O Papa Francisco quer encontrar-se com Cirilo pela segunda vez na história — mas isso “seria bom para os interesses do patriarca de Moscovo”
A primeira vez que o líder da Igreja Católica, o Papa Francisco, e o líder da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Cirilo, se encontraram foi em Cuba, 2016
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O Papa Francisco quer estar com o líder da Igreja Ortodoxa Russa para “mediar o fim do conflito” na Ucrânia e — a acontecer — o momento seria “simbólico”. Mas não “um sinal de aproximação” entre as duas Igrejas. Para o estudioso em religião Pedro Valadares, o patriarca Cirilo vai querer usar este encontro como confirmação e reconhecimento da sua “grandeza”
O Vaticano está a estudar um encontro entre o Papa Francisco e o patriarca ortodoxo russo Cirilo, em Jerusalém, daqui a dois meses. A viagem do líder da Igreja Católica ainda não é certa: foi avançada no início desta semana como uma possibilidade, mas é um sinal claro de diplomacia religiosa por parte da Santa Sé. O Papa Francisco “quer mediar o fim do conflito” na Ucrânia, contextualiza Pedro Valadares, estudioso em assuntos religiosos. Aliás, logo a 24 de fevereiro, dia em que a invasão russa começou, o Vaticano mostrou-se disponível para ajudar nas negociações de paz entre os dois países.
Seria apenas a segunda vez que o Papa Francisco e o patriarca de Moscovo Cirilo se encontrariam presencialmente. A estreia foi em Cuba, em 2016: pela primeira vez, um Papa e um líder da Igreja Ortodoxa Russa estiveram frente-a-frente desde o Grande Cisma de 1054, que dividiu a Igreja Católica em duas (Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Católica Apostólica Ortodoxa). Ambos estiveram juntos em Havana, na mediação do conflito entre Estados Unidos e Cuba, que permitiu a reconciliação após meio século de tensões.
Agora, o plano da Santa Sé é este: o Papa Francisco, de 85 anos, vai estar no Líbano no dia 12 e 13 de junho, depois voaria para Amã, na Jordânia, na manhã de 14 de junho. De lá, embarcaria num avião para Jerusalém, no mesmo dia, para encontrar-se com Cirilo e, de lá, regressaria a Roma. A informação foi avançada por duas fontes do Vaticano à agência Reuters, esta segunda-feira. Uma diz que a viagem é quase certa, a outra ressalva que é apenas uma possibilidade.
Pedro Valadares lembra: “O Papa já disse que se encontrava com Cirilo onde quer que fosse, não me admiro nada que seja no Médio Oriente”, até porque o Sumo Pontífice “nunca foi à Ucrânia” e a Rússia também não seria uma opção em cima da mesa. O possível encontro “não significa um sinal de aproximação” entre a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, mas um episódio semelhante ao de 2014, em Cuba, com um objetivo concreto — ainda que neste caso os dois lados tenham motivações diferentes.
O Papa Francisco e o patriarca Cirilo falaram por videochamada no dia 16 de março sobre sobre a situação humanitária na Ucrânia
Mondadori Portfolio
Um encontro com interesses diferentes
Como aponta o especialista, o Papa quer mediar a paz na Ucrânia, não se trata de uma tentativa de aumentar a esfera de influência da Santa Sé no leste. “O Papa conhece bem o contexto religioso do país” e sabe que as más relações entre Ucrânia e Rússia também se estendem à religião. Para contextualizar: a Igreja Ortodoxa da Ucrânia é independente da Rússia desde 2018, mas o Patriarcado de Moscovo entende que a Ucrânia pertence ao seu território canónico e, por isso, não lhe reconhece autocefalia (independência em linguagem eclesiástica).
O eventual encontro é um sinal de diplomacia religiosa, mas também está relacionado com a crítica feita pelo Papa às Nações Unidas, nota Pedro Valadares. Na semana passada, o Sumo Pontífice criticou a impotência da ONU para intervir nas negociações de paz. “Após a Segunda Guerra Mundial, tentou criar-se a base para uma nova história de paz, mas infelizmente não estamos a aprender. Seguiu em frente a velha história das grandes potências concorrentes. Na atual guerra na Ucrânia, assistimos à impotência da Organização das Nações Unidas”, criticou. Depois, beijou a bandeira ucraniana vinda da cidade martirizada de Bucha.
Por outro lado, Cirilo vai querer usar este encontro para que o chefe supremo da Igreja Católica confirme e “reconheça a sua grandeza”, analisa Pedro Valadares. O patriarca de Moscovo já disse uma vez ao Papa: “Somos os líderes das duas maiores Igrejas do mundo”. Agora, seria uma forma de ser reconhecido pelo Papa Francisco como o “interlocutor privilegiado de toda a Igreja Ortodoxa”. Assim, o encontro seria sobretudo um “momento simbólico” e, na verdade, não são de esperar grandes resultados. Acima de tudo, “seria bom para os interesses do patriarca de Moscovo ser reconhecido pelo seu igual”, resume.
O presidente russo, Vladimir Putin, e o patriarca de Moscovo, Cirilo
MIKHAIL METZEL
“A religião tem sempre um papel na guerra”
A concretizar-se, o plano terá de ser aprovado pelo Presidente russo, uma vez que o patriarca de Moscovo está alinhado com o Kremlin e com a narrativa de mundo russo e território canónico. Cirilo tem dado a Putin argumentos históricos e religiosos para legitimar a invasão da Ucrânia, e incentiva até os soldados russos a defenderem o seu país “como só eles sabem”.
“A religião tem sempre um papel na guerra”, lembra Pedro Valadares. E, neste caso, o patriarca de Moscovo e o Papa Francisco têm uma abordagem diferente. Cirilo “está ao serviço de Putin e da Rússia — há um claro alinhamento político”, enquanto o Papa está mais preocupado com o cessar-fogo, mensagem que já transmitiu ao líder da Igreja Ortodoxa Russa.
Ambos falaram por videochamada no dia 16 de março. Nessa conversa, o Sumo Pontífice deixou claro a Cirilo que “a Igreja não deve usar a linguagem da política, mas a linguagem de Jesus”. “Somos pastores do mesmo povo santo que crê em Deus, na Santíssima Trindade, na Santa Mãe de Deus: por isso devemos unir-nos no esforço de ajudar a paz, os que sofrem, e de encontrar caminhos para a paz e deter o fogo”, clamou o Papa Francisco.