No dia em que os Estados Unidos da América celebram Martin Luther King Jr, um dos seus maiores pensadores, ativista como poucos pela igualdade entre seres humanos, uma mulher negra com origem étnica diversa abdicou de uma posição muito importante, a de senadora. Mas só o fez porque dentro de dois dias assumirá outro cargo, não só importante como histórico: será a primeira mulher vice-presidente do país e, por inerência, presidente do Senado.
Kamala Harris, de 56 anos e até esta segunda-feira ao meio-dia (17h em Portugal Continental) senadora pelo estado da Califórnia, foi eleita vice-Presidente dia 3 de novembro de 2020. Vai ser seu o voto desempate num Senado dividido (50 senadores para o Partido Democrata, contando com dois independentes seus aliados, e outros tantos para o Partido Republicano), produto de uma sociedade também ela fraturada e de umas eleições que, embora tenham resultado numa vitória clara para Joe Biden, também mostraram que há milhões de norte-americanos, mais de 74 milhões, que continuam a rever-se na forma como Donald Trump liderou a nação durante os últimos quatro anos.
Biden é o primeiro Presidente a ter mais de 80 milhões de votos (81.283.098) mas Trump vem logo em segundo lugar. Teve mais sufrágios do que quando foi eleito em 2016.
O processo de abdicação é simples, só há pompa no dia da tomada de posse. Ao início da tarde, Harris enviou uma carta ao governador da Califórnia, Gavin Newsom, aliado de longa data, informando-o da intenção de deixar o cargo. Newsom, claro, já sabia que isso iria acontecer e até nomeou o substituto de Harris: será Alex Padilla, secretário de Estado da Califórnia e primeiro latino a ocupar este lugar na câmara alta pelo estado onde cerca de 40% da população partilha esta origem.
Um cargo peculiar
Harris vai ocupar um lugar peculiar na política norte-americana: no cargo de vice-presidente convergem os ramos legislativo e executivo do poder. É um exercício de constante equilíbrio que se reveste de especial importância, porque é necessário que haja uma voz conciliadora nesta câmara, ainda que muitos republicanos tenham deixado claro que não estão para grandes consensos. Ou talvez por isso mesmo.
Domingo passado, um dos maiores apoiantes de Trump, o senador republicano Lindsey Graham, avisou, na televisão conservadora FOX News, que os primeiros 100 dias de Biden na Casa Branca serão “o maior esforço de imposição de políticas socialistas na história do país”.
Instalar suspeitas de que Biden pudesse tornar-se um espécie de fachada para a agenda progressista de alguns dos membros mais à esquerda do Partido Democrata foi um dos principais argumentos republicanos durante a campanha e não deve cessar após a tomada de posse. "Se fizerem o que estão a anunciar, os republicanos voltarão com força esmagadora em 2022 [eleições para o Congresso]. Vamos recuperar a Câmara dos Representantes, o Senado e, em poucos meses, o Presidente Trump será visto de maneira muito diferente do que é hoje”, disse Graham.
É difícil, contudo, caracterizar Harris (e muito menos Biden) como extremistas de esquerda, mesmo tendo em conta que a bússola das orientações políticas nos Estados Unidos não se gere pelas mesmas forças magnéticas que usamos deste lado do Atlântico.
Algumas das suas intervenções no Senado fizeram história, pela absoluta intransigência com os nomes que Trump ia apresentando para diversos cargos: Jeff Sessions, antigo procurador-geral, Brett Kavanaugh, juiz do Supremo, e William Barr, sucessor de Sessions e agora também ex-procurador-geral. Harris foi muitas vezes interrompida pelos colegas republicanos, o que causou uma onda de críticas democratas, já que os homens só muito raramente eram interrompidos nas perguntas que dirigiam aos proponentes para alguns dos mais exigentes cargos na nação.
Apesar de ter patrocinado no Senado uma série de projetos de lei para lidar com as desigualdades raciais no sistema de justiça criminal, saúde e educação e também para aumentar os apoios à classe média, Harris não é vista por todos os democratas como uma voz progressista, sobretudo na área da justiça. Foi muito criticada pelos companheiros de bancada pela atuação como procuradora de São Francisco, principalmente depois de ter tornado pública a intenção de concorrer à nomeação democrata para defrontar Trump nas presidenciais.
Em 2014 recusou-se a defender a chamada Proposta 47, iniciativa eleitoral aprovada pelos eleitores, que reduzia certos crimes de baixa gravidade a contraordenações, possibilitando o alargamento do voto a muito mais pessoas (que o perdem por crimes, mas não por contraordenações). Em 2015, opôs-se a um projeto de lei que exigia que a procuradoria investigasse tiroteios envolvendo membros das forças de segurança e negou-se a dar seguimento às regras estaduais que aconselhavam a instalação de câmaras nas fardas da polícia.
Homenagear Emmett Till
Harris abandonou muitas destas posições quando deu o salto para a política nacional. Já em 2020, com colegas do Senado, conseguiu fazer aprovar a primeira lei de sempre a tornar o linchamento crime federal. O projeto de lei recebeu o nome de Emmett Till, rapaz negro que, em 1955, aos 14 anos, foi espancado até ser impossível reconhecer os traços do seu rosto, e preso, com arame farpado, pelo pescoço, a uma ventoinha de separar algodão.
Tal como foi preciso esperar até 2020 para ver aprovar uma lei contra uma tortura selvagem e destinada apenas a uma cor de pele, também foi preciso esperar até às presidenciais de 2020 para que um homem negro, o revendo Raphael Warnock, que prega na igreja onde o fazia Luther King , fosse pela primeira vez eleito para o Senado pelo Estado da Geórgia. Jon Ossoff, eleito nesse mesmo dia, também pelo estado da Geórgia, é o primeiro judeu desde o século XIX a ser eleito no Sul.
Desde a fundação dos Estados Unidos, o vice-Presidente só foi obrigado a usar o seu voto de desempate 268 vezes. Num artigo de opinião escrito para o jornal “San Francisco Chronicle”, Harris assumiu não ter medo desse poder constitucional, mas defendeu que se procurem consensos. E dá como exemplo o dia que se assinala esta segunda-feira: o de Martin Luther King Jr., feriado federal.
“Apenas um ano antes de eu ter começado a estagiar no Senado, o dia de Martin Luther King Jr. tornou-se feriado federal. A passagem deste projeto pelo Congresso não foi óbvia ou rápida, de todo. O debate foi tenso, houve até uma boa dose de arrogância. Mas no fim a Câmara dos Representantes, liderada pelos democratas, aprovou o projeto, e o Senado, controlado pelos republicanos, fez o mesmo. Foi um Presidente republicano que assinou esse projeto, tornando-o lei”. Esse presidente foi Ronald Reagan, corria o ano de 1983. O feriado entrou em vigor três anos depois, a nível nacional.
Não é possível avaliar se que Harris vai mesmo ser esta espécie de força para a mudança completa das mentalidades nos Estados Unidos. Tudo o que antecede neste texto mostra que esse processo é moroso, mas as reações à sua eleição são extremamente positivas dos dois lados do espectro político.
Ilhan Omar, representante pelo Minnesota e oriunda da Somália, foi uma das mulheres que assinaram ensaios no jornal “USA Today” sobre a importância deste momento. “A representação é uma arma poderosa. As mulheres, especialmente as mulheres de cor, esperaram gerações para por fim poderem imaginar-se no mais alto escalão do Governo. Harris não é apenas a primeira mulher a ascender ao segundo cargo mais importante na política do nosso país. É também filha de imigrantes e a sua história reflete a experiência de milhões de americanos. As meninas podem finalmente ver-se refletidas no seu Governo.”
Como escreveu Monica Hesse em “The Washington Post”, Harris leva o que ninguém antes levou para este cargo: ser mulher e terem-lhe sido ditas coisas, desde pequena, estranhas para um homem. “Antes de saíres da mercearia mete as chaves do carro entre os dedos e se alguém te atacar aponta para a cara”, escreve Hesse, relembrando as dezenas de vezes que os seus pais e os de todas as amigas lhe deram este violento conselho.