“Russos vão para a Igreja Russa, sabe? Eles rezam para o patriarca deles, e isso é diferente”. O padre Micaelo é ucraniano, está em Portugal há 22 anos e é responsável pela comunidade ortodoxa na paróquia de São Pantaleão, no Porto. A sua paróquia é “comum” e recebe sobretudo ucranianos, mas também “georgianos, moldavos, romenos, búlgaros, gregos, portugueses e espanhóis”. Russos não há, “eles vão para a Igreja deles”. O padre Micaelo refere-se à Igreja Ortodoxa Russa, do Patriarcado de Moscovo. Mas apesar da divisão entre as duas Igrejas, não deixa de atender nenhum crente só por falar russo, porque a Igreja “abraça todos os que lá entram” e “não tem política”.
A Igreja não tem política, mas a política sente-se na Igreja. O conflito entre Ucrânia e Rússia é antigo e as más relações entre os dois países também se estendem à religião. Há um “mal estar” entre a Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Ortodoxa da Ucrânia que “é muito antigo”, começa por explicar Pedro Valadares, estudioso de assuntos religiosos. Quando a União Soviética caiu, a Ucrânia acabou por se tornar uma “área de influência política e religiosa” para a Rússia. E “o que Putin vê na independência da Ucrânia é o que viu na autocefalia [independência em linguagem eclesiástica] desta Igreja”, acrescenta.
A Igreja Ortodoxa da Ucrânia é independente da Rússia desde 2018. Há quatro anos, o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I (considerado o líder máximo ortodoxo), decidiu conceder autocefalia à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada a Moscovo desde 1686. A Igreja Ortodoxa Russa não gostou da decisão e rompeu relações com o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla. Foi o primeiro grande cisma religioso desde o século XI.
Como Moscovo tem a ambição de ser “a terceira Roma” (depois de Roma e de Constantinopla), contextualiza Pedro Valadares, perder a Ucrânia foi sinónimo de perder autoridade e influência. “É uma questão puramente de poder e há esta ideia de que existe ali um território canonicamente russo, portanto não é admitida a existência de outras Igrejas [na Ucrânia]”, esclarece. Mesmo contra a vontade do Patriarcado de Moscovo — que é o mais numeroso da comunhão ortodoxa (tem quase dois terços dos fiéis) — as duas Igrejas separaram-se e seguiram caminhos diferentes.
Depois do cisma de 2018, a situação ficou assim: de um lado a Igreja Ortodoxa Russa, do Patriarcado de Moscovo, do outro a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que resultou da fusão da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev e da Igreja Ortodoxa Autocéfala. Desde então, a divisão entre russos e ucranianos intensificou-se no domínio religioso, mas nem assim ficou clara.
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