Ataque ou acidente, a versão russa e a reação da NATO: o que vai mudar na guerra depois de a Polónia ter sido atingida?
ANATOLII STEPANOV/GETTY IMAGES
Ouvidos pelo Expresso sobre os mísseis que atingiram território polaco, analistas portugueses e norte-americanos consideram que o mais provável é ter-se tratado de um acidente, mas "poderá haver uma escalada do conflito", com uma retaliação direta por parte da Polónia e o envio de mais tropas para o leste europeu. A reação da NATO é incerta, mas pode estar em causa a “segurança nacional de outros países” da Aliança
Pouco se sabe ainda sobre os mísseis que caíram esta terça-feira em território polaco e que fizeram dois mortos, mas a teoria de que se tratou de um “ataque intencional não parece sustentável”, dizem especialistas ouvidos pelo Expresso a propósito das explosões que se registaram esta terça-feira na aldeia de Przewodow, no leste da Polónia, a escassos quilómetros da fronteira com a Ucrânia.
"A tese de que a Rússia pretendeu atingir a Polónia não me parece sustentável. Se fosse uma declaração de guerra, os mísseis não teriam caído sobre uma pequena aldeia na linha de fronteira. A dimensão do incidente teria sido outra", diz o major-general Arnaut Moreira.
Para o especialista em geopolítica e geoestratégia, deverá ter-se tratado de um acidente, considerando o elevado número de mísseis russos que foram disparados nas últimas horas, atingindo o território ucraniano e regiões perto da fronteira com a Polónia. Alguns destes mísseis podem, devido a eventuais problemas técnicos, não ter atingido os alvos pretendidos, caindo em território polaco.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Polónia indicou esta terça-feira que um “míssil de fabrico russo” foi responsável pela morte de duas pessoas em Przewodów, de acordo com um comunicado citado pelo jornal britânico “The Guardian”.
Também o analista Germano Almeida aponta a possibilidade de ter sido um acidente: a Rússia tem sido “bastante incompetente” no campo de batalha e passou as últimas horas a atacar a Ucrânia naquela zona. "As explosões podem ter resultado da queda de restos de mísseis que foram interceptados e destruídos por sistemas de defesa ucranianos”, explica o major-general Isidro Pereira, antigo representante de Portugal na NATO, para quem a Rússia "não teria qualquer interesse em atacar propositadamente a Polónia".
A mesma leitura é feita por Raphael Cohen, investigador de Ciência Política do 'think tank' RAND, que oferece análises e informação às Forças Armadas dos Estados Unidos. “Pode ter sido uma tentativa ucraniana de neutralizar um míssil russo”, diz, ressalvando que é necessária uma análise forense para compreendermos o que aconteceu." O analista não sabe por quanto tempo essa investigação poderá prolongar-se, mas acredita que será uma análise rápida.
Especialistas não descartam “ataque intencional”
Os especialistas portugueses não afastam, contudo, a hipótese de ter sido um “ataque intencional". “Poderá ser esse o caso, tendo em conta o que aconteceu nos últimos dias. Os combates correram muito mal à Rússia”, sobretudo com a perda de Kherson, diz Germano Almeida. “Estes ataques em território polaco inserem-se no ‘modus operandi’ russo: quando perdeu Kharkiv, começou a atacar centrais elétricas, quando Guterres foi a Kiev, lançou um ataque perto, quando Biden esteve na Polónia, também”, lembra o especialista.
"Pode ter havido uma tentativa de cortar as principais rotas que têm sido utilizadas para fazer chegar armas e munições à Ucrânia. Grande parte delas concentram-se na Polónia”, sugere, por sua vez, Isidro Pereira. Podemos, por outro lado, estar perante uma tentativa da Rússia de “criar uma narrativa interna" para justificar a saída da Ucrânia, numa altura em que enfrenta graves dificuldades no terreno, aponta.
“Nesse caso, Moscovo diria que, face à intervenção da NATO no conflito e à impossibilidade de combater contra uma coligação imensa de países, teria sido forçada a retirar-se do país; efetivamente, podemos estar perante uma tentativa de Putin de limpar a sua face", acrescenta Isidro Pereira. Se realmente tiver sido um ato deliberado, trata-se "do passo mais estúpido que a Rússia já deu, porque esta é uma luta que não vai querer combater", comenta Raphael S. Cohen.
“Pedido de desculpas” é decisivo
Segundo Arnaut Moreira e Isidro Pereira, a resposta para quase todas as questões está na reação de Vladimir Putin ao incidente. "Se fizer um pedido de desculpas formal, assumindo que foi um acidente e disponibilizando-se até para indemnizar as vítimas, o assunto deverá ficar por aqui”, antecipa diz Arnaut Moreira. Se não o fizer, “entraremos num patamar diferente”. “É o pior dos cenários, sendo expectável uma escalada da tensão”, adianta. “Se Moscovo não pedir desculpas formalmente, é um sinal claro de que houve a intenção de atingir a Polónia”, sublinha Isidro Pereira.
Arnaut Moreira não acredita, contudo, que possa ser acionado o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, que refere que um ataque armado contra um ou vários países signatários do tratado é considerado um ataque contra todos. Aqui, Isidro Pereira discorda. “Estes ataques com mísseis podem fazer com que, em breve, a Polónia acione o artigo 5.º”
Se Putin não pedir desculpa, a Polónia “vai retaliar”
Mesmo que não o faça, a Polónia "está no direito de retaliar" — e é isso que "vai fazer de certeza", consultando, ao abrigo do artigo 4.º do Tratado do Atlântico Norte, os restantes países que integram a Aliança, antecipa Isidro Pereira. Esse artigo funciona como uma espécie de preâmbulo ao artigo 5.º, estabelecendo que "as partes [da aliança] irão consultar-se entre si quando, segundo a opinião de qualquer uma, a integridade territorial, a independência política ou a segurança de uma das partes estiverem sob ameaça".
Ou seja, trata-se de um passo intermédio que já foi dado pelo menos seis vezes desde a criação da aliança. “A Polónia pode acionar este artigo e pedir ajuda aos outros países se se sentir atacada”, corrobora Germano Almeida. Aliás, Polónia, Letónia, Estónia e Lituânia já tinham acionado este artigo no primeiro dia da guerra, a 24 de fevereiro.
Estará em causa a “segurança nacional” dos outros países?
Ainda que tenham sido mísseis russos a atingir território polaco, as avaliações que vão ser feitas focar-se-ão em perceber se este foi um “evento isolado” ou se se trata de “um sinal de escalada para outros países”, diz Raphael S. Cohen. "Quem partilha fronteiras com a Rússia leva estes incidentes muito a sério". A hipótese de terem sido dois mísseis russos a matar duas pessoas é "bastante perturbadora", mas as outras teorias são também preocupantes. "Passa a ser um assunto de segurança nacional para outros países."
"Durante a Guerra Fria, houve muitos incidentes e ações no limite, mas ambos os lados trataram de não fazer escalar o conflito. Um ataque acidental não deixa de ser um tema sério, e não ficaria surpreso se alargassem as defesas antiaéreas da NATO no leste europeu."
Entre esses países, estão a Roménia e os do Báltico, que já aumentaram as suas despesas com Defesa e "provavelmente pedirão mais apoio aos norte-americanos", antecipa, por sua vez, Mark Cancian, antigo conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano.
“Não é por isto que os EUA vão entrar na guerra e atacar a Rússia”
Não se tratando de uma iniciativa militar deliberada, a resposta norte-americana terá de ser diferente, diz ainda o ex-conselheiro. "Durante a Guerra Fria, houve muitos incidentes e ações no limite, mas ambos os lados trataram de não fazer escalar o conflito. Um ataque acidental não deixa de ser um tema sério, e não ficaria surpreso se alargassem as defesas antiaéreas da NATO no leste europeu."
Todas as iniciativas que a aliança poderá iniciar acontecerão dentro das fronteiras dos Estados aliados, de acordo com o analista, que relembra como 18 mil tropas foram enviadas para a Europa. "Algumas já vieram do leste europeu, mas acredito que regressarão.”
A hipótese de uma “demonstração de força” por parte de Moscovo vai ser avaliada nas próximas horas. O artigo 5.º só foi acionado uma vez – após o 11 de setembro – e por isso avançar timings sobre uma eventual tomada de posição da NATO é um exercício difícil. Mas Germano Almeida garante: “Putin sabe que não é por isto que os EUA vão entrar na guerra e atacar a Rússia no seu território.”
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