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José Andrés, o ‘chef’ que envia socorristas culinários para linhas da frente em todo o mundo. Próxima missão: Gaza

O chef-celebridade José Andrés a cozinhar uma das suas famosas paellas gigantes
O chef-celebridade José Andrés a cozinhar uma das suas famosas paellas gigantes
John Parra

A World Central Kitchen já alimentou mais de 70 milhões de pessoas em todo o mundo desde que foi lançada, em 2010, no seguimento de uma missão de ajuda alimentar no Haiti. José Andrés já tinha uma carreira fenomenal antes de se tornar um dos maiores filantropos do mundo. Hoje tem quase 40 restaurantes. A sua cozinha do mundo já alimentou gente no Líbano, na Ucrânia, no Japão, em Porto Rico, no Bronx e em dezenas de cidades pequenas nos Estados Unidos que não são notícia, apesar de massacradas por tornados e fogos. Os perfis de Andrés não deixam de mencionar uma certa megalomania. E, pensando bem, quem mais poderia mandar construir um porto em Gaza em menos de uma semana?

José Andrés, o ‘chef’ que envia socorristas culinários para linhas da frente em todo o mundo. Próxima missão: Gaza

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Era um dia frio de abril e a chuva leve não tinha força para apagar os pequenos fogos que se viam pela cidade. Nas ruas de Kharkiv, no leste da Ucrânia, pouco mais se ouvia do que explosões, umas mais perto do que outras. A sede local da World Central Kitchen (WCK) ficou destruída, os vidros partidos, tudo negro do fogo que consumiu o edifício depois de ter sido atingido por um míssil russo.

Morreu um membro da equipa. Quando o Expresso chegou ao local, tinham passado apenas dois meses desde o início da invasão a grande escala da Ucrânia. Os feridos tinham sido transferidos para o hospital e os restantes funcionários e voluntários já tinham ido procurar outro lugar de onde continuar o trabalho da organização.

O espírito de missão destes voluntários é espelho da atitude do homem por trás disto tudo: José Andrés, um dos chefs mais respeitados dos Estados Unidos e o maior filantropo na área da alimentação em todo o mundo. De momento está embarcado no Open Arms, que fez nome a resgatar pessoas do Mediterrâneo, mas que desta vez leva as coordenadas de Gaza no GPS e 300 toneladas de comida presas a um atrelado, porque o navio em si é pequeno para o volume de ajuda que Andrés espera conseguir entregar.

Há portos funcionais em Gaza? Não. Por isso, Andrés mandou construir um, ainda antes de ter a certeza de que a viagem ia acontecer. As possibilidades de êxito da empreitada são escassas. A ideia de um porto temporário fora avançada pelos Estados Unidos, mas os Estados Unidos são um país, José é um tipo sorridente com muito dinheiro e pouquíssima paciência para burocracia. O certo é que há bulldozers a trabalhar perto da orla costeira em Gaza, e os vídeos estão publicados na conta do chef na rede social X.


Nascido nas Astúrias há 53 anos, criado em Barcelona numa família de quatro irmãos e pais nos degraus mais baixos do remedeio, aos 15 anos decidiu deixar o percurso escolar normal e inscreveu-se numa escola profissional de cozinha. Tinham-lhe ficado na cabeça os piqueniques no campo, quando o pai fazia nascer uma fogueira e cozinhava para toda a família.

“O meu pai fazia uma paelha gigante que dava para alimentar as grandes multidões que vinham cá a casa. Sempre quis ajudá-lo a cozinhar, mas ele só me deixava apanhar lenha e cuidar do fogo, partilhou Andrés com o site First We Feast. A preparação dos legumes e das especiarias, dizia-lhe o pai, era a parte fácil; preparar o fogo certo, nem demasiado abrasivo nem demasiado mortiço, isso era de mestre.

Mais tarde, depois de ter passado pelo elBulli, restaurante do mítico modernista Ferran Adriá, que revolucionou a cozinha mundial com as suas criações mais de químico do que de cozinheiro, Andrés foi chamado a cozinhar na Marinha espanhola, cargo que aceitou de imediato, sonhando com portos exóticos e distantes, só para ficar ao serviço da casa do almirante. Depois de muitos pedidos aos superiores, lá foi embarcado até ao outro lado mundo. Disse em entrevistas que foi quando viu a Estátua da Liberdade que a sua vida se decidiu.

A missão que mudou tudo

Com um currículo mais do que apetitoso, feito em Espanha, não lhe foi difícil encontrar sítio que o recebesse nos Estados Unidos. Em 1995 chegou a Washington e tornou-se chef no Jaleo, primeira pedra do império de quase 40 restaurantes que hoje leva o nome ThinkFoodGroup.

Com o dinheiro dos seus restaurantes criou, em 2010, a World Central Kitchen. Tinha aceitado ir para o Haiti ajudar a alimentar pessoas depois do horrível terramoto de 2010. No regresso, percebeu que o que acabara de fazer era a coisa mais importante que iria fazer na vida. Ao longo dos últimos 14 anos, a empresa sem fins lucrativos esteve em catástrofes das quais todo o mundo fala, como a guerra da Ucrânia, e noutras que só fazem notícia na cidade onde acontecem, como fogos e furacões em pequenas terras dos Estados Unidos.

Chip Somodevilla/Getty

A sua última grande missão foi na Ucrânia. Uma guerra é muito diferente de um desastre natural, explicou Andrés ao telefone com a revista GQ”, enquanto servia refeições na Polónia aos ucranianos que fugiam aos milhões por mês. “Ao contrário de um furacão, depois do qual as coisas melhoram, pelo menos gradualmente, guerra é um gotejar constante de desastres. Às vezes está tudo muito calmo aqui e, de repente, o caos”, disse, referindo-se à estação ferroviária de Przemyśl, destino da esmagadora maioria dos refugiados que saíram da Ucrânia de comboio.

A grande força da WCK é o ponto mais vulnerável da organização. Normalmente, Andrés contrata agricultores, pescadores, cozinheiros e motoristas no sítio da catástrofe, o que pode ser difícil quando a guerra tem escala tão avassaladora como as da Ucrânia ou de Gaza. Por outro lado, trazer toda uma equipa de paraquedas para um cenário de guerra ou de grande instabilidade e agir como um entidade “de cima para baixo” não é modelo que consiga engolir. Afinal, dá palestras sobre os benefícios da organização horizontal a grandes empresas de Washington, Nova Iorque ou Chicago.

Meses antes da guerra da Ucrânia, Andrés e a sua WCK estavam a alimentar milhares de pessoas afetadas pela onda de despedimentos provocada pela pandemia. Ao mesmo tempo, salvou restaurantes porque, não podendo estar em todas as cidades ao mesmo tempo a oferecer refeições, a WCK pagou a mais de 2500 estabelecimentos nos Estados Unidos para continuarem a entregar refeições nas zonas mais pobres do país.

A impaciência dos grandes egos

Pode dizer-se que é adorado por qualquer comum mortal que conheça o que faz pelos outros. Foi nomeado para o prémio Nobel da Paz em 2019, na sequência do seu trabalho no furacão Maria, em Porto Rico. Recentemente, a mais nova das suas três filhas convenceu o pai a tirar do carro da família o autocolante da WCK, porque a vida é mais difícil quando há uma permanente multidão a seguir o nosso meio de transporte diário.

Dominique Crenn, a primeira mulher a ganhar três estrelas Michelin com o seu Atelier Crenn, em São Francisco, disse à “GQ” que Andrés é especialmente bom a ouvir as pessoas. Pouco depois desse marco histórico, Crenn descobriu um cancro na mama. “Este homem é um ser humano incrível, e eu própria experimentei isso. Neste ramo, um clube de rapazes, ele viu-me como eu era. E é um ótimo ouvinte”. O Expresso contactou a organização e pessoas que trabalharam com Andrés, mas não obtivemos respostas até ao prazo de publicação deste texto.

Quem recebe de José Andrés mais do que uma embalagem de comida deliciosa e quentinha tem opiniões mais matizadas. Em artigos sobre ele há sempre quem diga que é uma pessoa intempestiva, impaciente, incapaz de ouvir ‘não’, porque as coisas sempre lhe correram mais ou menos bem, inflexível, e outros adjetivos provavelmente eufemísticos. “A meu ver, com o World Central Kitchen, tenho a maior e mais poderosa rede de hardware da história da Humanidade, afirmou.

Aos meus olhos, cada cozinha já é nossa. E todos os carros. E todos os barcos. E todos os helicópteros. Todos os cozinheiros fazem parte do nosso exército, mesmo que ainda não saibam. Não digo isto abertamente, porque as pessoas vão pensar que sou maluco, mas acho que somos a maior organização da história da Humanidade, mesmo que só tenhamos 75 pessoas no quadro”, afirmou à “GQ”. Megalomania? Talvez só assim seja possível fazer o que faz.

Desde 2010, a WCK serviu quase 70 milhões de refeições em praticamente todos os cantos do mundo: de Beirute, após a explosão de munições no porto da cidade, a Oakland, quando os primeiros cruzeiros de turistas com covid foram impedidos de desembarcar os passageiros. Há poucos meses Andrés criou um Fundo para Desastres Climáticos no valor de mil milhões de dólares (913 mil euros), para tratar da causa principal de muitas das situações a que são chamados a responder. Andrés imagina um Corpo de Socorristas Alimentares a tempo inteiro, em todos os estados dos Estados Unidos, semelhante à Guarda Nacional, escreve ainda a “GQ”.

Nada contra os republicanos, só contra um deles

Os perfis mais detalhados que foram escritos sobre Andrés, na BBC, na GQ e na “New Yorker”, falam da sua ligação ao poder. Vive desde sempre em Washington e não é desinteressado da política. Até 2015, quando a primeira campanha de Donald Trump atingia picos de acrimónia que a política americana raramente vira num candidato de um partido do sistema, Andrés decidiu-se contra o silêncio que mantivera noutras campanhas. Depois de Trump ter dito que os mexicanos eram traficantes de droga e violadores, o chef cancelou a abertura de um restaurante japonês-espanhol no Trump International Hotel, em Washington, inaugurado em 2016, sem restaurante.

Trump levou Andrés a tribunal e pediu-lhe dez milhões por “quebra de contrato”, Andrés processou-o de volta, por ser quase impossível, depois de o milionário ter dito o que disse, encontrar trabalhadores ou financiamento de patronos latino-americanos para os seus restaurantes. O caso acabou por ser resolvido de comum acordo entre as partes, mas não se sabe quem pagou a quem ou que montantes.

Andrés é um membro ativo do Grupo de Trabalho sobre Segurança Alimentar e Nutricional do Centro de Política Bipartidária, que, entre outras coisas, tem defendido legislação para alargar os programas de nutrição infantil. A vice-presidente, Kamala Harris, disse, depois da pandemia, que Andrés fora parte essencial do trabalho da Administração para permitir ao Governo federal pagar a restaurantes para fornecer refeições de emergência. “Nunca tive nada contra os republicanos”, disse o chef à “GQ”. “Tenho algo contra um republicano.”

Em 2022, uma série de escândalos abalou a empresa e muitas das caras mais conhecidas foram obrigadas a sair sob acusações de assédio sexual. Sem qualquer queixa sobre ele, Andrés pediu desculpa a todos os que pudessem ter sofrido qualquer tipo de assédio na sua empresa e seguiu o seu caminho.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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