“Vão buscar o dinheiro onde ele está: nas grandes fortunas”: centenas de milhares nas ruas contra políticas de Macron
Manifestante na Praça da República. No cartaz lê-se “comer os ricos”
Mateus Santa Rita
Mobilização sindical superou a do passado dia 10. Substituição do primeiro-ministro François Bayrou por Sébastien Lecornu não altera essência das opções do Governo nem aplacou a ira popular
Mateus Santa Rita, em Paris
França viveu esta quinta-feira mais uma jornada de protestos e greves, desta vez convocada pela intersindical, contra medidas orçamentais que a organização julga “inaceitáveis e de uma brutalidade sem precedente”, segundo um comunicado.
As autoridades contabilizaram cerca de 506 mil manifestantes em todo o território, dos quais 55 mil em Paris. Já a Confederação Geral do Trabalho (CGT), uma das principais estruturas sindicais, refere mais de um milhão de participantes e saúda o “êxito” da mobilização, com números que lembram os do movimento contra a reforma das pensões de 2023.
A crise política que o país atravessa agravou-se com a queda do Governo de François Bayrou e a nomeação para primeiro-ministro de Sébastien Lecornu, até então ministro da Defesa do campo presidencial. Empossado há pouco mais de uma semana, Lecornu recuou na intenção de suprimir dois feriados, mas não afastou os cortes nas políticas sociais, que considera necessários para conter o défice orçamental.
Foi, em apenas oito dias, já a segunda jornada de manifestações, depois de o movimento “Bloquons Tout” (“Bloqueemos Tudo”) ter prometido paralisar o país a 10 de setembro, numa mobilização que, porém, teve fraca adesão. Esta quinta-feira, o apelo partiu dos sindicatos.
Greves atingem ensino, saúde, transportes e cultura
O ponto de encontro foi marcado para as 14h (13h em Portugal Continental) na Praça da Bastilha, com passagem pela Praça da República e chegada à Praça da Nação. À entrada da primeira, a polícia montou um cordão de segurança, vasculhando sacos e mochilas de alguns dos manifestantes que entravam. Junto à estátua central, camiões sindicais estavam estacionados, adornados com balões e altifalantes que passavam diferentes músicas: de um lado, soava “Billie Jean” de Michael Jackson; do outro, música “metaleira”.
Violaine, professora de Literatura no ensino secundário, de 44 anos, segurava a letra “P” de uma faixa que formava a frase “Professores revolucionários”. Explica ao Expresso que protesta contra um orçamento que, no seu entender, retira verbas à Segurança Social, “às classes médias e aos mais pobres”. Denuncia ainda a “dificuldade dos professores em desempenhar o seu trabalho”, agravada pela diminuição de vagas “enquanto o número de alunos não diminui.”
O apelo da Intersindical, que reúne os oito principais sindicatos, os mesmos que lideraram a contestação à reforma das pensões em 2023, teve impacto significativo. Mais de 12% dos funcionários públicos aderiram à greve, com particular expressão nos sectores da saúde, cultura e transportes. No ensino, os sindicatos estimam que um em cada seis professores tenha feito greve.
Philippe, 48 anos, membro do sindicato de desempregados da CGT, sublinhou que o papel das organizações sindicais “não é derrubar governos, mas criar uma relação de forças positiva que faça avançar as reivindicações dos explorados” através de “greves e mobilizações de massas organizadas”. Defende que o movimento deve crescer até se tornar “muito inquietante” para o poder.
“Retiram conquistas sociais aos trabalhadores sem taxar os mais ricos”
Entre o cheiro adocicado das merguez grelhadas, típicas salsichas magrebinas vendidas nos protestos, muitos stands estavam montados na Praça da Bastilha. Num deles, da editora Libertaires, Charlotte, de 43 anos, apresentava livros de “crítica social e emancipação”, para que as pessoas “tenham mais armas para falar das lutas de hoje”.
“A situação cristalizou-se porque se retiram conquistas sociais aos trabalhadores, sem taxar os mais ricos. As pessoas estão fartas. Há um movimento de fundo que exige: ‘Não, já chega, vão buscar o dinheiro onde ele está: nas grandes fortunas, nas grandes empresas’”, afirma.
O cortejo avançava entre bandeiras sindicais e de outras causas: Palestina, movimentos comunistas, Antifa e a bandeira arco-íris. Muitos comércios na Avenida Voltaire estavam barricados com tábuas de madeira. Nas fachadas de um McDonald’s e de um Carrefour, viam-se grafitos como “Cúmplices de genocídio” e “Free Palestine”.
Lisa, de 30 anos, militante do coletivo Feministas Revolucionárias, defende que os impostos deviam ser canalizados para “saúde, educação, serviços públicos e aumento de salários”, em vez de “alimentar grandes empresas, nomeadamente as de armamento, que exportam armas usadas no genocídio da Palestina”. E acrescenta: “Elegemos a esquerda para o poder e deveríamos ser governados pela esquerda. É uma negação democrática da parte de Emmanuel Macron”.
Pelas 17h (16h de Portugal Continental), o cortejo chegava a conta-gotas à Praça da Nação, onde os acessos estavam bloqueados por cordões policiais. À frente do cortejo, voavam garrafas e pedras em direção às fileiras policias, que iam carregando para afastar os manifestantes encapuçados. No ar sentia-se o cheiro ácido do gás lacrimogéneo.
Enquanto alguns manifestantes se sentavam nos passeios ou na relva, outros subiam à estatua que representa a alegoria da República, da Liberdade ou ainda da Paz. Momentos depois, após os estrondos das bombas de gás lacrimogéneo surgiam névoas brancas. Os sindicatos, apressados, esvaziavam os balões e guiavam os camiões para fora do cordão policial.
Nos passeios, grupos de manifestantes mantinham-se até que uma jovem, em voz alta, anunciou: “A frente avança! A frente avança!”. Seguiu-se uma corrida desordenada, à medida que a polícia investia para dispersar a multidão.
A praça foi sendo evacuada sob gritos de “ACAB” (sigla inglesa de “Todos os Polícias São Sacanas”) e apelos a socorristas. Já pelas 19h30, a circulação automóvel foi restabelecida. No total, registaram-se 134 detenções e vários feridos, incluindo 26 agentes das forças de segurança, em todo o território francês.