Zelensky quer “galvanizar” os americanos e “conquistar” os republicanos. Biden joga o capital político. Análise a um “encontro histórico”
Drew Angerer
A ajuda militar dos Estados Unidos é de tal forma essencial que o consenso entre os analistas é que a Ucrânia não estaria ainda a disputar qualquer território não fossem as armas que Washington continua a enviar. Por isso mesmo, em primeiro lugar, Zelensky foi dizer “obrigado” (repetidas vezes). Por trás do óbvio estão outros objetivos que passam por transformar a questão ucraniana numa causa “civilizacional” - para democratas e republicanos
O convite para que Volodymyr Zelensky fosse visitar a Casa Branca partiu dos Estados Unidos. O convite para falar no Congresso partiu de Nancy Pelosi, ainda presidente de uma Câmara dos Representantes que está a quase a mudar de mãos, dos democratas para os republicanos, depois de um pequeno desaire do partido de Joe Biden nas midterms.
O Presidente da Ucrânia aparece como aquele que mais tem a ganhar com esta que é a primeira visita que faz ao estrangeiro desde que a Rússia invadiu o seu país, há 301 dias. Porém, também os democratas querem galvanizar o povo norte-americano à volta desta que é uma das marcas da administração Biden: o permanente - e colossal - apoio financeiro e militar à Ucrânia.
Zelensky visitou a Casa Branca no seu já habitual traje militar
Alex Wong
“Não é só a primeira visita ao estrangeiro, é uma primeira visita fora do continente europeu. A Ucrânia tem um processo de adesão à União Europeia em curso, e aparentemente bem encaminhado, mas, ainda assim, quando o Presidente decide fazer a primeira visita vai fazê-la aos Estados Unidos. O que isto mostra é que a principal prioridade ucraniana neste momento está relacionada com a sua defesa, mais do que com o seu desenvolvimento”, começa por dizer ao Expresso o major-general Arnaut Moreira.
A Casa Branca tem optado por se esquivar das perguntas sobre a pressão política que necessariamente se vai abater sobre a administração em janeiro, na troca dos representantes. Outra data já marcada no calendário são as presidenciais, daqui a dois anos. Antes disso, Biden e Zelensky vão ter de lidar com um partido republicano que se diz preparado para cortar nos “cheques em branco” à Ucrânia, expressão de Kevin McCarthy, o possível próximo presidente da Câmara dos Representantes.
Ir à América atrás dos corações dos norte-americanos
Por isso mesmo, um dos objetivos não declarados de Zelensky é o de cortejar os rivais de Biden. “Algumas vozes republicanas utilizaram, para efeitos políticos internos, a questão do financiamento à Ucrânia, dando até a entender que pode ter havido um certo descontrolo, até sobre o destino das verbas e do equipamento. Por isso, Zelensky vai tentar puxar os republicanos para a causa ucraniana, tornar a Ucrânia numa questão de natureza quase civilizacional e mostrar que os republicanos também podem ganhar votos apoiando a sua causa”, diz ainda o major-general.
Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais, acredita que Zelensky vai saber utilizar a própria ideia que os americanos têm de si próprios em seu favor. “Os americanos são muito sensíveis a discursos galvanizadores que estejam relacionados com os temas centrais da América: a liberdade, a democracia, a sobrevivência, os direitos humanos. Há uma grande sensibilidade, quer das elites quer da opinião pública, a esta ideia de que os Estados Unidos são os defensores da paz e da liberdade e Zelensky vai dizer-lhes isso”.
Sandra Fernandes concorda. “Zelensky foi à América atrás dos corações dos norte-americanos”, diz a cientista política e especialista em Relações internacionais da Universidade do Minho. No seu entender, a visita é “histórica” porque, “hoje, o sucesso da Ucrânia significa o sucesso da União Europeia, o sucesso da pacificação do continente europeu, o sucesso da construção de uma ordem liberal, é o símbolo das construções feitas depois de 1945”.
Um “aviso muito forte” à Rússia
“Os ucranianos nunca estarão sozinhos”, disse o Presidente dos Estados Unidos na conferência de imprensa em conjunto com Zelensky, depois de uma longa reunião. Estava a falar para quem? Para Vladimir Putin, acredita Diana Soller. “Do ponto de vista político, os Estados Unidos efetivamente estão a dar um aviso muito forte à Rússia: a guerra internacionalizou-se e Washington vai estar sempre do lado da Ucrânia. Os Estados Unidos não vão permitir que a Rússia ganhe a guerra.” O primeiro objetivo deste encontro é, por isso, “selar a aliança” entre os dois países. Zelensky disse, na mesma conferência de imprensa, que este dia marca “o início de uma nova fase de cooperação” com os Estados Unidos.
Para Joe Biden, este encontro serve também propósitos internos. Numa altura em que a fadiga de guerra e as questões sobre o apoio incondicional e sem qualquer baliza temporal começa a contaminar a opinião pública de ambos os lados da barricada política, Zelensky pode vir ajudar a diminuir a pressão. “Em ambos os partidos há duas alas que preferiam que houvesse limitações de apoio à Ucrânia: os democratas e os republicanos mais radicais, os primeiros porque têm uma forte tendência isolacionista e os segundos porque têm uma forte tendência pacifista e por isso gostariam ambos de ver o processo de paz a correr mais rapidamente”, explica Soller.
Biden estará a contar com a possibilidade de que Zelensky “possa fazer um apelo direto aos norte-americanos e ao Congresso para que continuem a apoiar esta guerra e a sua intenção de que a ajuda não tenha limites, ou seja, que seja a Ucrânia a decidir o que é que precisa, quando é que precisa, onde utiliza o que lhe é enviado e quando quererá negociar a paz”.
Uma recente sondagem do Conselho para os Assuntos Globais, com sede em Chicago, mostra que, apesar de uma grande maioria dos norte-americanos continuarem a apoiar a política de envio de armas e assistência financeira à Ucrânia, 47% dos inquiridos consideram também que os Estados Unidos devem começar a pressionar por uma solução de paz. Em julho, apenas 38% das pessoas defendiam esta opção. Neste mesmo estudo, fica claro que o nível de apoio entre os republicanos à ajuda militar dos EUA tem vindo a diminuir: 55% mostram-se a favor agora, mas em julho esse número estava nos 68% e em março 80% dos republicanos partilhavam essa opinião.
Uma vitória e um grande risco ao mesmo tempo
“Se, por um lado, isto é uma vitória diplomática em si só, também é um grande risco”, avisa Diana Soller. Putin fez esta quarta-feira declarações que indicam que a Rússia está preparada para uma nova fase da guerra, avisando que, já em janeiro, Moscovo vai ter novos mísseis hipersónicos, armas “sem rival no mundo". A investigadora do IPRI não tem grandes dúvidas: “Devemos esperar violência sobre a população ucraniana nos próximos dias. Tem acontecido sempre que há um pacote de sanções aprovado, sempre que as forças especiais da Ucrânia conduzem um ataque bem sucedido. Vai haver brutalidade no terreno”.
Risco também é não correr riscos de qualquer tipo. E se o Ocidente deixar a Rússia ganhar, ou se a pressão das opiniões públicas começar a queimar os calcanhares políticos dos líderes ocidentais, podemos correr o risco de desmantelar a “ordem mundial assente em regras”, que resultou da Segunda Guerra Mundial.
É esta a opinião de Sandra Fernandes, que vê nesta guerra muitas outras. Na Rússia não há projeto claro de sociedade, mas há uma vontade de submeter, pela força, um Estado que é independente desde 1991 e de não respeitar as regras internacionais que estão estabelecidas desde 1945 e que permitiram tornar ilegal o recurso à força para alteração de fronteiras. Podem ser feitas várias críticas aos americanos. A guerra ao terror é o exemplo perfeito de tudo o que pode correr mal quando se tenta democratizar o mundo à força mas não compete com a ideia que Zelensky vai transmitir, de certeza, que é a de que deixar a Rússia ganhar é regressar a um mundo do século XIX”, diz ao Expresso.
Risco também é o prolongamento eterno desta guerra, para o qual Sandra Fernandes não vê um fim, nem sequer uma vontade de um fim. “Macron foi muito claro em maio, em Estrasburgo: não pode haver escalada, não pode haver humilhação nem exclusão da Rússia. Isso é algo que os ucranianos não querem ouvir. Para haver negociação, as partes têm de fazer alguns lutos: os ucranianos têm de fazer o luto da Crimeia, a Rússia tem de fazer o luto da Ucrânia. Estamos muito longe da vontade de sentar à mesa e quem vai decidir é o terreno, a progressão da guerra no terreno - e a população ucraniana”.
EUA: os campeões na entrega de armamento
Zelensky quer coisas que Biden não quer - ou não pode - dar. Quer uma coisa que, neste momento, só os Estados Unidos podem oferecer: armas que levem o seu país à vitória. O seu homólogo norte-americano tem-se mantido firme. Não serão enviadas armas que possam atingir posições russas O envio de material bélico de tipo ofensivo, poderia levar a Rússia a assumir estar em guerra aberta e declarada com os Estados Unidos - e a julgar pelas flutuações da opinião pública norte-americana em relação à guerra, esse é o último cenário desejável para Joe Biden.
“Zelensky precisa de armas de longo alcance para poder antecipar uma esperada ofensiva russa”, disse ao “Politico” o ex-embaixador dos EUA na Ucrânia, Bill Taylor. “E precisa de apoio financeiro rápido, de forma a manter o seu Governo a funcionar”. O Congresso norte-americano deve decidir sobre ambas as matérias ainda esta semana.
O momento foi bem desenhado, mas ainda assim não há qualquer indicador da vontade de Biden em fornecer este tipo de material, independentemente de se manter a promessa de ajuda contínua à Ucrânia, que o Presidente dos Estados Unido reforma a cada discurso que faz sobre a guerra.
Em declarações ao mesmo jornal, sob anonimato, pessoas próximas destas negociações de bastidores entre os dois países dizem que Biden não vai ceder, até porque os custos humanos para a Ucrânia são imprevisíveis. Enviar mísseis de longo alcance pode levar Putin a usar “armas ainda mais letais”.
Embora os pedidos de Zelensky sejam compreensíveis vindos de um Presidente em luta contra um dos maiores exércitos do mundo, os Estados Unidos já enviaram à Ucrânia uma quantidade astronómica de ajuda militar. E continuam a enviá-la.
Esta quarta-feira, Biden anunciou um novo pacote de ajuda militar no valor de dois mil milhões de dólares e que incluiu, pela primeira vez, o fornecimento do sistema de defesa antiaérea Patriot, tal como munições de precisão, que transformam bombas não-direcionadas em munições “teleguiadas”. Também incluído nesta nova promessa de ajuda estão 850 milhões de dólares em artilharia e outras munições.
O sistema Patriot é há muito um pedido de Kiev e a versão que vai chegar à Ucrânia foi construída para interceptar mísseis balísticos. Para a defesa da capital e das suas infraestruturas críticas, o envio dos Patriot pode ser significativo. Neste momento, a Ucrânia consegue travar cerca de 80% dos ataques aéreos, mas ainda há 20% que passam e uma rede elétrica muito fragilizada e que precisa de ser protegida.
Os números do apoio prestado pelos EUA são colossais. Desde o início da guerra e até ao dia 20 de novembro, segundo a soma feita pelo Council of Foreign Relations, o Governo de Biden e o Congresso dos Estados Unidos destinaram quase 50 mil milhões de dólares à Ucrânia, assistência que inclui apoio humanitário, financeiro e militar (22,9 mil milhões). Associações da sociedade civil, como emissoras de rádio independentes e centros de informação para refugiados também receberam parte deste dinheiro. Em comparação com outros destinatários de ajuda norte-americana no campo militar, o volume daquilo que foi entregue à Ucrânia torna-se ainda mais manifesto: Israel recebeu 3,3 mil milhões em 2020 e o Afeganistão 2,8 mil milhões.
O índice mais confiável no que diz respeito à atribuição de apoio militar, o “Ukraine Support Tracker”, compilado pelo Kiel Institute for World Economy, a UE (instituições + Estados-membros) terá desembolsado cerca de um terço do montante mobilizado pelos EUA em assistência militar (8,85 mil milhões de euros contra 27,6 mil milhões de euros). Entre os Estados-membros da UE, a Alemanha (3,3 mil milhões), Polónia (2,9 mil milhões) e França (1,14 mil milhões) são os países que mais contribuem. O Reino Unido, que já não faz parte da UE, já enviou à Ucrânia equipamento militar no valor de 3,74 mil milhões de euros.
O Centro Europeu de Estudos Políticos publicou um relatório recente com todos estes números e, nas conclusões, defende que a Ucrânia não teria conseguido “repelir a agressão russa se dependesse unicamente do apoio europeu”.
O estudo do CEPS argumenta ainda que a autonomia estratégica que a UE prometeu desenvolver após a Guerra dos Balcãs nunca chegou a materializar-se e “os Estados Unidos continuam a ser o principal bombeiro de serviço”. Sandra Fernandes discorda. “A UE passou a ser, em dezembro, o maior apoio aos ucranianos. Com este pacote dos mísseis Patriot e dos 45 mil milhões, os Estados Unidos podem voltar a passar-nos à frente mas os Estados-membros têm prestado imensa ajuda, nomeadamente na parte da reconstrução. E têm uma vantagem fundamental - permitem previsibilidade. Durante um ano, os ucranianos sabem que esse dinheiro vai ser injetado de forma regular. E tem ainda mais importância sabendo que o Congresso vai mudar”.
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