Acordo para a exportação de cereais no Mar Negro expira este mês: será renovado, ou vão os preços alimentares disparar novamente?
Trigo e cevada num terminal de cereais do porto de Odessa
SOPA Images
O esforço para renovar o acordo para exportação de cereais no Mar Negro, que tem permitido a exportação de mais de 20 milhões de toneladas de produtos agrícolas ucranianos, parece esbarrar nas exigências russas, que exigem que os interesses dos seus agricultores sejam “tidos em conta”. Com a Turquia, uma das principais mediadoras do acordo, atarefada com a resposta ao grande sismo de fevereiro e as eleições presidenciais de junho, não se espera uma resolução para breve
O acordo entre a Ucrânia e Rússia para a exportação de cereais do Mar Negro, que permite a exportação de produtos agrícolas ucranianos através de alguns dos portos no sul do país, expira no próximo dia 19 de março. A não ser que Kiev e Moscovo deem luz verde a uma renovação, tal como fizeram em novembro de 2022, dezenas de países espalhados pelo mundo verão o custo de alimentar as suas populações disparar consideravelmente.
Inicialmente alcançado em julho do ano passado, seis meses após o começo da invasão russa da Ucrânia, o acordo contou com a mediação da Turquia e das Nações Unidas (ONU). Aliás, tanto Ancara, como a ONU, desempenham um papel fundamental na sua aplicação, já que cada cargueiro que saia de um porto ucraniano no Mar Negro terá que ser inspecionado pelas quatro partes envolvidas - incluindo a Rússia e a Ucrânia - antes de seguir caminho.
Neste contexto, a Ucrânia já expressou a intenção de estender o acordo de exportações por mais um ano, e apelou à Turquia e à ONU para promoverem uma nova ronda de negociações. O principal entrave a um novo entendimento é mesmo a Rússia, que disse na passada quarta-feira, pela voz do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que apenas aceitaria uma renovação caso os interesses dos seus agricultores fossem “tidos em conta”.
Através desta iniciativa já foram exportadas mais de 20 milhões de toneladas de produtos agrícolas ucranianos, especialmente trigo e milho, pelo que terminá-la conduzirá a consequências gravosas para vários países que dependem dos cereais russos e ucranianos para alimentar os seus cidadãos. Os preços destas matérias-primas iriam certamente aumentar no mercado global, e, tal como lembrou o Programa Alimentar Mundial da ONU, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar subiu para 345 milhões no ano passado, um número recorde.
O potencial para a criação de um clima de instabilidade nas regiões do Médio Oriente ou Norte de África, cujos países importam uma quantidade acentuada de trigo e milho, potencialmente criando as condições necessárias para uma nova vaga de emigração para a Europa ou os EUA, não escapa a nenhum líder Ocidental.
Na passada quinta-feira, na reunião do G20, em Nova Deli, na Índia, Antony Blinken, o secretário de Estado norte-americano, sublinhou ser "imperativo que o G20 se expresse em nome da extensão do alargamento da 'iniciativa' sobre os cereais para que seja garantido o reforço da segurança alimentar dos mais vulneráveis".
Oposição russa e desconcentração turca
A principal reivindicação russa passa por incluir no acordo as suas exportações de fertilizante, que diz estarem a ser bloqueadas pelas sanções ocidentais, que não visam as exportações em si, mas os sistemas de pagamentos, logística e seguros.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros referiu que Lavrov levantou estas questões com o seu homólogo turco, Mevlut Cavusoglu, numa breve reunião à margem da cimeira do G20, na passada quinta-feira. "[O] lado russo salientou que a continuação do acordo do pacote de cereais só é possível se forem tidos em conta os interesses dos produtores agrícolas e de fertilizantes russos em termos de acesso sem entraves aos mercados mundiais", disse o Ministério numa declaração, citada pela Reuters.
O certo é que a Turquia não estará propriamente inclinada para dedicar muito do seu tempo ou capital político a este acordo, tendo em conta o grande sismo que assolou o sul do país em fevereiro deste ano, e os esforços de reconstrução e apoio humanitário, para não falar nas próximas eleições presidenciais, que estão marcadas para junho, e em que o Presidente turco, Recep Erdogan, enfrentará uma oposição feroz e unida.
O ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, e o seu homólogo turco, Mevlut Cavusoglu, numa reunião à margem do G20, no dia 1 de março
Anadolu Agency
Face a um potencial vazio de mediação, cabe a Kiev e Moscovo tentarem chegar a um acordo. Não será fácil. Para começar, as autoridades ucranianas acusaram na semana passada a Rússia de usar a “fome como uma arma”, ao deliberadamente atrasar o processo de inspeção dos vários cargueiros que tentam passar o estreito do Bósforo, o estratégico canal que liga o Mediterrâneo ao Mar Negro, e que divide a capital turca de Istambul ao meio.
Além disso, a Ucrânia considera as exigências russas irrealistas e perigosas: o Kremlin pretende que os seus bancos sejam reinseridos no sistema internacional de pagamentos SWIFT e a reabertura de um gasoduto transfronteiriço para transportar amoníaco (essencial para a produção de fertilizantes), que passa pelo território ucraniano, nota o Politico.
Ora, a primeira condição é vista como inegociável pelo Ocidente, já que a exclusão das instituições financeiras russas do sistema internacional provou ser uma das medidas mais eficazes contra a economia russa. E a segunda, embora bem recebida pelo Ocidente, que importa fertilizante russo com elevada frequência, não é, para já, aceitável para Kiev, que teme as consequências de potenciais explosões que possam atingir o gasoduto.
Texto de José Gonçalves Neves, editado por Cristina Pombo