Nacionalistas e imperialistas da extrema-direita: a história dos neonazis russos que alegam "desnazificação" para combaterem na Ucrânia
Vários nacionalistas de extrema-direita estão a lutar pelo lado de Moscovo
Getty
A narrativa oficial russa, de que Moscovo quer combater os neonazis da Ucrânia, oculta que, também entre as tropas da Rússia, há militantes do neonazismo e da extrema-direita. Estas são algumas das histórias das dezenas de soldados russos seguidores desta ideologia
Em maio, um relatório dos serviços secretos da Alemanha, publicado no jornal "Der Spiegel", dava conta da existência de pelo menos dois grupos da extrema-direita que combatem ao lado da Rússia na guerra na Ucrânia: a Legião Imperial Russa e o grupo paramilitar Rusich.
A Legião Imperial Russa é a ala paramilitar do Movimento Imperial Russo (RIM, na sigla em inglês), um grupo defensor da supremacia branca, fundado por Stanislav Vorobyov, em 2002 e definido pelos Estados Unidos da América e pelo Canadá como uma organização terrorista. A história da RIM na Ucrânia não se iniciou em fevereiro deste ano. A unidade paramilitar da RIM começou a lutar no Donbas em 2014. Os combatentes do grupo não escondem o rosto e são frequentemente fotografados com bandeiras imperialistas. De acordo com o "Der Spiegel", o líder da RIM, Denis Gariyev, foi ferido em combate, na Ucrânia, no início deste ano. Em maio, a Legião Imperial Russa informou que a segunda figura mais relevante da RIM, Denis Nekrasov, tinha morrido depois de o seu veículo ter atingido uma mina terrestre perto de Izyum.
Em comparação com a Legião Imperial Russa, o grupo paramilitar Rusich é ainda mais radical. Os combatentes do grupo usam abertamente o kolovrat (um símbolo em forma de sol utilizado no lugar da suástica) e outros símbolos associados a grupos da extrema-direita, como o valknut, que aparece nas faixas pretas do grupo paramilitar. Entre os seus membros, Rusich conta com várias pessoas que pertenciam a grupos neonazis russos no final dos anos 2000. O seu fundador, Alexey Milchakov, não é exceção.
Kramatorsk, no leste da Ucrânia
MIGUEL MEDINA
Vários músicos da banda da extrema-direita Russkyi Styag estão a combater na Ucrânia integrando a Rusich, de acordo com a "Deutsche Welle". O líder da banda, Evgeny Dolganov, também apoiou ativamente a “operação militar especial” do Kremlin, dando concertos na linha de frente e entrevistando outros nacionalistas de extrema-direita.
Evgeny Dolganov era um membro ativo da Sociedade Nacional Socialista (NSO), um grupo radical cofundado pelo neonazi bielorrusso Serhii “Botsman” Korotkyh. O neonazi russo Maxim “Tesak” Martsinkevich era outro membro amplamente conhecido deste coletivo. Após o colapso do NSO, Serhii “Botsman” Korotkyh deslocou-se para a Ucrânia, onde combateu enquanto voluntário junto do batalhão de Azov, tornando-se, mais tarde, agente de polícia. Hoje, juntamente com outros ex-líderes da NSO, por exemplo Andrey “Ded” Dedov e Artyom “Uragan” Krasnolutsky, combate as tropas russas, endossando as Forças Armadas Ucranianas.
Andrey “Ded” Dedov era, com Gleb Erve, coproprietário de um estúdio de tatuagens em Moscovo. Após o início da invasão, Gleb Erve tornou-se correspondente da agência de notícias estatal russa RIA Novosti, reportando a ofensiva para alegadamente “desnazificar a Ucrânia”. Algumas das tatuagens que Gleb Erve tem no corpo são, na verdade, símbolos da extrema-direita, como o emblema do Partido Nacional Fascista italiano, de Benito Mussolini, que está pintado na parte de trás da sua cabeça. De acordo com o site Antifa.ru, Gleb Erve também tinha um canal no YouTube, onde propagava ideias da extrema-direita.
Na rede social Telegram, em maio, o combatente reconheceu que pertencia a essa ala extremista de direita, mas disse que se desiludiu com o movimento, que abandonou há três anos. Gleb Erve também afirmou que a sua experiência passada com a extrema-direita o ajudou a saber “que literatura procurar nas escolas ucranianas” e como entrevistar “corretamente” prisioneiros de guerra ucranianos do Batalhão Azov.
Batalhão Azov, em Kharkiv
Paula Bronstein
A narrativa oficial russa
Quando anunciou a invasão da Ucrânia, em fevereiro, Vladimir Putin vincou que um dos objetivos da Rússia era “desnazificar” o país. Nos meses que se seguiram, a propaganda do Kremlin continuou a transmitir a ideia de que as tropas russas estavam a "destruir" e capturar “nacionalistas” e “neonazis” na Ucrânia, caracterizando todos os soldados ucranianos como radicais de extrema-direita e ignorando o facto de que milhares de civis inocentes morreram durante a guerra. A narrativa oficial russa também deixa de fora que vários nacionalistas de extrema-direita combatem atualmente ao lado de Moscovo.
Em junho de 2022, fotografias de um homem em frente a uma bandeira alemã começaram a circular nos canais ucranianos do Telegram. Cabeça rapada, várias tatuagens, incluindo um retrato de Adolf Hitler no ombro, o emblema do Terceiro Reich no peito e, no antebraço, a frase “Jedem das seine” ["a cada um o que lhe é devido"], o lema gravado no portão principal do campo de concentração nazi de Buchenwald. Tratava-se de Anton Raevsky, um conhecido nacionalista russo que, entre 2014 e 2015, lutou ao lado das forças russas e apoiadas pelo Kremlin no Donbas. Em abril de 2022, o combatente partiu para a guerra mais uma vez.
"Sentava-se na última fila e lia 'Mein Kampf'"
O site de notícias russo Meduza averiguou que Anton Raevsky, de 37 anos, nasceu e foi criado na região de Oryol, na Rússia. Um conhecido de longa data do combatente, entrevistado pelo órgão de comunicação expulso da Rússia, detalhou que Anton Raevsky já tinha uma “tendência religiosa” quando se conheceram na adolescência, em 2002. Gostava de “ler a literatura” de seitas protestantes, pagãs e satanistas. Era atlético e gostava muito de karaté. Ao contrário dos colegas, Anton Raevsky apresentava um bom comportamento na escola embora “se sentasse calmamente na última fila e lesse 'Mein Kampf'” [livro de Adolf Hitler].
Nos anos 2000, Raevsky testou três grupos nacionalistas, mas acabou por cortar os laços com todos, exceto um – Centenas Negras (Chornaya Sotnya, em russo). Os princípios do grupo abrangiam todas as visões centrais de Anton Raevsky: antissemitismo, apoio à monarquia como forma de governo e ortodoxia russa. De acordo com a fonte ouvida pela Meduza, o combatente chegou a realizar uma viagem especial a São Petersburgo para se encontrar com o fundador do grupo, Alexander Shtilmark, que lhe concedeu permissão para abrir uma filial da "Black Hundred" em Oryol. No regresso a casa, Anton Raevsky cobriu a cidade com pintutas temáticas alusivas ao grupo, a graffiti.
No final dos anos 2000, Anton Raevsky mudou-se brevemente para São Petersburgo, onde conseguiu um emprego como segurança e fez amizade com uma figura de relevo nos círculos neonazis russos da época – Dmitry Bobrov, também conhecido como “Schultz”. Depois, juntou-se ao grupo extremista Iniciativa Social Nacional (NSI).
Anton Raevsky foi pela primeira vez à Ucrânia em 2014, depois de a Revolução da Dignidade ter explodido em Kiev. Com a vontade de apoiar as forças pró-Rússia, juntou-se ao Odesskaya Druzhina, um grupo militar radical em Odessa. Pouco tempo depois, foi lutar no Donbas. O documento de identificação militar foi assinado por Igor Strelkov, um antigo integrante russo do FSB que se tornou um notório líder “separatista”.
Em 2021, Anton Raevsky decidiu juntar-se ao Partido Liberal Democrata da Rússia - força política nacionalista - para concorrer às eleições municipais. Após a controvérsia em torno da sua nomeação, Raevsky retirou a candidatura por “razões técnicas”.
Em 20 de abril de 2022, o partido adiantou que Anton Raevsky foi lutar para a Ucrânia como voluntário. “Ele considerava que era dever seu ir para a linha de frente e combater o tumor crescente do nazismo na Ucrânia”, podia ler-se no comunicado divulgado na rede social Telegram.
Um mês antes, Anton Raevsky tinha publicado, na rede social VKontakte, imagens da nova tatuagem, que cobria várias tatuagens com motivos nazis no braço direito. Ao site Meduza, o combatente garante que “se afastou do hitlerismo”, considerando-se agora um nacionalista ortodoxo russo e um acérrimo defensor da monarquia absoluta. “Mas também enfatizo que, no caminho do renascimento da nação russa, deve haver um período de ditadura nacional”, acrescentou.
O envolvimento de nacionalistas russos de extrema-direita e neonazis na guerra contra a Ucrânia tem sido mantido em segredo. De acordo com o site Meduza, haverá, no entanto, apenas algumas dezenas no ativo. E muitos dos militantes neonazis, como Anton Raevsky, combateram também no leste da Ucrânia em 2014.
264 combatentes ucranianos foram retirados de Azovstal
A Radio Free Europe lembra que, em 2011, também o neonazi Alexey Milchakov, de 20 anos, foi notícia por matar um cachorro e publicar fotografias chocantes do animal morto nas redes sociais. Apelidado de “Fritz”, o combatente juntou-se à filial de São Petersburgo da União Eslava, uma das organizações neonazis de Dmitry Demushkin, no início dos anos 2000. Quando a guerra eclodiu no Donbas, em 2014, Milchakov adotou o indicativo de chamada “sérvio” e, como disse em entrevista, juntou-se à luta, alocado a um “pequeno grupo de nacionalistas russos”.
No Donbas, Alexey Milchakov associou-se ao nacionalista radical Yan Petrovsky (apelidado de “Veliky Slavyan” ou “O Grande Eslavo”), que tinha conhecido em São Petersburgo, em 2011. Petrovsky – um cidadão russo que se mudou para a Noruega em 2004 - também teve problemas com a lei um ano antes: a polícia norueguesa invadiu o estúdio de tatuagens onde o nacionalista trabalhava e tinha encontrado um esconderijo de armas ilegais pertencentes a Vyacheslav Datsik, um neonazi russo que fugira de um hospital psiquiátrico de São Petersburgo. Yan Petrovsky deixou de ter direito a residência permanente em 2016 e foi deportado.
Milchakov e Petrovsky lideraram em conjunto a organização Rusich, que lutou no Donbas ao abrigo de outra unidade de milícias pró-Rússia, o Grupo de Resposta Rápida “Batman”. Alexey Milchakov chegou a admitir abertamente que foi ao Donbas “para matar” e assumiu ser nazi.
Terminados os intensos combates no Donbas, em 2015, Alexey Milchakov juntou-se ao Grupo Wagner, uma empresa militar privada financiada pelo oligarca Evgeny Prigozhin, e ligado ao Kremlin. Em 2017, o site de notícias Fontanka, com sede em São Petersburgo, informou que Milchakov estava a combater na Síria. Após 24 de fevereiro de 2022, o militante da extrema-direita regressou à Ucrânia, onde terá sido “levemente ferido” em abril de 2022.
Em junho de 2022, Yan Petrovsky voltou a São Petersburgo, mais uma vez, desta feita para enterrar um dos seus companheiros que tinham morrido na Ucrânia. No funeral, Petrovsky – cercado por elementos com uniformes do Sindicato dos Voluntários do Donbas – fez um elogio funerário: “Os portões de Valhala abriram-se realmente diante dele, e ele entrará com honra e dignidade. Vamos encontrá-lo lá um dia, reunir-nos-emos à mesa e festejaremos. Glória à Rússia!”
Viatura do Grupo Wagner na base de Bangassou, na República Centro-Africana, em 2021
Evgeny Rasskazov, conhecido como “Topaz” nas redes sociais, nasceu e foi criado na cidade de Makiivka, no Donbas. Juntou-se à Rusich em 2014, depois de ver um anúncio para novos recrutas que Alexey Milchakov publicou online. Evgeny Rasskazov tem agora um um canal no Telegram, onde publica, com frequência, conteúdos sobre a vida quotidiana de um “desnazificador” que combate contra a Ucrânia. A 20 de abril, o soldado fez uma publicação de feliz aniversário dedicado a Adolf Hitler (embora não o tenha nomeado de forma direta). “Hoje é o aniversário do nosso companheiro de armas e amigo, que se tornou um exemplo para muitos de nós. E, mesmo que ele se tenha afastado de nós há muito tempo, as suas ações e palavras vivem nos nossos corações e inspiram-nos a vencer a escória e a multiplicar a glória da grande Rússia.”
A publicação incluía uma fotografia tirada pelo militar, contra o fundo de um veículo militar russo adornado com a letra Z pró-guerra, a runa Tyr e o número 88 (uma abreviação numérica para “Heil Hitler”).
"Um nacionalista russo não pode não ser um imperialista"
Os anos 2000 foram o auge da subcultura de extrema-direita na Rússia e na Ucrânia. Moscovo, São Petersburgo, Kiev e Kharkiv tornaram-se verdadeiros centros para os radicais de extrema-direita. Serhii Korotkykh, o infame neonazi bielorrusso também conhecido como “Botsman” e “Malyuta”, disse à Meduza que, antes de 2014, nacionalistas da extrema-direita da Rússia eram “especificamente orientados para a Ucrânia”.
Os nacionalistas russos viajavam regularmente para festivais de música de extrema-direita e concertos em Kiev, Kharkiv e outras cidades ucranianas. Bandas russas de extrema-direita faziam digressões frequentes na Ucrânia (e vice-versa), eventos que atraíam uma multidão de skinheads, mas também fãs de black metal e hooligans de futebol, de acordo com um entrevistado ouvido pelo site Meduza.
Nessa época, as relações entre os nacionalistas ucranianos e russos eram amigáveis. Durante anos, os nacionalistas ucranianos esconderam, alimentaram e apoiaram pessoas que a Rússia assinalara em listas federais de procurados. Vários nacionalistas russos escondiam-se do sistema de justiça russo na Ucrânia ocidental, onde os nacionalistas ucranianos forneciam o apoio possível. Mais tarde, a febre imperialista russa atingiu máxima potência.
Dmitry (nome que foi alterado pelo site Meduza, para preservar o anonimato) esteve envolvido no movimento radical de direita da Rússia nos anos 2000, e agora apoia a alegada “operação militar especial”. À Meduza, assegurou que “um nacionalista russo não pode deixar de ser imperialista”.
“A única coisa que representa poder neste mundo é um império. Qualquer nação não imperial torna-se satélite de alguém. Em 1991 [fim da União Soviética], o equilíbrio foi perturbado. E para restaurá-lo, a Rússia tem de recuperar a sua força."
Tal como um manifesto que Putin escreveu anos antes da invasão em larga escala, Dmitry afirma que “os ucranianos não existem como uma nação independente” e que “a entrada de tropas [russas] na Ucrânia foi provocada pelo Ocidente”. São argumentos que ecoam, quase palavra por palavra, a retórica de Vladimir Putin desde fevereiro deste ano.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes