“Sobrevivi a este inferno e agora quero contar ao mundo”. O diário na guerra de uma ucraniana em Gostomel, a 30 kms de Kiev
“Sou da Ucrânia, nascida em Odessa, e morei até há pouco em Gostomel, um subúrbio acolhedor de Kiev. Sobrevivi a este inferno e agora quero contar ao mundo como foram estas duas semanas”. Inna Nestoiter, professora e russo e inglês, escreveu durante duas semanas o que viu e sentiu, na cidade dos subúrbios de Kiev que foi tomada pelo exército russo. Até conseguir sair da cidade. Esta é a história de quem sobrevive, na primeira pessoa
Fui acordada pelo telefonema de uma amiga, às 5h30: “Inna, acorda, é a guerra.” Não percebi logo do que é que ela estava a falar. Que guerra? Há silêncio, as pessoas estão a dormir. Fiz o café da manhã, abri o Google. E então... Da janela da cozinha vi lá fora uma pequena mosca preta, depois outra. Olhei mais de perto. Eram helicópteros, a voar por cima das copas das árvores, uns 30, talvez mais. E sons irrealistas para os moradores - o som de explosões. Eram bombardeamentos e aterragens num aeródromo militar. Depois apareceu um caça. Fiquei gelada, não me conseguia mexer. Depois um segundo caça. Fiquei imóvel várias horas, no chão, porque era assustador.
25 de fevereiro – Na cave, a respirar ar frio e pó de cimento
As pontes em torno de Gostomel que a ligam à capital foram destruídas, para cortar o caminho ao inimigo. É impossível ir seja para onde for, ouvem-se combates por todo o lado, há helicópteros inimigos a sobrevoar e a bombardear o aeroporto. Até hoje, não tinha confiança com a maior parte dos vizinhos. Agora tornámo-nos todos uma grande família. Foi a última vez que tive luz e aquecimento: Irpin, Gostomel e Bucha ficaram neste dia sem eletricidade. Levámos cobertores para a cave e arranjámos uma cama. Éramos 50 pessoas, de todas as idades – o mais novo tem apenas 4 meses -, a respirar ar frio e pó de cimento.
26 de fevereiro – Metralhados ao sair da loja
Os homens encontraram um gerador e estenderam cabos nas nossas três caves, para carregar os telemóveis. Na maioria dos apartamentos do nosso bairro, Pokrovsky, os fogões são elétricos. Eu tenho gás, e por isso posso ir à minha cozinha para fazer pratos quentes e ferver água. No quinto andar do meu prédio vive a dona do minimercado Tray, que fica num dos prédios. Ela abriu-o, para que todos fossem lá buscar comida para levar para a cave. Na rua seguinte, outra loja e outros vizinhos fizeram o mesmo. Temos de comer, e ainda por cima há muitas crianças pequenas. Quando as pessoas estão a sair do minimercado ouve-se um helicóptero, que começa a disparar sobre elas. Milagrosamente, conseguem escapar. Sentamo-nos na cave e ouvimos um helicóptero inimigo a voar entre os nossos prédios.
27 de fevereiro – “Já não sentimos o pó do cimento”
Todos aprenderam a distinguir pelo som o que é e de onde vem. Quando somos atingidos por uma saraivada, escondemo-nos na cave, quando são tiros de morteiro refugiamo-nos do lado do campo. Se as explosões não forem muito fortes, voltamos ao andar de cima, para respirar. Hoje algo passou a rasar pela orelha de um dos meninos e caiu a 50 metros da nossa cave. No primeiro andar, as janelas de vários apartamentos voaram.
Agora os dias são todos iguais. Algo voou para dentro de uma casa e explodiu. A casa começou a arder, mas não há ninguém nem nada para apagar as chamas, porque já não há água. Vemos uma fábrica de vidro a arder a 500 metros e ouvimos estrondos de combates vindos de lá. Na maior parte do tempo sentamo-nos na cave - velhos e novos, mulheres e homens, três cães e alguns gatos. Já não sentimos o pó do cimento. Eu continuo a correr para casa para fazer chá e sopa para os moradores da nossa cave. Tornámo-nos uma família, apoiamo-nos e não deixamos que o desespero tome conta de nós. Brincamos, ouvimos notícias na rádio, ligamos o gerador uma vez por dia e recarregamos os nossos aparelhos. Não o podemos fazer com mais frequência porque o gerador funciona a gasolina e não temos mais. O presidente da câmara e voluntários vieram duas vezes trazer-nos comida, água e medicamentos.
Dias todos iguais
Eu e o meu filho estamos na cozinha, a aquecer água e a cozinhar carne para os habitantes da nossa cave. Da janela consigo ver pessoas armadas, que vão do clube para o prédio. São vinte. Conto o que vejo aos outros, por telefone. Então reparo que a bandeira da Ucrânia na frontaria do clube desapareceu. Percebo que Gostomel foi ocupada. E de repente o meu prédio começa a tremer, por causa de uma explosão muito forte. Eu e o meu filho vamos para a casa de banho, porque percebemos que não há tempo para ir para a cave. No intervalo entre explosões e bombardeamentos, abri uma mensagem enviada pelos vizinhos que estão na cave: não sair, há um atirador inimigo no local. Um dos vizinhos foi baleado numa perna e arrastado para a cave. Andamos entre a casa de banho e o quarto. Às vezes rastejo até à janela da cozinha, para ver o que se está a passar lá fora e se é possível (ou se temos tempo) correr até à cave. Em frente ao clube há dois blindados, que vão para a estrada, disparam e voltam a esconder-se por trás das paredes do prédio. Atrevo-me a ir até à janela e tiro uma fotografia. Olho em redor e vejo que há dois tanques sob o prédio bombardeado, logo abaixo da entrada. Não são nossos. Quando a noite se aproxima, conseguimos escapar para a cave.
A manhã do dia seguinte
... começou com outro choque. Há blindados inimigos em cada entrada do nosso bloco de apartamentos. E muitos, muitos soldados. Todas as janelas dos primeiros andares estão partidas, as portas da frente estão abertas, em todas as casas há inimigos. Derrubam as portas dos apartamentos. Andam à procura de soldados ucranianos e de armas e explosivos. É óbvio que não temos armas nem explosivos, nem nunca tivémos. Mas não havia ninguém com quem falar. Consegui chegar à minha porta, por isso não a arrombaram. Revistaram o apartamento e permitiram que ficasse nele. Os ocupantes de outra cave tiveram menos sorte. Foram todos levados para o pátio, as caves foram revistadas, o gerador, os telemóveis e outros aparelhos foram confiscados. Os invasores instalaram o quartel-general no 5.º andar e avisaram que só podemos andar durante o dia. Tentaram dizer-nos que tudo estava bem e que nos tinham vindo libertar. Não sei de onde tirámos esta coragem imprudente, porque e os meus vizinhos dissemos-lhes: “Conseguem libertar-nos de vocês próprios? Vieram para as nossas casas, não vos chamámos. Nós éramos livres. Vão-se embora.”
Na manhã seguinte
... não reconheci o meu apartamento. Estava tudo virado do avesso e a mobília tinha sido levada para as escadas. Comida nem vê-la. Tinham aberto uma garrafa de Prosecco na cozinha e deitado o vinho em copos novos, mas não foi bebido. Milagrosamente, encontrei um pedaço de queijo e 2 kg de batatas. Viva! Mas já não há água, temos de a procurar noutro sítio, de onde ouvimos combates.
De repente vai-se também o gás desaparece – o tubo é cortado. Chegaram outros soldados, aparentemente chechenos. Fomos autorizados a acender uma fogueira durante o dia. É assim que vivemos, sob bombardeamento constante. Os homens improvisaram churrascos, as mulheres prepararam comida e todos aqueceram água para o chá. Não permitiram que o nosso ferido da cave fosse levado nem deixaram um médico nosso entrar. Trouxeram o seu próprio médico. Não era um médico. Trataram a ferida, deram-lhe antibióticos e partiram.
Todos os dias chegam mais soldados, todos os dias há bombardeamentos. Com o pretexto de ter de carregar o IQOS (cigarro eletrónico), fui ao meu carro e carreguei um pouco da bateria do meu telemóvel e de vizinhos. Não havia internet, o inimigo bloqueou as comunicações móveis e colocou um carro especial em frente ao meu prédio. Quando conseguiam, os habitantes do bairro enviavam mensagens de texto a familiares e amigos com uma palavra: “vivo”. Periodicamente, um helicóptero inimigo voava entre os prédios. E um caça. Fazia muito ruído. E era assustador.
Dois dias antes da evacuação
... uma bomba voou para uma casa ao lado da minha, mesmo em frente dos meus olhos, porque eu estava a carregar os telemóveis no carro. Ganhei uma nova aptidão: como desligar o motor num segundo, fechar o carro e chegar ao abrigo.
Diferentes grupos de inimigos disseram-nos coisas diferentes: que nos estão a libertar, depois que o nosso Presidente tem a culpa de tudo, a seguir que vamos imediatamente para a Bielorrússia. O último - acho que se chamava Wagner - não disse nada. Trouxe-nos dois pães, doces para as crianças e um maço de tabaco para os homens. O nosso presidente da câmara foi atingido, juntamente com voluntários.
E depois chegou o primeiro dia de evacuação
Quem tinha carro levou consigo mais algumas pessoas para o local de encontro, sob os canos de metralhadoras e tanques. O resto foi a pé. Era óbvio que eles não nos queriam deixar sair de Pokrovsky. Afinal de contas, éramos o seu escudo humano. Parecia uma imagem da II Guerra Mundial, de uma longa coluna de carros e de pessoas a andar. Mas não, infelizmente é 2022. Por volta das 17h recebemos a notícia de que a evacuação tinha sido interrompida: o blindado para transporte de pessoal do inimigo dirigiu-se para a única ponte, por onde iríamos sair, e explodiu. Ou talvez eles tenham rebentado com ela. Não sei. Juntamente com três outros carros, encontrámos um lugar para passar a noite. Adultos, crianças, gatos. A menos de um quilómetro de distância outra explosão e outra casa destruída pelas chamas. Arde durante toda a noite.
De manhã,
... vamos para o ponto de encontro para a evacuação. O inimigo não abre um corredor seguro. A nossa coluna de carros está sob fogo intenso.
Basicamente, não há lugar para nos escondermos. Mas todos sobrevivemos. As pessoas entram em pânico, alguém decide ir para outro lugar, confiar na sorte. Por fim, vemos movimento entre os primeiros carros. Damos a volta, passando pelo nosso complexo residencial, que praticamente desapareceu. O meu prédio já não tem telhado nem o quinto andar. Passamos por carros civis atingidos por tiros, voltámos para perto da fábrica de vidro destruída e estilhaçada, e do mercado, mais alguns carros atingidos por tiros, eu tento não olhar em redor, porque tenho um volante nas mãos.
Vizinhos dizem que havia cadáveres por toda a parte. Eu não vi, olhava para o porta-bagagens do carro à minha frente, um Chevrolet Aveo cor de laranja. Arrastamo-nos pelos pontos de controlo do inimigo. Na paragem seguinte, alguém diz que tenho um pneu furado. Alguns homens vindos de um pequeno autocarro próximo trocam o pneu em tempo recorde. Conduzimos pelas ruas da cidade de Bucha derrotada. A 200 metros explode um camião do invasor. Todos os carros e pessoas que estavam próximos naquela altura foram aingidos. Tenho sorte, saímos ilesos. Estamos a conduzir através de vários pontos de controlo inimigos e já estou a rezar em voz alta para chegar ao nosso destino, para não ficar debaixo de fogo, para ter combustível suficiente.
O meu carro foi revistado apenas uma vez. Tive sorte de ser uma mulher ao volante. Cada vez que me aproximava do ponto de controlo inimigo seguinte, paralisava, mas faziam-me apenas sinal: siga em frente. Não consigo transmitir o sentimento de felicidade quando vi finalmente à minha frente a bandeira ucraniana Estamos a salvo! Um pouco mais e chegamos a Kiev.
Fomos acolhidos por pessoas incríveis! Refugiados da Bielorrússia que em 2020 fugiram da repressão. Alimentados, aquecidos, apoiados. Angel Tamara - um voluntário - encontrou pessoas que nos podem levar para longe das explosões, para o oeste do país. O Angel está ao volante - irão levar-nos por todo o país , gratuitamente. Perguntavam-nos constantemente como nos sentíamos. Agradeço-lhes!
Agora estou tão segura quanto possível. Há dois dias e duas noites que durmo numa cama, sem sapatos nem roupa de sair. Sem chapéu e luvas. Mas respiro. Como de costume, ponho-me à escuta - e “ouço”, com alívio, silêncio. Tenho documentos, um computador portátil, um telefone e a roupa que tinha quando corri para fora a cave, no dia 25 de fevereiro. Mas tudo é vazio. Viveremos. Tudo será Ucrânia!
P.S. - Enquanto escrevo este relato, uma vizinha, a mulher do homem ferido da nossa cave, liga-me. Foram retirados, e ele já foi operado, com sucesso, em Bila Tserkva. Estamos todos em contacto. Toda a gente saiu. Todos estão a salvo.