Refugiados: da invisibilidade do outro à emoção que se faz política
Um movimento de solidariedade espalhou-se por toda a Europa e Portugal. Há quem prefira olhar para o copo meio vazio e recorde o que não fizemos antes. Prefiro o copo meio cheio
Um movimento de solidariedade espalhou-se por toda a Europa e Portugal. Há quem prefira olhar para o copo meio vazio e recorde o que não fizemos antes. Prefiro o copo meio cheio
Em duas semanas um movimento de solidariedade nunca visto espalhou-se por toda a Europa. Também em Portugal, a sociedade civil organizou-se – associações, igreja, empresas, ONG – para ajudar quem está longe e acolher quem queira vir para Portugal. Aconteceu de forma generalizada o que, com outras guerras, fizeram os que se movem por uma convicção profunda que não é empurrada pela comoção. Uma e outra são bem-vindas. Como no passado, a abertura quase incondicional das fronteiras a estes refugiados não nos livra da entrada de pessoas mal-intencionadas. Fazêmo-lo para salvar milhões de inocentes. O risco mínimo vale o dever máximo. É um imperativo moral.
Há quem prefira olhar para o copo meio vazio e recorde tudo o que não fizemos nas outras vezes. As enormes dificuldades que os sírios em fuga do horror (parte dele espalhado pelo mesmo Vladimir Putin) encontraram para entrar na Europa e ser-lhes dado o estatuto de refugiados. As portas fechadas da Hungria que agora, e só agora, é generosa Os tribunais italianos a julgar quem tentava salvar os emigrados em fuga. A inoperância da União e o egoísmo de quase todos os países europeus, com exceção da Alemanha. Os acordos com a Turquia para ficar ela com os problemas nas mãos. O Mediterrâneo transformado em vala comum.
Cá no burgo, André Ventura chocava-se porque os refugiados até traziam telemóveis, como se a condição para fugir de uma guerra fosse ser miserável. Em 2015, Kaczyński avisou que os refugiados eram portadores de “parasitas e protozoários” e disse que eles usariam as igrejas como “sanitas”. No ano passado, os ministros do Interior e da Defesa polacos exibiram vídeos falsos de migrante entre a fronteira bielorrussa e polaca a fazerem sexo com um cavalo. Estávamos, portanto, perante animais.
Prefiro o copo meio cheio. Que este episódio servirá para as pessoas perceberem o drama imenso de quem foge de uma guerra. Que nunca mais Ventura e os seus parceiros europeus terão latitude para usar a tragédia destas pessoas para espalhar o medo. Que nunca mais as portas serão fechadas a refugiados no momento em que a alternativa é a morte. Que nunca mais serão devolvidos ao terror ou encerradas durante meses em campos-prisões. Que nunca mais, quando eu escrever um texto como este, alguém me perguntará: “porque não os levas para tua casa”?
Infelizmente, a realidade contraria-me. Na fronteira, estudantes negros e asiáticos que fogem das mesmas bombas e da mesma morte que os ucranianos foram deixados para o fim da fila e sofreram violência verbal dos agentes de autoridade. Mais uma vez, são as associações do costume, com as pessoas do costume, que exigem apoio igual para quem venha da Ucrânia.
O racismo que conta não é político, consciente, fundado em convicções refletidas. Contra esse é mais fácil lutar. O racismo profundo é o avesso da empatia mais fácil por quem se assemelha a nós. Porque são fisicamente parecidos. Porque têm a mesma religião. Poirque compreendemos a sua cultura e os seus hábitos. Porque lhes oferecemos o estatuto de “europeus”. Dirão que é um sentimento normal, automático. Também o medo do outro, que é diferente e distante. Ou até menos do que isso: a inconsciente sensação de que a dor de quem é muito diferente de nós também será muito diferente da nossa. E a do que nos é semelhante é mais compreensível.
Muitos dirão que é a proximidade. Trípoli fica mais perto de Lisboa do que Kiev. Não é a proximidade, são mesmo os que vivem num e noutro lugar.
Podem dizer que tem a ver com a cobertura noticiosa intensa e concedo que ajuda muito. Os refugiados da Síria raramente tiveram um rosto, uma história contada na primeira pessoa, identidade própria, com nome e sofrimento compreensível. Também conta o medo partilhado por uma escalada da guerra nos poder envolver a todos. Por vermos isto como um ataque à Europa. Mas ser um ataque à Europa não muda um milímetro no sofrimento concreto daquelas pessoas.
Há dois tipos de solidariedade: a que resulta da emoção e a que, com essa emoção, constrói uma ética e uma racionalidade que nos leva à ação consequente. É quando isso acontece que a comoção se transforma em política. E porque não faz sentido menorizar uma solidariedade tão inspiradora, espero que, neste processo, muitos sejam ganhos para a solidariedade que não depende da parecença. Difícil, é pormo-nos nos sapatos dos que são muito diferentes de nós. Difícil, é transformar a emoção em consciência.
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