A votação no Congresso, a invasão, as objeções e uma ironia na certificação: o último capítulo que antecedeu a tomada de posse de Biden
Joe Raedle
Apoiantes de Trump cercaram o Capitólio e acabaram mesmo por invadi-lo, partindo janelas, forçando portas e destruindo vários gabinetes, arrancando até a placa do escritório de Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Representantes. “Não vamos recuar”, deixaram escrito num papel no gabinete de Pelosi. A certificação da vitória de Biden foi interrompida, superou objeções a votos por parte de republicanos e finalmente foi concluída pela voz do braço direito do ainda Presidente, Mike Pence
O guião era simples: eleições a 3 de novembro, nomeação dos delegados para o Colégio Eleitoral até 8 de dezembro, oficialização dos votos desses delegados até 14 de dezembro, contagem e certificação dos votos no Congresso a 6 de janeiro e, finalmente, tomada de posse a 20 do mesmo mês. Mas o que era simples ou, vá, o protocolo previsto transformou-se num processo repleto de zonas cinzentas, dúvidas e acusações.
E isso aconteceu porque Donald Trump, a sua administração e os republicanos que tem ao lado alimentaram uma retórica de fraude e de roubo das eleições de 3 de novembro conquistadas pelo candidato democrata, Joe Biden. Foi preciso esperar alguns dias para serem confirmados os resultados que dariam corpo e voz ao Colégio Eleitoral, pois em tempos de pandemia o voto por correspondência e antecipado teve um impacto importante. O país estava dividido. E continua, antes, durante e depois da eleição. Chegados a 6 de janeiro, depois de vários processos e ações judiciais a denunciar uma suposta fraude e consequentemente rejeitados pelos tribunais, era o dia em que a vitória de Biden seria certificada.
Mas o impensável aconteceu. Apoiantes de Trump, inflamados pelo próprio, cercaram o Capitólio e acabaram mesmo por invadi-lo, partindo janelas, forçando portas e destruindo vários gabinetes, espalhando papéis pelo chão, arrancando até a placa do escritório de Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Representantes. “Não vamos recuar”, deixaram escrito num papel no gabinete de Pelosi. Mais tarde seriam até encontrados dispositivos explosivos. Os funcionários do Congresso ficaram retidos, protegidos pelas autoridades. A guarda nacional demorou a ser enviada. Em vários vídeos que agora circulam nas redes sociais veem-se gritos de vitória: “Parámos a votação”. Interromperam é o termo correto. A mayor de Washington DC decretou um recolher obrigatório a partir das 18h locais, uma decisão que seria estendida por mais duas semanas e que vigorará até à tomada de posse de Biden.
Esse ato travou a contagem dos votos e a certificação vitoriosa para Biden mas não foi o único. A Câmara dos Representantes e o Senado enfrentaram objeções republicanas aos votos em alguns estados. “Cada objeção é debatida em reuniões separadas da Câmara dos Representantes e do Senado. Só vinga se aprovada por ambos”, um cenário que era improvável, explica neste artigo o editor de Internacional do Expresso.
Se no caso da Geórgia, um estado onde na quarta-feira foi confirmado que as duas últimas vagas no Senado eram para os democratas, os próprios objetores recuaram após os incidentes no Capitólio, foi necessária uma votação para desatar o nó na Pensilvânia e no Arizona: a Câmara dos Representantes (Pensilvânia: 282-138; Arizona: 303-121) e o Senado (Pensilvânia: 92-7; Arizona: 93-6) rejeitaram essas moções. O bloqueio não foi além disso porque as objeções dos republicanos aos votos no Nevada e Michigan não chegaram sequer a debate. Sendo assim, Joe Biden viu confirmados os 306 votos do Colégio Eleitoral, enquanto o ainda Presidente, Donald Trump, recebeu 232.
Apesar do incidente no Capitólio, mais de 100 senadores e representantes republicanos mantiveram a intenção de votar contra a certificação da eleição presidencial, conta o “New York Times”. Quem foram os senadores que se mantiveram ao lado de Donald Trump? Josh Hawley (Missouri), Ted Cruz (Texas), Tommy Tuberville (Alabama), Cindy Hyde-Smith (Mississippi), Roger Marshall (Kansas) e John Kennedy (Louisiana) votaram para contestar os resultados no Arizona, uma intenção que foi esmagada pelos 93 votos de outros senadores. Já quanto à Pensilvânia, os homens que ficaram do lado de Trump foram Josh Hawley (Missouri), Ted Cruz (Texas), Tommy Tuberville (Alabama), Cindy Hyde-Smith (Mississippi), Roger Marshall (Kansas), Cynthia Lummis (Wyoming) e Rick Scott (Florida). Também aqui perderam com 92 votos contra.
Pouco depois de o Congresso confirmar a vitória de Joe Biden na eleição de 3 de novembro, superando uma invasão de apoiantes de Donald Trump e as objeções republicanas de votos em vários estados, o Presidente cessante fez um comunicado em que relutantemente aceita a vitória do candidato democrata e garante uma transição ordeira a 20 de janeiro. "Embora eu discorde totalmente do resultado da eleição e os factos mostram-no, haverá uma transição ordeira em 20 de janeiro", pode ler-se naquele documento. Os factos não o mostram, todas as ações judiciais levadas a cabo pela sua candidatura e por membros do partido foram recusadas pelos tribunais do país. As teorias da conspiração e denúncias não foram confirmadas em qualquer estado.
"Eu disse sempre que continuaríamos a nossa luta para garantir que só os votos legais seriam contados. Embora isto represente o fim do maior primeiro mandato da história presidencial, é só o começo da nossa luta para fazer a América grande outra vez [Make America Great Again]", disse ainda, sugerindo assim que voltará daqui a quatro anos ou que irá fazer algum tipo de oposição durante o primeiro mandato de Joe Biden, o agora confirmado e certificado 46.º Presidente dos Estados Unidos.
O fado da Casa Branca e da política norte-americana teve uma ironia na melodia: foi lido em voz alta por Mike Pence, o vice-presidente de Trump, o mesmo que foi pressionado pelo Presidente para que este se recusasse a certificar Biden como o próximo líder dos Estados Unidos. Pence negou, disse não ter poder para tal. "É minha opinião ponderada que o meu juramento em apoiar e defender a Constituição me impede de reivindicar autoridade unilateral para determinar quais os votos eleitorais que deveriam ser contados e os que não deveriam”, escreveu numa carta enviada ao Congresso.
E as palavras foram ditas: Joseph Robinette Biden Jr. será o próximo Presidente dos Estados Unidos. Kamala Harris é a nova vice-presidente do país.