Um ano de guerra na Ucrânia

“Não esperava que, num país tão distante da Ucrânia, tentassem ajudar-nos. Somos muito gratos a Portugal e aos portugueses”

Concentração organizada pela Associação dos Ucranianos em Portugal, em Lisboa
Concentração organizada pela Associação dos Ucranianos em Portugal, em Lisboa
Nuno Fox

Bandeiras (muitas), cartazes, canções e os olhos marejados de lágrimas. Na concentração integrada na Jornada Mundial de Apoio à Ucrânia que assinala a passagem de um ano desde que a Rússia iniciou a invasão do país, o Expresso ouviu as histórias daqueles que viram a vida alterada para sempre por causa da guerra

Passeiam Kevin e Kayla pela coleira, e os cães pululam, exploradores, pela calçada. São como muitos outros casais: ele, sorridente, olhos castanhos, cabelo claro; ela, mais sorridente ainda, alta, esguia, olhos azuis e cabelo apanhado em duas esferas lado a lado atrás na cabeça. Atrás, derramados pelas costas de ambos, o azul e o amarelo necessários. A bandeira está às costas como um tema sempre presente, sempre prestes a aparecer de surpresa em cada conversa. Denys, de 32 anos, originário de Kiev, já se encontrava em Portugal quando a guerra eclodiu, precisamente há um ano. "Toda a gente nos avisou que esta situação poderia acontecer", diz ao Expresso, no último degrau da escadaria que dá para a Assembleia da República.

A decisão não foi simples, mas o plano impôs-se com pragmatismo: de Kiev seguiram, numa viagem de carro, dois seres humanos, dois cães e dois gatos. Ainda lembram com alguma tristeza aquele dia, em que a sorte se fazia fugidia. "Não queríamos mudar-nos". Não era o nosso plano. Não podemos dizer que estejamos bem. Muitos amigos e família estão longe de nós." Mas, durante a concentração que junta um mar de gente empunhando cartazes de desprezo a Putin ou as palavras da “gloriosa” Ucrânia, apercebem-se de que a sorte, afinal, pode nunca os ter deixado. A guerra arrasta-se, como antes não previram, e agora é tempo de manifestar desejos: "Que a Ucrânia se mantenha forte." Para isso, Denys pede a atenção de todo o mundo, mas sem delinear prognósticos. “Deixei de fazer previsões há algum tempo, porque qualquer previsão que nos apresentem, boa ou má, nunca se verifica. Tudo corre de uma forma inesperada.”

A guerra entrou com estrondo na vida de Aleksandra, de 35 anos, mostrando que o desgosto omnipresente arranja forma de estar em ambos os lados. A cidadã russa, de São Petersburgo, mudou-se sozinha para Portugal logo nos primeiros momentos da invasão em larga escala, em março de 2022. “Empacotei coisas e, apenas duas semanas após o começo da guerra, vim para Portugal.” Chegou "assustada e muito zangada", temerosa pelos “muitos amigos” que tem na Ucrania, mas também pelo país que deixou para trás.

Tal como a sua ação inicial, de partir em fuga do país onde nasceu, a presença frente ao Parlamento, num momento em que os ucranianos em Portugal realizam concentrações em diversos municípios portugueses, é um sinal ruidoso de revolta contra Moscovo. "Pensava que isto não poderia estar a acontecer, mas aconteceu. Todos sentimos algo no ar, mas essa sensação na Rússia já vinha de há vários anos. Não sabíamos que haveria de ser uma guerra, mas pensávamos que aconteceria algo."

Com as cores da bandeira da Ucrânia, Aleksandra mostra firmeza no apoio ao país irmão. "Os ucranianos já mostraram o poder da sua gente e como são capazes de unir-se. O mundo já sabia... Já tínhamos ouvido os EUA e o Reino Unido a falarem sobre a Rússia, mas ninguém quis acreditar." A manifestante lembra que ali pode expressar-se em liberdade, em contraste com o país que caiu nas mãos da opressão. "Apoiamos a Ucrânia e os ucranianos. Apoiamos também os russos que não são a favor desta guerra. Muitos russos vieram para Portugal no último ano e são muito boas pessoas."

Apesar de reconhecer que a hospitalidade dos portugueses atenuou o dramatismo da mudança, Aleksandra analisa as feridas: “Esta guerra impactou-me de forma absoluta. Todos nós tínhamos planos e vidas construídas que agora foram destruídas. É um pesadelo.”

Nuno Fox

“É uma memória que ficará connosco por muito tempo. Às vezes, ativam-se alguns gatilhos... Há coisas de que me lembro muito bem e outras que ficam nebulosas.” Kateryna Potapenko, de 23 anos, refere-se aos instantes, congelados em lembrança, em que ouviu as primeiras explosões naquele 24 de fevereiro de 2022. Vivia sozinha em Kiev, e foi difícil voltar do susto. “Nas primeiras duas horas, continuava a ser difícil acreditar. Não esperava, de todo. Nos dias 22 e 23 de fevereiro, eu estava a viver a minha vida normalmente, a ir para o trabalho e a conviver com amigos. Havia algumas conversas sobre guerra, mas ninguém no meu meio acreditava que fosse acontecer.”

Toda a família - três irmãos e mãe a viverem no leste da Ucrânia - ficaram desesperados e procuraram forma de fugir. Kateryna deslocou-se, então, para os encontrar e ajudá-los a seguir para o estrangeiro, já que não sabiam falar em inglês. Kateryna Potapenko só chegou a Portugal há dois meses. A primeira paragem foi a Alemanha, depois de ter passado pela Arménia e pela Polónia. Mesmo à distância, Kateryna quer lutar pelo direito de viver no seu país. De frente para o Parlamento português, enquanto se entoam o hino, outros cânticos e urras de exortação à vitória, a jovem ucraniana não hesita em dizer que este é um momento de luto, um momento "para sentir esta tragédia e não esquecer".

“A Ucrânia mostrou o seu caráter forte e que não importa que vivamos estas circunstâncias difíceis, porque vamos lutar pela nossa liberdade, pela nossa terra, pela nossa cultura. Pelo nosso direito de viver no nosso país. O nosso povo está a tentar fazer o seu melhor para mostrar o que aconteceu, mas é um mundo complicado. Há muitas opiniões a circular e há pessoas que nunca vão acreditar. A maldade será sempre a maldade, e é contra isso que a Ucrânia está a lutar.”

Nuno Fox

“A Ucrânia vai vencer”, “a Rússia é um Estado terrorista”, “salvaguardem os céus ucranianos”: são mensagens que gritam e encontram atenuante nas vozes em uníssono de um hino quase chorado. Veronika, de 26 anos, utiliza a teatralidade do momento para lembrar o que é sentir o pulso à guerra a 17 quilómetros da fronteira russa. “Duas semanas antes da invasão, já percebíamos alguns sinais e havia muitos protestos.” Na madrugada de 24 de fevereiro, foi inaugurado o tempo do irreversível. "Acordámos às 5h30 porque a nossa casa abanava. As explosões só começaram a ser ouvidas dois dias depois. Passámos a ouvir a todas as horas. Não ficámos surpresos, mas ficámos chocados com a escala do conflito. Pensava que fariam algo para nos assustarem. Depois, perbemos que Putin não queria apenas assustar-nos, queria mantar-nos."

Veronika chegou a Portugal em abril, e manteve-se a trabalhar na área das tecnologias de informação. "Continuo aqui porque ainda não sabemos quando será seguro regressar", explica. A família está agora na região de Kherson, que foi libertada em novembro. Mas Veronika não se apazigua. “A parte direita de Kherson ainda se encontra sob ocupação, e a minha mãe está lá. A minha irmã, de 19 anos, também lá estava, mas conseguimos fazê-la escapar.”

Ao país que a recebeu, a jovem ucraniana só tem elogios a fazer: "Portugal é maravilhoso, e as pessoas são muito amáveis. Quando comecei a procurar um apartamento, muitos portugueses perguntaram-me se precisava de ajuda, se sabia ir aos lugares e se precisava de comida. Não esperava que, num país tão distante da Ucrânia, as pessoas compreendessem a situação e tentassem ajudar-nos. Somos muito gratos a Portugal e aos portugueses."

Ouve-se um sonoro “obrigado, Portugal”. Veronika, que não hesita em assumir que quer voltar à Ucrânia, faz questão de "dizer 'obrigada' a Portugal, ao Governo e às pessoas". De acordo com a Associação dos Ucranianos em Portugal, cerca de 15 mil pessoas saíram, nesta sexta-feira, à rua em 11 cidades portuguesas, para pedir a manutenção do apoio de Portugal à Ucrânia. Em Lisboa, o evento revestiu-se de discursos emocionados, canções e a passagem da bandeira azul e amarela entre a Assembleia da República e o edifício dos Paços do Concelho, já iluminado, onde Carlos Moedas fez uma receção calorosa aos novos habitantes da capital.

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