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“Dia D” para juízes votarem a inelegibilidade de Bolsonaro. Saiba porque o Tribunal Eleitoral tem mais poder no Brasil do que noutros países

Plenário do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil durante o julgamento do ex-Presidente Jair Bolsonaro
Plenário do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil durante o julgamento do ex-Presidente Jair Bolsonaro
SÉRGIO LIMA/AFP/Getty Images

A votação desta quinta-feira, em Brasília, pode fazer história. Se Jair Bolsonaro for declarado inelegível, será a primeira vez que tal acontece em 90 anos de vida do TSE, o tribunal que ‘nasceu’ ao mesmo tempo que o direito ao voto das mulheres. Se houver relação entre o nome do Presidente que nomeia cada ministro do Tribunal Superior Eleitoral e o magistrado que é nomeado, Bolsonaro só poderá contar com o voto de Kassio Nunes Marques. Os restantes seis ministros do TSE (cinco homens e uma mulher) foram nomeados por Lula da Silva ou Michel Temer

“O Brasil é dos poucos países do mundo que possuem uma justiça eleitoral independente”, assegura ao Expresso Renato Lessa, professor de Filosofia Política da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro: Este sistema “foi ‘inventado’ no Brasil em 1932, com a [publicação do] Código Eleitoral”, e subsequente instituição do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, no Rio de Janeiro, para prevenir fraudes que incluíam vandalização de sepulturas para “arrancar votos espirituais” aos mortos.

Passados 91 anos, o Brasil assiste em direto ao julgamento do ex-Presidente Jair Bolsonaro, com a argumentação dos sete ministros (juízes) do TSE que vão decidir o seu futuro. A única mulher deste coletivo de magistrados chama-se Carmen Lúcia, é ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e foi designada para esse lugar pelo Presidente Lula da Silva.

A transmissão do julgamento em direto é um meio para “evitar que surjam fake news e relatos que não vêm de fontes primárias", afirma Lessa, lembrando que todos os que "tiverem paciência podem seguir as sessões do julgamento” no YouTube ou no canal do TSE.

Transmissão é vaidade ou protagonismo dos juízes?

“Particularmente acho que as transmissões ao vivo estimulam a vaidade dos juízes/ministros, que votam para exibirem [suas competências argumentativas e analíticas]. Como as razões de decidir devem ser públicas, não vejo contrariedade ao Estado de Direito, em princípio. Mas acho que foi um erro estratégico”, diz ao Expresso, José Reinaldo Lopes, professor de Teoria do Direito da Universidade de São Paulo.

Certo é que Benedito Gonçalves, relator do processo, declarou terça-feira que defende a inelegibilidade de Bolsonaro; Gonçalves foi nomeado por Lula para o STF, em 2008.

Como Bolsonaro se tentou apropriar da bandeira
ADRIANO MACHADO/Reuters

Alexandre de Moraes, presidente do Supremo Tribunal Eleitoral, será o último a votar, e o seu voto deve acompanhar o do Gonçalves; recorde-se que Moraes foi ministro da Justiça de Michel Temer, Presidente entre 2016 e 2018, que o indigitou para o STF. A favor da inelegibilidade de Bolsonaro para os próximos oito anos também devem estar André Ramos Tavares, professor da Universidade de São Paulo, e Floriano de Azevedo Marques, professor da Fundação Getúlio Vargas, o que totaliza cinco votos (quase) certos pela cassação da capacidade eleitoral do ex-Presidente (2019-23). Ramos e Floriano foram nomeados para o TSE pela quota de dois lugares reservados a advogados no coletivo de sete juristas. Os outros ministros vêm três do STF e três do STJ.

Quem são os juízes pró-Bolsonaro?

É provável, mas não seguro nem certo, que Raul Araújo e Kassio Nunes Marques votem a favor de Bolsonaro. Araújo foi nomeado por Lula para o STJ em 2010, é o primeiro a votar na sessão desta quinta-feira e chegou a ser referido por Bolsonaro como alguém que poderia “pedir vistas” para retardar o processo.

Kassio foi indigitado por Bolsonaro. A adesão dos dois homens ao voto contra a inelegibilidade é plausível. Bolsonaro é acusado de ter convocado uma reunião com embaixadores, em julho de 2022, onde pôs em causa a fiabilidade do voto eletrónico e do processo eleitoral que decidiria a eleição de Lula em outubro passado.

Se Bolsonaro for condenado, será a primeira vez que um ex-Presidente vê os seus direitos retirados pelo TSE, em nove décadas. No passado, o ex-Presidente Fernando Collor de Mello (1990-92) foi impedido de concorrer por ter sido destituído pelo Congresso Federal, e Lula da Silva (2003-11) foi impedido de se candidatar às eleições de 2018, por ter sido condenado em segunda instância no âmbito da Operação Lava Jato.

O julgamento, que começou no dia 22, teve a segunda sessão esta terça-feira, podendo ficar concluído esta quinta-feira. Não inibiu Bolsonaro de continuar a ‘discursar’ nas redes sociais, como mostra o exemplo acima, do Twitter. O ex-Presidente deve andar a fazer contas: em 2030 terá 75 anos, menos dois do que Lula quando foi eleito para o seu terceiro mandato presidencial no final de 2022.

Uma revolução com nome de código

O revolucionário Código Eleitoral de 1932 – consagrado pela Constituição de 1934 – garantiu o direito ao “voto secreto, ao voto feminino, e a uma justiça eleitoral independente dos partidos políticos, capaz de analisar problemas ocorridos no processo eleitoral”, acrescenta Lessa, lembrando que o Brasil deve este avanço democrático ao liberal e democrata Joaquim Francisco Assis Brasil, um político gaúcho que estudou sistemas eleitorais de vários países e, desde o final do século XIX, defendeu o alargamento da representação eleitoral e do voto.

“Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a chegada da Justiça Eleitoral estremeceu o mundo político e pôs um ponto final em grande parte das fraudes que haviam corrompido as eleições ao longo de toda a Primeira República (1889-1930)”.

O TSE foi alvo recorrente do ex-Presidente Bolsonaro. Este órgão, que Lessa diz ser “uma das boas aquisições do sistema eleitoral brasileiro”, já fez 91 anos e tem instituições equivalentes em mais onze países, segundo este estudo da IDEA.

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