“Foi provavelmente a maior manifestação desde que Navalny regressou à Rússia e foi preso, em 2021”, descreve Jan Matti Dollbaum, investigador de Ciência Política na Universidade Ludwig Maximilian de Munique. Coautor (juntamente com Ben Noble e Morvan Lallouet) da obra “Navalny: o inimigo de Putin, o futuro da Rússia?”. Dolbaum refere-se ao funeral do mais proeminente opositor de Putin. Em Moscovo, multidões reuniram-se e gritaram o seu nome - “Navalny, Navalny!” - enquanto o carro funerário chegava à igreja em Maryino, na cidade de Moscovo.
Os números da adesão ainda não são conhecidos, mas Alex Kokcharov, que faz análises de risco e segurança com foco na Rússia, situa a afluência entre as 10 mil e as 20 mil pessoas, “o que é significativo tendo em conta os riscos que estas pessoas enfrentam na Rússia, em 2024”. O Kremlin tinha afirmado que qualquer protesto não autorizado em apoio a Navalny violaria a lei. E, em declarações aos jornalistas, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, recusou-se a considerar Navalny uma figura política, garantindo ainda não ter nada a dizer à família do ativista russo.
A legislação atual russa permite que a polícia recorra a detenções indiscriminadas e mobilize forças contra pessoas em ajuntamentos não autorizados. “As pessoas podem ser presas por 15 dias, ter de pagar multas pesadas ou perder os empregos, se trabalharem no setor público”, realça, em declarações ao Expresso, Alex Kokcharov. “Mesmo assim, um grande número de pessoas compareceu, e isso mostra que Navalny era uma figura popular entre muitos membros da classe média urbana russa.”
O momento não foi só de flores e lágrimas, mas também de luta. Muitos manifestaram-se dizendo “a Rússia será livre”, “não à guerra”, ou até mesmo “Rússia sem Putin”. Outros, de acordo com a Reuters, chamaram “assassino” ao Presidente russo. Algumas pessoas entoaram “Georyam slava”, que é a frase usada pelos ucranianos para se referirem aos seus heróis que morreram. Os manifestantes arriscaram ser detidos, e alguns foram mesmo levados pelas autoridades, como mostram as imagens abaixo. Entre as milhares de pessoas reunidas, Alexander Motyl, professor de Ciência Política na Universidade Rutgers-Newark, nos Estados Unidos da América, e autor de várias obras sobre a Ucrânia e a Rússia, destacou a expressiva presença feminina. “Várias mulheres entrevistadas disseram: 'Não tenho medo.' Muitos mais russos já não têm medo do regime, e aqueles que tinham medo deixarão de ter, ao verem que milhares de pessoas demonstraram o seu apoio a Navalny. Com base nas fotografias e vídeos que vi, houve uma preponderância de enlutadas mulheres, o que pode dever-se ao facto de os homens das suas famílias estarem na linha da frente. Ou então sabem que as autoridades mais dificilmente bateriam na cabeça das mulheres.”
O “sentimento tão abertamente anti-Putin” foi o que mais surpreendeu Alexander Motyl. Já a mobilização era “plenamente esperada”, e o regime sabia-o, porque “entende que os funerais podem facilmente transformar-se em manifestações em massa que anunciam o colapso político”. As estações do metropolitano de Moscovo estiveram encerradas, os jornalistas russos foram impedidos de gravar ou fotografar, foi colocado gradeamento à porta do templo ortodoxo onde decorria a cerimónia fúnebre e havia grades preparadas para bloquear o acesso ao cemitério. “O Kremlin não queria ver uma repetição do funeral de Andrei Sakharov [em 1989], que contou com a presença de 150 mil pessoas”, lembra Alex Kokcharov. “Provavelmente conseguiram reduzir este número no funeral de Navalny devido à forte presença policial e ao risco de detenção e multas.”
“Eu esperava que o Kremlin se preparasse, e provavelmente preparou-se para mais do que o que realmente aconteceu, só para garantir”, observa Jan Matti Dollbaum. “Foi impressionante ver as pessoas a chamar “carrascos” aos líderes políticos, e também a fazerem críticas à guerra contra a Ucrânia. É muito importante que os jornalistas noticiem isto, para mostrar que muitas pessoas na Rússia são contra a guerra, e algumas até se atrevem a expressar isso em público. É claro que, mesmo quem não tenha sido detido hoje, poderá enfrentar repercussões mais tarde.”
O Kremlin tudo tem feito para estancar o efeito mobilizador de Alexei Navalny, segundo Alex Kokcharov. “Tem realizado várias campanhas de desinformação nas redes sociais, até contra a família de Navalny. O seu funeral não foi coberto pela televisão estatal russa e pelos principais jornais. No entanto, muitos russos já não dependem da televisão e dos jornais para obter informação, e optam por utilizar as redes sociais - que muitas vezes são acessíveis se usarem VPN.” Mais de um quarto de milhão de pessoas assistiram às cerimónias fúnebres de Navalny no seu canal no YouTube, que está bloqueado na Rússia, adianta o jornal “The Guardian”.
Anatoly Navalny e Lyudmila Navalnay, pais do ativista, compareceram à cerimónia, mas a viúva, Yulia, o filho, Zakhar, e a filha, Dash, não estiveram presentes, por motivos de segurança, já que não moram na Rússia. A mãe de Navalny foi abordada por apoiantes em lágrimas, que a abraçaram e agradeceram o legado do seu filho.
“Não sei viver sem ti”, escreveu Yulia Navalnaya, na rede social “X”. Na sua mensagem de despedida, agradeceu pelos “26 anos de felicidade absoluta” e publicou um vídeo com imagens dos dois juntos. De resto, várias autoridades reagiram também ao impacto do momento. O mais alto representante de política externa da UE, Josep Borrell, escreveu: “A UE expressa as suas condolências à família e amigos de Alexei Navalny. O embaixador da UE e outros diplomatas estão a prestar as suas homenagens. As crenças de Navalny não desaparecerão - as ideias não podem ser torturadas, envenenadas ou mortas. Navalny continua a ser uma inspiração para muitos, na Rússia e em outros lugares.” Já David Cameron, antigo primeiro-ministro do Reino Unido e atual secretário dos Negócios Estrangeiros, também emitiu um comunicado sucinto, mas esclarecedor: “Putin tentou silenciar Alexei Navalny. Mas o mundo está a assistir.”
Alexander Motyl concorda: o maior erro de Putin foi “matar” Navalny. “Foi um ato estúpido. Isso fez de Navalny um símbolo e um mártir, e nem um ditador pode subjugar um símbolo e um mártir. Depois da morte de Navalny, Putin ficou encurralado: não permitir um funeral teria parecido bárbaro e anticristão; se permitisse um funeral, corria o risco de enfrentar uma manifestação política. Ele escolheu a última opção porque provavelmente acreditava que as pessoas ficariam demasiado intimidadas pela polícia para expressarem a sua oposição. Putin estava errado, e agora será assombrado para sempre pelo fantasma de Navalny e pela diminuição do medo dos seus súbditos.”
Outras notícias a destacar:
⇒ Três pessoas morreram na sequência de um ataque com drone na região de Kherson, alega uma autoridade russa. Um carro terá sido atingido na parte controlada pela Rússia da região ucraniana de Kherson, de acordo com a Reuters, que cita o líder regional escolhido pela Rússia, Vladimir Saldo.
⇒ O ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, viajou, nesta sexta-feira, até à Turquia, que tem procurado reavivar as conversações de paz entre a Rússia e a Ucrânia e estratégias para garantir uma navegação segura no Mar Negro. Lavrov vai participar no fórum diplomático anual em Antalya, onde se encontrará com o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, e com o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Hakan Fidan.
⇒ A Ucrânia exportou níveis recordes de bens alimentares através do corredor do Mar Negro, em fevereiro. Em causa está um recorde de oito milhões de toneladas de carga, incluindo 5,2 milhões de toneladas de produtos agrícolas, de acordo com o vice-primeiro-ministro, Oleksandr Kubrakov. "Estes são inúmeros recordes de exportação, não apenas através do corredor ucraniano, mas desde o início da invasão em grande escala”, referiu Kubrakov, em comunicado.
⇒ A Rússia está pronta para entregar os corpos das vítimas da queda de um avião militar, ocorrida em janeiro, à Ucrânia, adiantou a representante russa de direitos humanos Tatyana Moskalkova. Moscovo acusa Kiev de atingir e fazer cair o avião Ilyushin Il-76 na região russa de Belgorod, matando 74 pessoas a bordo, entre as quais 65 soldados ucranianos capturados que seriam trocados por prisioneiros de guerra russos. A Ucrânia não confirmou nem negou que abateu a aeronave, e contestou a versão de Moscovo sobre quem estava a bordo e o que aconteceu. Tatyana Moskalkova diz estar em contacto com autoridades ucranianas para resolver a questão dos corpos.