria mais uma camada de raiva e descrença nos líderes que, até aqui, lideraram as tentativas de chegar a acordo.

Apesar de pouco esperançoso numa solução, Baskin diz que a solução das seis semanas de cessar-fogo permitiria “aos dois lados gizar um plano que lhes permitisse dizer que ganharam alguma coisa”. E é “precisamente essa ideia de que alguém ganhou alguma coisa que vai permitir acabar com a guerra.”

Como já defendeu em textos que tem escrito, o Hamas há muito que pode reclamar vitória: a invasão de Israel, a facilidade com que ridicularizou a segurança de um Estado criado especificamente para proteger o povo judeu de atrocidades como as que se viram no dia 7 de outubro, foi a vitória do Hamas. A de Israel, escreve para o “Times of Israel, “consistiu em conseguir transformar o seu exército, de uma força policial de ocupação que protegia os colonos, numa verdadeira força de combate, totalmente capaz de proteger as fronteiras de Israel”.

O ativista e negociador diz que o rejuvenescimento da causa palestiniana e a revitalização da solução dos dois Estados foi também uma das vitórias do Hamas, apesar de nunca ter sido um projeto do grupo islamita, tal como nunca foi projeto dos sucessivos governos de Israel. Por isso mesmo, Baskin defende que os Estados Unidos devem liderar as outras nações “no sentido de reconhecerem imediatamente o Estado da Palestina e retirarem a Israel à questão do estabelecimento do mesmo”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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