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BRICS alinhados contra Israel e omissos sobre Trump, a horas de encontro na Casa Branca

Lula da Silva, na reunião do Rio de Janeiro do Conselho Civil do BRICS, ao lado da socióloga Rita Coitinho
Lula da Silva, na reunião do Rio de Janeiro do Conselho Civil do BRICS, ao lado da socióloga Rita Coitinho
Ricardo Stuckert

Xi Jinping não foi pela primeira vez, Putin participou à distância: a cimeira dos 11 chefes de Estado mostrou alinhamento contra EUA e seu aliado em Israel, mas com cautelas nos ataques e tamb´ém na questão da Ucrânia. O BRICS “não é inimigo da Europa, mas os seus valores diferem dos da União Europeia”, explica uma socióloga que participou no encontro

Stefani Costa, no Rio de Janeiro

A declaração final da 17.ª Cimeira do BRIC, divulgada este domingo, condenou os ataques de Israel à Palestina, Líbano e Síria, mas evitou responsabilizar Telavive e o governo de Donald Trump pelos bombardeamentos ao Irão, um país que integra o grupo. Os onze chefes de Estado e representantes dos países-membros do bloco reuniram-se entre 6 e 7 de julho no Rio de Janeiro, tendo como tema "Fortalecimento do Multilateralismo, Assuntos Económico-Financeiros e Inteligência Artificial".

A conferência no Brasil, que assumiu a presidência rotativa do grupo, ficou marcada pela ausência do presidente chinês, Xi Jinping, sendo a primeira vez na história do BRICS que o líder não participa presencialmente – Pequim foi representada pelo primeiro-ministro chinês, Li Qiang. O presidente russo, Vladimir Putin, participou por videoconferência, sendo representado nas reuniões pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov.

"Condenamos os ataques militares contra a República Islâmica do Irão desde 13 de junho de 2025, que constituem uma violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, e expressamos profunda preocupação com a escalada da situação de segurança no Médio Oriente", afirma o documento, a um dia do primeiro-ministro de Israel ir à Casa Branca, para falar da nova proposta de cessar-fogo em Gaza que está a ser negociada no Catar.

Os Estados-membros manifestaram também sérias preocupações com os ataques deliberados contra infraestruturas civis e instalações nucleares pacíficas sob salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), em violação do direito internacional e das resoluções pertinentes da agência. Uma vez mais, a referência saiu sem qualquer referência aos ataques desencadeados por Trump.

Ainda assim, bastou um alerta (também sem nomear o Presidente dos EUA) aos que põem em causa a estabilidade do comércio global para que Trump avisasse para uma taxa adicional de 10% aos países que alinharem com os BRICS.

O documento salientou também a necessidade de diálogo para um "acordo de paz sustentável" entre a Rússia e a Ucrânia, realçando a importância da Iniciativa Africana de Paz e do Grupo de Amigos para a Paz, que se dedicam à resolução pacífica do conflito através da diplomacia. Com a Rússia no grupo e os membros dos BRICS divididos sobre o conflito, a formulação do comunicado mostra uma posição de difícil equilíbrio diplomático.

A declaração final manifestou abertura a novas formas de apoio às missões de paz, mediações e processos de reconciliação em África, reconhecendo os progressos das nações africanas, mas expressando preocupação com as graves crises humanitárias, especialmente no Sudão, na região dos Grandes Lagos e no Chifre da África.

Líbano e Síria

O documento final não deixou de condenar as violações de Israel do cessar-fogo no Líbano, solicitando que "todas as partes cumpram rigorosamente os seus termos", referindo a aplicação da Resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas como exemplo.

"Pedimos a Israel que respeite os acordos com o Governo libanês e retire as suas forças de ocupação de todo o território, incluindo os cinco locais no sul do país onde ainda permanecem".

O comunicado reafirmou o compromisso dos Estados-membros com a soberania da Síria, defendendo um "processo político pacífico e inclusivo" que seja "conduzido e liderado pelos sírios", com base na Resolução 2254 do Conselho de Segurança. Segundo o documento, esta abordagem é essencial para garantir a independência territorial e o bem-estar da população civil, sem discriminações.

A violência em várias províncias da Síria, incluindo ofensivas do Estado Islâmico (Daesh) e da Al-Qaeda, bem como os recentes ataques à Igreja Mar Elias e à localidade de Rif Dimashq, foram igualmente destacados, o que indica uma preocupação com a possível disseminação destes grupos noutras regiões do Médio Oriente.

No entanto, o bloco avaliou positivamente a suspensão das sanções unilaterais impostas à Síria, esperando que esta medida contribua para a revitalização social e económica do país e para a sua reconstrução.

Por fim, os países membros condenaram veementemente a ocupação de parte do território sírio pelo exército israelita, considerando-a uma "flagrante violação do direito internacional" e do Acordo de Desengajamento de 1974. "Exortamos Israel a retirar, sem demora, as suas forças da Síria".

Conselho Civil do BRICS

O secretário-geral da ONU, António Guterres, também participou no encontro, tendo reforçado a importância de uma "reforma abrangente das Nações Unidas", incluindo o Conselho de Segurança, com vista a torná-lo mais democrático, representativo, eficaz e eficiente, aumentando a participação dos países em desenvolvimento. Antes, Lula tinha defendido reformas no Banco Mundial OMC e FMI.

No seu discurso oficial, o Presidente Lula da Silva desejou "vida longa" ao Conselho Civil do BRICS, que realizou a sua primeira reunião durante o evento no Rio de Janeiro. Esta iniciativa foi anunciada nos Fóruns Civis, que têm lugar desde 2015, e conta agora com o reconhecimento oficial dos chefes de Estado.

Este avanço representa um passo importante para o bloco, ao estabelecer um canal de diálogo regular entre as populações dos países membros. Atualmente, as nações do bloco correspondem a 40% do PIB global e a 26% das exportações mundiais.

A socióloga Rita Coitinho, que integra o Conselho Civil do BRICS, afirmou ao Expresso que o principal desafio na área do clima é garantir uma redução equitativa do aquecimento global, tendo em conta o desenvolvimento dos povos e países do Sul Global.

Em novembro, o Brasil também irá acolher a COP 30 na cidade de Belém do Pará. Rita Coitinho salientou que os países procuraram, com maior ênfase, obter financiamento para tecnologias renováveis. "Na nossa declaração, pedimos que uma percentagem significativa dos financiamentos seja destinada a projetos de energias renováveis ou de fontes não poluentes, bem como a um fundo, proposto principalmente pelos chineses, mas também apoiado pelos restantes, para mitigar as alterações climáticas", frisou.

A regulação da inteligência artificial pelas grandes empresas tecnológicas também esteve na ordem do dia, tendo sido considerada uma questão de grande preocupação. "A sociedade civil participante no Fórum Civil do BRICS exige mecanismos que garantam a soberania digital", explicou.

Desigualdade social

A questão das comunidades nas favelas é central para a justiça social no Brasil, mas os governos ainda estão longe de atender às populações mais afetadas. Durante a reunião dos BRICS, os movimentos das zonas periféricas do Rio de Janeiro criticaram a reativação da Operação "Garantia da Lei e da Ordem" (GLO) pelo Exército, uma política que teve origem na ditadura militar no Brasil.

No decorrer do encontro, os líderes salientaram a importância de promover um crescimento inclusivo para evitar a exclusão social das comunidades mais desfavorecidas. "O objetivo é garantir que o progresso seja para todos e não apenas para alguns", reforçou Coitinho.

Quanto à participação no Conselho e no Fórum Civil do BRICS, estiveram envolvidos mais de 120 movimentos sociais e organizações da sociedade civil, incluindo grupos de populações tradicionais, rurais e urbanas. Embora o esforço seja relevante, reconhece-se que o processo ainda está em construção e não abrangeu todas as vozes existentes.

"Esta foi a primeira vez que o Brasil acolheu um Fórum Civil do BRICS, após eventos anteriores noutros países, como a Rússia. O evento foi organizado pelos movimentos sociais, sem recursos financeiros ou apoio direto do Governo. Apesar das limitações, a participação foi importante para os debates. No futuro, a sociedade civil deve estar ainda mais presente na construção de agendas comuns."

BRICS e Europa

Quanto a uma possível abertura do BRICS a países europeus, Rita Coitinho considera que, neste momento, a ideia é inviável. A responsável salienta que o bloco se assemelha mais a um movimento de não alinhados do que ao G20 e que os países europeus não têm espaço no grupo: "Tem uma agenda própria, que difere dos valores ocidentais, e procura impor um modelo de democracia e organização social distinto. Não é inimigo da Europa, mas os seus valores diferem dos da União Europeia. Portanto, a aproximação só ocorrerá se algum país do bloco europeu alterar a sua postura política", enfatizou.

Quanto à moeda única, a socióloga considera que não é viável neste momento. Segundo a socióloga, o foco deve estar na criação de mecanismos de compensação em moedas locais, visto que o objetivo do BRICS não é estabelecer uma moeda única, como o euro, mas sim desenvolver formas rápidas de compensar as moedas nacionais.

"A estratégia para garantir a multipolaridade é assegurar a troca livre de moedas, sem necessidade de uma moeda única como o dólar", concluiu.

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