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Guiné-Bissau: como uma rádio só de mulheres está a virar uma região onde elas sofrem discriminação e violência

Rugui Buaro assegura a emissão da tarde, em crioulo, na única rádio onde só mulheres estão autorizadas a trabalhar, na Guiné-Bissau
Rugui Buaro assegura a emissão da tarde, em crioulo, na única rádio onde só mulheres estão autorizadas a trabalhar, na Guiné-Bissau
Danilo Vaz

A trágica morte de um rapaz guineense a atravessar o oceano de canoa, em busca de vida melhor, fez um grupo de jornalistas espanhóis construir uma rádio para aquelas que mais direitos têm por conquistar na ex-colónia portuguesa. Há seis anos, a Rádio Mulher de Bafatá surgiu para emancipar as mulheres da região leste da Guiné-Bissau

Guiné-Bissau: como uma rádio só de mulheres está a virar uma região onde elas sofrem discriminação e violência

Joana Ascensão

Em Bafatá, Guiné-Bissau

Tendo como referência o Hospital de Bafatá, não há como confundir os caminhos até à rádio de que toda a gente fala. São dois quarteirões, sob o calor intenso das três da tarde, até que um portão entreaberto, cor de vinho, inaugura a entrada para um pátio onde um homem ajeita o telhado e outro nos recebe, este de tez branca e sotaque espanhol, sem mostrar intenções de falar. A voz ali é delas.

José aponta antes para dentro de portas, de onde surge uma mulher jovem e alta, de hijab preto a contrastar com o amarelo da camisola florida, e ganga nas calças. Na candura dos 26 anos, Fatumata Candé é a diretora da Rádio Mulher de Bafatá.

É num edifício que mais parece uma casa adaptada que meia dúzia de meninas, algumas muito novas, autografam notícias e programas. Algumas sentam-se no chão. Muitas não foram ainda contratadas e ainda estudam, mas já ali ocupam o tempo.

Num pequeno estúdio, frente aos dois microfones, as irmãs Rugui e Arcangela Buaro asseguram a emissão da tarde, em crioulo. A voz da mais nova, uma voz ainda muito jovem, quase de criança, anuncia o próximo programa. É no espaço onde tudo começou que a diretora Fatumata nos conta como ali chegaram.

Fatumata pode dirigir uma rádio (e a sua vida)

Em Bafatá, onde nasceram, a poligamia e a endogamia abrangem quase toda a população, de maioria étnica fula. Também ali, a leste, prevalece a mutilação genital feminina no país que a proibiu, em 2011, mas que sabe continuar a existir – e em meninas cada vez mais novas, como em outubro passado aconteceu a uma bebé de três meses.

Também há quase duas décadas Fatumata foi mutilada, com sete anos. E no término do liceu, quando já não esperava para si mais do que viu acontecer às outras – procurar o futuro num marido e alicerçá-lo num casamento – foi quando lhe perguntaram se não queria ser jornalista. Ficou curiosa. O desafio parecia-lhe o maior com que já se tinha deparado na vida. Como se criaria uma rádio?

“Fizeram-me provas de leitura e de escrita, consegui passar nas três fases. Depois, as Nações Unidas financiaram um curso básico para podermos começar a trabalhar e vieram algumas jornalistas de Espanha para nos dar formação”, recorda a jovem.

Couberam a Fatumata as primeiras palavras da primeira emissão – um trémulo e envergonhado “boa tarde”, a 10 de fevereiro de 2018. Por essa altura, cinco mulheres jornalistas tinham salário pago e asseguravam a emissão todos os dias da uma da tarde às nove da noite, mesmo depois de muitos na cidade terem desdenhado da possibilidade de a estação se aguentar de pé mais de meia dúzia de meses.

E, seis anos depois da estreia, “a rádio já ajudou mais de 30 meninas – formando-as, capacitando-as – que antes não sonhavam sequer poder estudar ou ter um futuro melhor”. Duas das cinco primeiras estão em Portugal a estudar e a trabalhar. Fatumata conseguiu tirar o bacharelato em jornalismo pela Universidade de Sevilha, começou a “sensibilizar as amigas da tabanca”, a certificar-se de que “as meninas mais novas não fossem mais excisadas”.

Quis ficar a ser a cara por um projeto de empoderamento feminino num sítio onde, como descreve, se cometem “todos os tipos de violência que se pode pensar cometer com uma mulher”.

“As tradições que vivemos desde pequenas ditam que os homens são sempre superiores. A mulher tem de limpar, cozinhar e prestar-se ao trabalho doméstico, enquanto o homem tem mais liberdade, tem mais do que uma mulher e direito a tudo. Mesmo em termos de herança familiar, um filho recebe mais do que uma filha. As mulheres preferem ter filhos homens. E as meninas crescem a acreditar que não podem terminar os seus estudos, que têm de casar assim que chegam à idade adulta e que o futuro delas está no marido”, descreve a jovem Fatumata.

Como Laovo, morto a atravessar o oceano, fez emancipar as mulheres da sua terra

Foi quando José Bejarano López, um veterano jornalista do jornal catalão “La Vanguardia”, estava nas ilhas Canárias a acompanhar o drama de vários naufrágios de migrantes que atravessavam o oceano de canoa a partir da Mauritânia e em direção ao arquipélago espanhol, que se apaixonou pela história de Laovo Candé, morto na travessia, em 2006.

A tragédia da sua morte levou José Bejarano López a ir onze dias em reportagem para Candemba-Uri, aldeia do leste da Guiné-Bissau, onde o rapaz nascera. Mas o trabalho, convertido num conjunto de cinco reportagens, foi só o início de uma relação entre a Guiné-Bissau e a Associação de Imprensa de Sevilha, organismo que aglomera um milhar de jornalistas.

E foi à saída do estúdio que percebemos que o homem de tez branca que encontrámos à entrada da Rádio Mulher de Bafatá tinha sido, afinal, a força motriz daquele projeto que, como sublinha, “não nasce a partir de uma ideia prévia, mas vai crescendo com o tempo”.

O coletivo já construíra uma escola e um centro de saúde, quando formou uma ONG, a Periodistas Solidarios, e pensou que entre as ações teria de haver algo relacionado com comunicação. “Uma emissora de rádio, que é o que mais funciona aqui, foi a ideia imediata”. E depois, “aqui são as mulheres que estão em piores condições, as que sofrem mais violência, mais desigualdade, as que trabalham e não lhes é reconhecido nada. Então, decidimos criar uma emissora feita só por mulheres”, recorda, orgulhoso, o jornalista que hoje coordena a ONG.

Hoje, José vai recorrentemente ao país de Laovo. Chama-lhe segunda-casa. Reconhece nele muito por fazer, mas uma beleza e uma autenticidade difíceis de encontrar na Europa. Não quer louros. Só que, em seis anos, já ninguém em Bafatá duvide de que as mulheres podem fazer rádio.

Fatumata quer criar em Bafatá uma faculdade de comunicação, com oferta especial para as mulheres que não têm capacidade de ir estudar para a capital nem de pagar a universidade. Ainda quer estender a estação emissora até Bissau, “para ter mais visibilidade”.

No entretanto, vai lutando com “muita rebeldia” contra uma família que não entende parte das suas decisões. “Se eu não tivesse oportunidade de trabalhar aqui na rádio, a esta hora, com 26 anos, poderia ter quatro ou cinco filhos”, assevera. Entre as grandes conquistas para a rádio e as “pequenas” para a sua vida, quer sair de casa dos pais. Mas fazê-lo sem um marido ou uma aliança será um desafio mais difícil do que possa parecer.

Para ouvir a Rádio Mulher de Bafatá, sintonize aqui.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jascensao@expresso.impresa.pt

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