África

Sudão: combates intensificam-se no Darfur apesar de nova trégua e ONU denuncia crise humanitária sem precedentes

Refugiados sudaneses que tentam escapar à violência no Sudão chegam à fronteira com o Chade
Refugiados sudaneses que tentam escapar à violência no Sudão chegam à fronteira com o Chade
MAHAMAT RAMADANE/REUTERS

Há uma nova trégua entre as forças militares beligerantes no Sudão, aprovada para as próximas 72 horas, para que a ajuda humanitária possa entrar no país e para que mais cidadãos estrangeiros possam ser retirados. Mas para quem não pode escapar numa missão diplomática urgente, os dias são cada vez mais perigosos. Alguns dos combates estão dentro das cidades. Há já milhares de deslocados internos, enquanto pelas fronteiras continuam a passar outros tantos milhares que querem fugir para os países vizinhos

Pelo menos 74 pessoas morreram na capital do Darfur Ocidental, El-Geneina, durante combates na segunda e terça-feiras, informou o sindicato dos médicos num relatório provisório divulgado esta sexta-feira. As mortes não puderam ser contabilizadas antes porque todos os hospitais da região estão "fora de serviço", informou o mesmo sindicato.

O Sudão entrou já no décimo quarto dia consecutivo de confrontos entre duas fações militares opostas - e a violência já fez pelo menos 512 vítimas mortais. Pelo menos 4193 pessoas estão feridas e milhares já estão a deslocar-se para países vizinhos: Sudão do Sul, Egito e Chade estão a receber centenas todos os dias.

Também esta sexta-feira as duas partes do conflito deram início a uma trégua de 72 horas, mediada pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita, para facilitar a retirada de cidadãos estrangeiros e a abertura de corredores seguros para a entrada de ajuda humanitária.

Pouco antes de expirar um cessar-fogo de três dias, à meia-noite (21h de Lisboa), o exército do general Abdel Fattah al-Burhan e as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), leais ao general Mohamed Hamdane Daglo, conhecido como "Hemedti", aprovaram uma extensão de 72 horas da trégua, que quase nunca foi respeitada.

No Darfur, "a situação é muito tensa", disse à agência de notícias France-Presse (AFP) um morador de El-Geneina: "Foi um dia muito difícil ontem [quinta-feira]. Não há mais comida", porque "os mercados foram saqueados".

Defensores de direitos humanos e médicos vêm fazendo soar o alarme nos últimos dias para o que se passa no Darfur. Em El-Geneina, os combatentes trouxeram "metralhadoras, armas pesadas e equipamentos de tiro antiaéreo" e "dispararam foguetes contra casas", relata a Associação dos Defensores do Darfur. "Burhan e Hemedti devem parar imediatamente esta guerra estúpida que está a ser travada nas costas dos civis", pediu a organização não-governamental.

A ONU diz que "estão a ser distribuídas armas" a civis, enquanto as duas partes em conflito se acusam mutuamente de violações das tréguas e de ataques a instalações civis.

As autoridades sudanesas acusaram as Forças de Apoio Rápido de "ocuparem" um total de 12 hospitais e instalações médicas, incluindo o Laboratório Nacional de Saúde Pública, onde existe um "perigo muito elevado de risco biológico", segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O Ministério das Relações Exteriores sudanês disse em comunicado que apresentou uma queixa à OMS pelas ações das RSF, que classificou como "chocantes", "bárbaras" e "contrárias a todos os princípios e normas", conforme relatado pela agência de notícias estatal sudanesa, SUNA.

Vários países já concluíram as operações de retirada dos seus cidadãos e pessoal diplomático no Sudão, mas outros continuam o processo por terra, mar e ar. Vinte portugueses que pretendiam deixar o Sudão já foram retirados do país, informou na quarta-feira, em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Crise humanitária “sem precedentes”, diz ONU

As Nações Unidas alertam para uma "crise humanitária sem precedentes". De acordo com a Organização Internacional das Migrações (OIM), pelo menos 75.000 pessoas estão internamente deslocadas desde o início da crise, a 15 de abril, nomeadamente nos estados de Cartum, Norte, Nilo Azul, Cordofão do Norte, Darfur Norte, Darfur Ocidental e Darfur Sul.

Apesar de um cessar-fogo, há relatos de combates em Cartum, bem como noutras partes do país. A OIM classifica a situação como “extremamente grave" nos estados de Cartum e Darfur, onde os combates se têm concentrado. "Prevê-se que o número de pessoas deslocadas internamente seja muito mais elevado, à medida que as equipas da OIM recolhem informações sobre estes movimentos em grande escala", declarou a agência da ONU, com sede em Genebra, no seu último relatório sobre a situação.

No Darfur Norte, as equipas da OIM receberam informações preliminares sobre 17.000 deslocações, principalmente devido aos combates nas cidades de El Fasher e Kebkabiya. No Darfur Sul, cerca de 37.000 pessoas terão sido deslocadas na cidade de Nyala, com relatos de residentes, que fugiram das áreas afetadas pelos combates e falam de instalações civis incendiadas.

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), milhares de pessoas chegaram ao posto fronteiriço de Joda, um dos que separam o Sudão do Sudão do Sul e por onde pelo menos 7000 pessoas passaram desde o início do conflito.

"As famílias viajaram durante uma semana para alcançar segurança. O ACNUR e os seus parceiros estão a criar centros de acolhimento para o registo de emergência e a distribuição de artigos essenciais aos mais vulneráveis", afirmou no Twitter Inge De Langhe, o chefe do escritório desta agência em Maban, no Sudão do Sul.

Até agora, 20.000 pessoas, incluindo chadianos, sudaneses e estrangeiros, fugiram do conflito para o Chade, a fronteira entre os dois países tem cerca de 1400 quilómetros.

Na Etiópia, foram registadas pelo menos 2000 chegadas, segundo o ACNUR. Mais de 700 pessoas, principalmente mulheres e crianças, terão entrado na República Centro-Africana.

No Egito, o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) refere que o Crescente Vermelho egípcio registou 700 chegadas à fronteira egípcia, de acordo com uma contagem efetuada no sábado passado.

ABDULLAH ABDEL MONEIM/REUTERS

Os trabalhadores humanitários destacados ao longo das fronteiras do Sudão com os países vizinhos estão assustados com este afluxo de refugiados, principalmente para países como o Chade, a Etiópia ou a República Centro-Africana, que já têm graves problemas sociais, económicos e humanitários.

"A maioria das pessoas que chegam necessitam urgentemente de assistência humanitária básica, incluindo alimentos, água e abrigo adequado", afirmou Anne Kathrin Schaefer, chefe de missão da OIM no Chade.

À medida que a violência aumenta, aumentam também as necessidades dos mais vulneráveis. O Governo do Chade já solicitou o apoio da OIM para retirar mais de 300 estudantes chadianos retidos sem comida e água em Cartum. Há também 50 peregrinos chadianos e várias pessoas que necessitam de cuidados médicos urgentes e que ficaram presos no conflito.

"Infelizmente, a estação das chuvas está a aproximar-se rapidamente e vai dificultar o acesso à zona fronteiriça, tornando ainda mais difícil fazer chegar a ajuda aos que mais precisam", afirmou Anne Kathrin Schaefer.

Por seu lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fez um apelo urgente a todas as partes do conflito para libertarem imediatamente todas as instalações de saúde e para não interferirem nas funções essenciais de saúde pública no Sudão.

União Europeia envia ajuda

Os combates no Sudão seguiram-se a semanas de tensão sobre a reforma das forças de segurança nas negociações para a formação de um novo governo de transição. Ambas as forças estiveram por trás do golpe conjunto que derrubou o executivo de transição do Sudão em outubro de 2021.

Para tentar suprir algumas das mais urgentes carências humanitárias, a Comissão Europeia anunciou, esta sexta-feira, a disponibilização imediata de 200 mil euros para assistência à população. Em comunicado, a Comissão anunciou que os 200 mil euros são para "auxílio imediato e assistência humanitária" da população residente em Cartum, capital do Sudão, e nas regiões próximas e igualmente afetadas pelo conflito, como o Darfur.

A verba vai ser utilizada para assistência médica, serviços de retirada de pessoas e apoio psicológico, uma vez que a capital do país foi convertida num autêntico campo de batalha, com militares e elementos do grupo paramilitar a tentarem conquistar partes da cidade habitada. O montante será integrado no orçamento do Fundo de Emergência para Responder a Desastres do Crescente Vermelho -- organização que faz parte da federação internacional que inclui a Cruz Vermelha.

"Recebemos relatos devastadores da perda de vidas humanas, incluindo a morte de trabalhadores humanitários. Insistimos na necessidade de respeitar a Lei Humanitária Internacional, a proteção de civis e a segurança dos trabalhadores humanitários, premissa essencial para que consigam prestar a assistência necessária", disse a comissária europeia para a Gestão de Crises, Janez Lenarcic, citada no comunicado.

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