Guerra na Ucrânia

Tudo é complicado, mas uma coisa é simples: há um ocupante e um ocupado

Contextualizar, analisar e discordar quanto às origens de um conflito não é relativizar. Incomodam-me milícias de quem noutras guerras se entregou ao cinismo e agora tenta militarizar o pensamento para o pôr em formação ordenada. Mas a hierarquia dos valores tem de começar por ser clara, estabelecendo o padrão moral que enquadra as suas posições: há um ocupante e um ocupado. Em tudo o resto podemos discordar. Nisto também. Mas nessa discordância, e só nela, se traça uma fronteira moral

Na concentração do último domingo, em Lisboa, tinha, poucos metros à minha frente, um ucraniano que segurava uma grande bandeira vermelha e preta, com o símbolo da Ucrânia. Reconhecia-a. Era do Exército Insurgente Ucraniano, força nacionalista que lutou contra ambos os lados na Segunda Guerra Mundial, recorrendo à colaboração com os nazis e acusada de assassinar judeus e polacos. Senti um enorme incómodo. Igual ao que, algumas vezes, senti em ações de solidariedade com o povo palestiniano e pude ver abjetas mensagens antissemitas.

Em qualquer dos casos, não me manifesto, como os olhares simplistas gostam de acreditar, do lado civilizado contra o incivilizado, do lado da democracia contra a tirania. Infelizmente, também em qualquer um deles, as coisas são muito mais complicadas do que isso. A política ucraniana não é o que neste momento se exige que se pense que é. E até há razões compreensíveis para isso. Manifesto-me por uma coisa mais primária, sem a qual nem a democracia, nem a liberdade, nem os direitos humanos são possíveis: o direito à autodeterminação dos povos.

Sempre que participo em qualquer debate sobre uma guerra de ocupação há alguém que tenta responsabilizar o ocupado pela sua própria condição. Apenas por facilidade, e não para comparar situações de natureza diferente (até porque a guerra da Ucrânia tem um nível de risco incomparável com anteriores), mantenho-me no conflito israelo-palestiniano, em que a ocupação dura há tanto tempo que muitos já a tratam como se não o fosse. Há sempre alguém que me explica que de um lado há uma democracia e do outro não. Que me mostra os fundamentalistas religiosos em Gaza. Que me fala dos direitos das mulheres no Islão. Dos atentados terroristas. Que me vende, enfim, a legitimação de uma ocupação com uma espécie de superioridade moral do ocupante e o confronto que ali se passa como a primeira trincheira de um choque de civilizações. E, claro, que defende que essa ocupação se faz em nome da segurança do ocupante.

Como até conheço o território e o conflito, poderia debater a falsidade, a verdade, a meia-verdade ou a excessiva simplificação, que ignora o contexto, de cada afirmação. Mas a primeira resposta que dou é sempre a mesma: há um ocupante e um ocupado e eu sei de que lado estou quando isso acontece. Dou este exemplo, mas poderia dar o de outras guerras e ocupações passadas e presentes que agradariam mais a uns ou a outros. A não ser em casos extraordinários, que podem acontecer de forma transitória a meio ou no final de guerras (caso da Alemanha, no pós-guerra), a ilegitimidade da ocupação não depende dos defeitos ou qualidades do ocupado e do ocupante.

Alguns dos que teimam em relativizar a invasão criminosa da Ucrânia – ou que se sentem incomodados por circunstancialmente terem de protestar ao lado de gente que apoiou outras invasões ou ocupações – também me fazem chegar informação verdadeira, meio-verdadeira, falsa ou simplificada, por ignorar o contexto, sobre a vida política ucraniana – curiosamente, menorizam coisas piores na Rússia. A existência de milícias neonazis integradas nas forças armadas (o que leva ao salto lógico de transformar o presidente ucraniano, que até é judeu, num nazi), a proibição do Partido Comunista ou a discriminação da minoria russa, com o encerramento dos canais em língua russa, por exemplo.

Não se atrevem a comparar o regime ucraniano (que a costumeira simplicidade dos media trata como uma democracia liberal ocidental) com a ditadura russa, porque o seu ponto de vista não sairia favorecido. Mas mesmo que a comparação fosse remotamente legitima, nunca seria esse o debate. Não debato cada uma destas alegações exatamente porque as considero, neste momento, irrelevantes. Sobretudo tendo em conta o perigo global desta ocupação específica. Nem o regime criminoso de Saddam me impediu de ser contra a ocupação do Iraque, porque haveria o olhar que tinha sobre o Presidente da Ucrânia, democraticamente eleito em 2019 (e não imposto por qualquer golpe Estado em 2014, como alguns insistem e afirmar), impedir que me opusesse sem adversativas a esta ocupação?

Não acho que contextualizar, analisar ou discordar sobre as origens profundas de um conflito seja relativizar as culpas mais diretas. Podemos dizer muitas coisas sobre o que aconteceu à Rússia nas últimas décadas e dos compromissos que existiam e não foram cumpridos, do Ocidente para com a Rússia e da Rússia para com os seus vizinhos. Podemos dizer que falhámos ao não garantir mais segurança à Ucrânia ou ao não agir depois da Crimeia (um território onde até a ideia de ocupante e ocupado se complica). Podemos falar da mudança de princípios de uma NATO que interveio na Líbia, no Afeganistão ou na ex-Juguslávia, deixando de ser uma organização defensiva – coisa que agora voltou a recordar-se que é porque não pode entrar em confronto com uma força nuclear. Podemos concordar ou discordar da adesão da Ucrânia à NATO ou à União Europeia, achar que nunca deverá entrar ou já devia ter acontecido. Podemos discordar da existência da NATO, achar que ela se deve alargar ou querer substitui-la por uma aliança militar europeia. Podemos achar que a linha divisória entre o Leste e o Ocidente devia estar já bem traçada e defendida ou que, pelo contrário, o erro foi empurrar as trincheiras desse conflito latente para dentro da Ucrânia. Podemos fazer o balanço de como a Europa se tornou energeticamente dependente da Rússia ou de como Londres protege as fortunas dos oligarcas. O debate sobre o contexto não pode estar sujeito a uma chantagem que o torna monolítico e, por natureza, estúpido.

É por isso que me incomodam as milícias, que estão a atingir um nível de agressividade próximo da purga, de gente que noutras guerras se entregou ao mais puro dos cinismos e agora tenta militarizar o pensamento para o pôr em formação ordenada. Não o fazem para forçar uma condenação, mas para, aproveitando o momento trágico, obrigar todos a aderirem sem qualquer ressalva ao seu olhar sobre o mundo, as relações internacionais e os valores que as inspiram. Não passam de oportunistas políticos que aproveitam a guerra para castrar qualquer debate racional. Não é de agora. Sempre foi assim nas guerras. Não é só a verdade que é a primeira baixa, é o pensamento.

Dizer isto não impede que a hierarquia dos valores tenha de começar por ser clara. Numa expressão bastante feliz de Pacheco Pereira, podemos pensar a cores e decidir a preto e branco.

Há um tempo para tudo. Há um momento para pôr os princípios fundamentais em cima da mesa. E cabe aos atores políticos, e não especialmente a analistas e jornalistas (que se dedicam cada vez mais ao exercício da indignação e da emoção e cada vez menos à análise informada), começar por estabelecer com rigor o padrão moral que enquadra as suas posições. Neste caso, ele deve ser, mais uma vez, este: há um ocupante e um ocupado. Nem sempre é tão claro num conflito militar, mas há um agressor e um agredido. Houve outros no passado? Houve. Alguns que agora se indignam não se indignaram ou até estiveram do lado do ocupante? Sim. E isso muda o quê?

Infelizmente, teremos meses para discordar quanto ao que nos trouxe até aqui. E não aceito, ninguém deve aceitar, que se ponha em causa a legitimidade de discordar sobre essas razões, deixando a uns atores políticos a função de analisarem o contexto e proporem soluções e a outros a de se ficarem pela condenação. Há, claro, o risco de ver soluções a nascerem sem contrariar as que se consideram erradas, para não pagar o preço político de remar contra a maré. Nestes momentos emocionais, é mais fácil tomar decisões sem resistência ou escrutínio. Temos de estar atentos a passos definitivos que aproveitam a dificuldade do debate. E eles começam a ser dados. Quem não se lembra das medidas securitárias e violadoras dia direitos humanos depois do 11 de setembro?

Passaram oito dias do começo da invasão. Este não é o tempo em que seja emocionalmente possível fazer enquadramentos definitivos das suas causas ou propostas para o evitar no futuro. Do que vai na cabeça visivelmente transtornada pela longevidade do poder absoluto de Vladimir Putin, sabemos o que escreveu e disse e dificilmente o podemos continuar a ignorar. E sabemos esta verdade insofismável: há um ocupante e um ocupado. E é por isso que, sem precisar de outras considerações, espero que o povo ucraniano continue a resistir e nós a apoiá-lo. E que o povo russo consiga derrubar o ditador. Em tudo o resto podemos e devemos discordar. Nisto também, claro. Mas nessa discordância, e só nela, se traça uma fronteira moral.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: danieloliveira.lx@gmail.com

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