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Reportagem com Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, numa montanha nos arredores de Oslo: a íngreme encosta da guerra

Reportagem com Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, numa montanha nos arredores de Oslo: a íngreme encosta da guerra
Chip Somodevilla/Getty Images

Todas as manhãs, Jens Stoltenberg recebe novos relatórios do campo de batalha da Ucrânia. Como terminará a loucura? Na véspera da cimeira da NATO na Lituânia, este é o relato do dia em que o secretário-geral — que queria deixar a organização em outubro, mas deverá ser reconduzido no cargo — subiu uma montanha nos arredores de Oslo

Åsne Seierstad *

Foi um ótimo inverno. A neve tem-se derramado. O melhor inverno de que há memória, concordam os esquiadores experientes. Foi um inverno terrível. Os obuses destruíram as casas das pessoas. Em poucas palavras, um inverno pior do que qualquer um poderia ter imaginado. Vladimir Putin tem usado a época do ano como arma. Os mísseis têm sido direcionados rumo às centrais elétricas e ao fornecimento de gás para congelar os ucranianos.

Num domingo, Jens Stoltenberg leva-nos para uma excursão de esqui. Queremos encontrar-nos com ele para falar sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), a aliança militar da qual a Suécia quer fazer parte. Será que isso acontecerá antes da demissão de Jens Stoltenberg, em outubro, após nove anos no cargo? Ele não ousa prometer, mas trabalha arduamente para que tal aconteça. [Há uma semana, foi anunciado que Jens Stoltenberg deverá prolongar o seu mandato até meados de 2024, ano em que a NATO fará 75 anos]

Reunimo-nos com o secretário-geral da NATO no seu quintal, onde ele procura pensar, desabafar, encontrar pessoas, esquiar ou caminhar. Ele prefere realizar todas as suas reuniões enquanto caminha. O quintal é espaçoso, o que é ótimo. No bom espírito social-democrata, o espaço está aberto a todos, não tem portas nem telhados de vidro, e é gratuito. A zona é chamada Nordmarka, é a floresta nas alturas acima de Oslo e é constituída por quilómetros e quilómetros de encostas, que começam a apenas algumas centenas de metros da casa de Jens Stoltenberg. Durante os dias bons de inverno, Jens pode colocar os seus esquis à porta de casa ou carregá-los ao ombro até às pistas. Mas isso foi antes.

Ele apanhará uma boleia este domingo. É assim que o serviço de guarda-costas quer, e assim é a vida agora. A natureza em torno de Oslo (Nordmarka, Østmarka, Vestmarka e Sørmarka) é aproveitada por todos, tanto por aqueles que vivem aqui há gerações como pelos novos, que trazem toalhas de mesa e potes perfumados, e fazem refeições ao ar livre com a família numerosa. Vamos contra a corrente. Já são três horas, e a maioria das pessoas está a caminho de casa. Mas quando Jens Stoltenberg esteve em Oslo este fim de semana, ele também quis reencontrar-se com o amor da sua vida, além de Ingrid: o Partido Trabalhista. A secção de Oslo realizaria a sua reunião anual, e Jens não podia recusar quando eles pediram.

“Mas agora estou aqui”, diz ele enquanto partimos de Sognsvann, um lago que é conhecido por ele percorrer enquanto mantém as suas conversas políticas e privadas com o presidente da LO [confederação sindical norueguesa], ministros, pesquisadores, assessores ou com a sua família — todos eles passaram por aqui. “Visito sempre Nordmarka para falar com as pessoas. Desde questões políticas de grande importância até aos assuntos pessoais e às nomeações governamentais. A minha relação com as pessoas realmente acontece aqui.”

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o secretário-geral da NATO conversam junto ao memorial do 11 de Setembro que se encontra na sede da Aliança, em Bruxelas
BRENDAN SMIALOWSKI

Coloco o telemóvel no bolso do meu casaco de esqui, para que capte o que ele vai dizendo, entre o impulso e o aperto do bastão. “Estive aqui antes de me encontrar pela primeira vez com o Presidente Putin, em Moscovo”, aponta ele. O ano era 2001. Jens Stoltenberg era o novo primeiro-ministro da Noruega, e Vladimir Putin era o relativamente recente novo Presidente da Rússia. Os últimos anos do mandato do Presidente Boris Ieltsin foram caóticos, mas Jens e o seu chefe do Estado-Maior, Jonas Gahr Støre, aperceberam-se de que o grande vizinho no leste se tinha tornado mais bem organizado com o antigo agente da KGB ao leme. Naquela época, Jens não tomou o caminho principal como o faz agora. As conversas eram demasiado secretas. Ele e o chefe do Estado-Maior escolheram os caminhos através da floresta densa, onde uma mistura de abetos e bétulas mal permitia que o sol chegasse ao chão. Também era um domingo, lembra-se, um dia de primavera, e a neve acabava de derreter.

“Havia lírios-do-vale por toda a parte, muitos lírios-do-vale.” O objetivo era aproximar a Rússia da cooperação nórdica. A Noruega tem uma fronteira de quase 200 quilómetros com a Rússia, no norte. A cooperação energética, o armazenamento de resíduos nucleares, as alterações climáticas e o aumento do investimento nas regiões setentrionais estavam na ordem do dia. Mas a divisão do Mar de Barents era a principal questão, e Jens e Jonas, como a maioria dos noruegueses os chama, discutiram estratégias para desbloquear o imbróglio. Quanto mais eles se embrenhavam na floresta, mais sozinhos se sentiam, e a conversa fluía livremente. De repente, uma voz ecoou: “Estou atento às suas palavras!” Um homem apareceu atrás de uma árvore. “Fiquei um pouco em pânico”, relata Jens quando começámos a subida de Sognsvann.

Porém, correu tudo bem. O tipo da floresta manteve o segredo quanto à estratégia que iriam usar para se encontrar com Putin. Eles respiraram fundo, viraram-se e caminharam para casa, enquanto apanhavam lírios-do-vale para as suas esposas. Era uma época diferente. Naquela altura, tudo parecia tão promissor. “Quando me encontrei com o Presidente Putin, tínhamos esse otimismo. Acreditávamos num novo e melhor relacionamento com a Rússia. Ficámos muito orgulhosos de que só a Noruega conseguiu uma cooperação pragmática durante o pleno auge da Guerra Fria, durante os períodos mais difíceis. Tínhamos a nossa política de base. A cooperação em matéria de energia e de proteção ambiental na indústria pesqueira tem sido absolutamente fantástica, não é verdade?” Jens envolve-se numa explicação sobre a gestão do stock de bacalhau do Atlântico Norte. É assim; quando perguntamos sobre algo, temos tendência a receber análises longas e pormenorizadas como resposta. “O nosso bacalhau é uma das mais proeminentes populações de peixes que nadam entre vários países, e ele é bem gerido. A maioria das espécies está sobre-explorada ou extinta, contudo a Noruega e a Rússia conseguiram resolver este problema.”

A floresta está repleta de pessoas neste domingo. Haverá famílias sorridentes com cartolas coloridas, pessoas de 80 anos com casacos de esqui desbotados pelo tempo e pelo vento, bem como jovens esquiadores de velocidade que vão tentar ganhar segundos na Corrida dos Birkebeiner ou na Corrida de Vasa. “Olá, olá... Olá, olá, olá!”, diz ele entre as análises. Uma característica de Jens Stoltenberg é que ele gosta de pessoas, não busca o silêncio ou a solidão; pelo contrário, gosta de iniciar uma conversa com alguém que tem algo para dizer. E quando tem de fazer fila para subir uma ladeira porque um miúdo de cinco anos vai à frente, Jens apenas diz: “Agora um norueguês ficará feliz!”

Telefonema de Merkel

O cargo de secretário-geral da NATO tornou-se algo diferente do que Jens Stoltenberg imaginava quando recebeu um telefonema de Angela Merkel em novembro de 2013. Naquele mesmo outono, o Partido Trabalhista perdeu as eleições na Noruega, e ele renunciou ao cargo de primeiro-ministro. A chanceler Merkel costumava felicitar os seus colegas europeus, incluindo o chefe do Governo norue­guês. “O senhor Stoltenberg ainda é jovem”, comentou ela com os seus conselheiros antes da conversa. “Ele deveria ter algo para fazer. Porque não secretário-geral da NATO?”, sugeriu ela quase do nada, antes de telefonar. No final da conversa desde Berlim, a chanceler transmitiu a ideia ao antigo primeiro-ministro em Oslo.

O cargo de secretário-geral da NATO tornou-se algo diferente do que Jens Stoltenberg imaginava quando recebeu um telefonema de Angela Merkel em novembro de 2013

A paz prevaleceu na região euro-atlântica. O Conceito Estratégico da NATO — as diretrizes da aliança de defesa reformuladas cerca de uma vez por década — referia-se à Rússia como um parceiro estratégico. A China não foi mencionada. A única pessoa que sabia algo sobre o possível cargo era a esposa de Jens, a experiente diplomata Ingrid Schulerud. Durante o processo eleitoral, em fevereiro de 2014, os soldados russos invadiram a península da Crimeia. Os russos assumiram o controlo, e o território, que fazia parte da Ucrânia, foi anexado. Um pouco mais tarde, os soldados de Putin entraram na região oriental da bacia do Donetsk. Os russos alegaram que o desejo da Ucrânia de aderir à NATO desencadeou a anexação. Se a Rússia não tomasse medidas agora, haveria o risco de serem instaladas bases militares americanas na Crimeia, defendiam.

Stoltenberg com o chanceler alemão Olaf Scholz momentos antes de uma conferência de imprensa em Berlim, a 19 de maio
TOBIAS SCHWARZ

Uma das razões pelas quais a chanceler Angela Merkel e o Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, quiseram Stoltenberg como líder da aliança foi precisamente o seu bom relacionamento com a Rússia. Ele demonstrou flexibilidade e capacidade de cooperação durante o seu período como primeiro-ministro. Isso poderia ser útil agora. Mas isso não ajudou. “Era uma guerra esperada”, afirma Stoltenberg sobre a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. “Sabíamos disso. Tínhamos informações exatas e concretas sobre a mobilização. Compartilhámos essas informações com os meios de comunicação social, alertámos por meses, fizemos um trabalho diplomático vigoroso... Passámos do desanuviamento à alta tensão e à guerra.” Quando Jens Stoltenberg se deitava ao fim do dia, ele sabia que seria acordado a meio da noite, ou no início da manhã seguinte, com a notícia de que o ataque tinha começado. “Muitas pessoas estão abaladas com a brutalidade”, indica. “Mas não há razão para ficar surpreendido. Vladimir Putin já usou a força militar noutras ocasiões; consideremos os exemplos da cidade de Grozni, da Geórgia, ou de Alepo...”

A subida torna-se mais íngreme. O suor escorre. As bochechas de Jens ficaram vermelhas. Ele queixa-se de que não está em forma. Não tem tempo para treinar tanto quanto gostaria. Algumas sessões na máquina de treino na cave da sua casa em Bruxelas não são suficientes para enfrentar as encostas ao redor de Oslo. Ele vira-se para mim: “Podemos conversar mais quando chegarmos ao cimo. Não posso mais fazer isto.” Dou-lhe espaço para respirar. Mas mesmo assim, “olá, olá... Olá, olá!” — diz ele enquanto respira profundamente. E então cantarola, por vezes. Ele não cantarola melodias inteiras, apenas fragmentos, algumas notas aqui e ali. Quase como se ele próprio não tivesse consciência disso. “Ali está o primeiro-ministro”, grita um rapazinho. “Olá, olá... Olá, olá!” Uma vez o primeiro-ministro, sempre o primeiro-ministro... “Há muita gente”, diz ele quando finalmente chegamos ao cimo da primeira, longa e desafiadora ladeira.

o secretário-geral da NATO com o primeiro-ministro português, António Costa, à saída de uma reunião no Palácio de São Bento, em Lisboa, em maio
Horacio Villalobos

O sol finalmente rompe por entre as nuvens. Um casal caminha na nossa direção. “Já passou muito tempo desde a que vi”, exclama Jens quando se apercebe que se trata da antiga namorada de um antigo ministro do seu mandato. “É a realeza absoluta”, continua ele, contente com o intervalo. O casal apanhou o comboio para o norte na mesma manhã e tem viajado para sul, em direção a Oslo, durante vários quilómetros. “Viajaram ao sol durante todo o dia? Esta manhã havia nuvens na cidade”, mencionou Jens. Eles falam sobre o que falam as pessoas que não se encontram há dez anos: o clima e os esquis. O que é melhor, os esquis sem cera, os chamados esquis de pele, ou os esquis de fundo regulares? “Hoje é perfeito com cola”, responde Anne Grethe, e apresenta Eirik, o seu novo namorado. “Olá, olá, o meu nome é Jens”, responde Jens. “É você que os encera? Os meus esquis são provavelmente mais escorregadios do que os seus, contudo, para nós, preguiçosos, os esquis sem cera são os melhores.”

“Mas, como está?”, pergunta Anne Grethe. Jens parece quase surpreso, deveria explicar agora? “A título pessoal, o meu cargo na NATO faz sentido, sim, é motivador e importante, mas é terrível o que faço”, diz ele quando sai da pista, enquanto as pessoas passam. “Todas as manhãs começam com relatos de vítimas. E não há sinais de que a guerra terminará em breve, o que é tão terrível.” Ele hesita um pouco antes de continuar. “As guerras são muito imprevisíveis, podem ocorrer diferentes eventos. Esta guerra poderia acabar no outono, mas também poderia continuar por um ano, dois, três, ou mais...” Dois rostos sérios observam enquanto ouvem. “No início, receava que a guerra fosse além das fronteiras da Ucrânia, que se agravasse, que se espalhasse, mas agora estamos mais confiantes com a permanência dos combates nesse país. Não é um conforto para os ucranianos, embora seja um conforto para nós. Uma paz duradoura será difícil, pensemos no Protocolo de Minsk, mas os ucranianos continuaram a lutar sempre um pouco de qualquer maneira. A paz pode vir em ondas. Mas devo dizer que é uma experiência estranha, penso na primeira vez que conheci o Presidente Volodymyr Zelensky, foi antes da guerra, um tipo simpático, só isso. A situação exige um ser humano. Vejam o que ele conseguiu. Bem, tenho que seguir. Foi um prazer conhecer-vos!”

Jens Stoltenberg com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, após uma reunião em Kiev, em abril deste ano
NurPhoto

Jens Stoltenberg não é pessoa para encarar qualquer questão de ânimo leve, e nunca lhe convém limitar-se a “arranhar a superfície”. Tem uma grande capacidade de estar presente no momento. Isso também é verdade quando fala com as pessoas. É leal à situação. E, não menos importante, ao seu cargo, para a NATO. Ele é muito cuidadoso ao transmitir a perspetiva da Aliança, como, por exemplo, rejeitar a ideia de que a Rússia tem razões para se sentir ameaçada, apesar da sua expansão para o leste. Pelo contrário, a invasão da Crimeia pela Rússia mudou tudo. Em resposta, os países membros da NATO devem aumentar a sua preparação e rearmar-se. Stoltenberg enfatiza que sempre manteve comunicação aberta com a Rússia; a última reunião do Conselho da NATO com a Rússia ocorreu apenas um mês antes da invasão. “Vladimir Putin calculou mal. Ele cometeu três erros graves de avaliação. Um deles é que ele subestimou o poder de combate, a moral e a vontade dos ucranianos. Nos últimos anos, eles treinaram com vários países ocidentais, como o Canadá, a Grã-Bretanha e a França, e o exército é muito diferente do que era em 2014. Ele também subestimou a liderança política da Ucrânia. Ao mesmo tempo, ele sobrestimou as suas próprias forças. É esse o problema dos líderes autoritários. Eles nunca ouvirão a verdade. Aqueles mais próximos hesitaram em dizer-lhe o quão mau a situação corria. Em retrospetiva, pode parecer que ele acreditou na sua própria retórica, ou seja, que a Ucrânia está cheia de neonazis e de pessoas decadentes. Parece que ele acreditou que os russos seriam recebidos como libertadores e não como ocupantes. E aqui acrescento um quarto ponto: Vladimir Putin subestimou a NATO”, afirma Stoltenberg com ênfase.

“Em dezembro de 2021, alguns meses antes da invasão, as suas principais exigências eram que a NATO não se expandisse, com novos países membros, e que retirássemos equipamentos militares das regiões orientais da Aliança. E uma vez que não conseguiu fazer valer essas exigências, ele começou a guerra! Vladimir Putin começou a guerra para reduzir a influência da NATO, e, pelo contrário, a influência da NATO aumenta!” Com a adesão da Finlândia à aliança de defesa, a Rússia passa a ter uma fronteira dupla com a NATO.

“Vladimir Putin começou a guerra para reduzir a influência da NATO, e, pelo contrário, a influência da NATO aumenta”, diz Jens Stoltenberg, que deverá ser reconduzido como secretário-geral

Este domingo, Stoltenberg pretendia começar o seu percurso habitual. Subir as encostas em direção a Ullevålseter, e depois descer o lado ocidental de Sognsvann. Mas ao chegarmos ao planalto, ele quer ir mais longe, para cima, são vários quilómetros de subida antes de chegar ao cruzamento em Skjennungstua, outro local para parar e comer. “Mas continuamos, não vamos entrar”, diz ele, quase como se tivesse medo de que eu discordasse. Ele não tem tempo para isso. No entanto, quer falar dos seus bons vizinhos, e ele é um diplomata que fala.

O secretário-geral da NATO aperfeiçoa constantemente a arte de ponderar as suas palavras. Um comentário descuidado pode criar agitação e divisão, algo de que não gosta. Sobre a adesão da Suécia, ele especifica: “Tenho sido muito prudente, para não dizer absolutamente nada. Poderia ser interpretado como uma pressão minha ou da NATO sobre a Suécia. É um princípio fundamental que os próprios países, grandes e pequenos, decidam quais as alianças a que querem aderir. Este é o princípio que Vladimir Putin viola. Mas tenho de admitir que fiquei satisfeito quando a Suécia, após uma decisão soberana, opta por aderir. Estou convencido de que a adesão da Suécia irá reforçar a NATO. Os nossos vizinhos nórdicos têm instituições e tradições democráticas sólidas, o que é bom para a NATO. A Suécia também traz consigo uma indústria de defesa avançada. E se analisamos o mapa, constataremos que a defesa da região nórdica será mais fácil. Somos bastante pequenos. Não fica longe da fronteira russa para o Mar Báltico. É uma faixa bastante estreita. Mas imagine, agora a região nórdica tem 250 caças juntos!”

Jens Stoltenberg no cockpit de um caça Mitsubishi F-2 , da força aérea japonesa, na base de Iruma, no Japão, em janeiro deste ano
Takashi Aoyama

A paisagem está envolta em neblina, as sombras entre as árvores tornam-se mais longas. Houve menos pessoas nestas pistas. O sol está quase a pôr-se. Chegamos a um ribeiro. “Veja, é mágico lá dentro”, exclama ele. Há algo sedutor e enevoado entre as árvores. Jens quer lá ir. Nenhuma máquina de rasto foi conduzida aqui. O gelo não suporta as máquinas nos pequenos ribeiros. Aqui só há trilhos simples, que oscilam entre as árvores. Vamos atrás uns dos outros. A conversa é interrompida. Ambos desaparecemos em nós mesmos. Ele falou sobre isso no início do percurso. Isso é o que ele já não tem. “Esquiar, para mim, é meditação”, disse, antes de ficar em silêncio. “Fico absorto pela natureza, pela experiência, pelo tangível, consigo pensar em questões sérias, mas de uma forma calma, reflito, sonho um pouco. Acontece se for com outras pessoas ou sozinho, entra-se tanto na natureza no inverno, nos pântanos para onde se olha no verão. Agora eles estão congelados, aproveito os longos passeios, quilómetro após quilómetro. Gosto mais e mais.”

“Fumava para me confortar”

Embora se queixe de que a sua condição física é fraca, ainda não é tão má como quando ele tinha metade da sua idade. Quando Jens tinha 30 anos, ele estava sempre a festejar. Nunca foi um desportista e ingressou na organização juvenil aos 14 anos. Depois, houve cursos, reuniões com festas, em vez de treinos. “Enquanto havia uma cerveja na mesa, eu fumava. Após a derrota nas eleições em 2001, fumei um monte de cigarrilhas. Fumava para me confortar, porque estava preocupado ou porque estava tenso. Os meus amigos disseram-me para me acalmar, e eu fi-lo. Comecei a andar de bicicleta para o trabalho, depois para treinar; o avanço foi quando comprei uma bicicleta com pedais com presilha. Na verdade, combina comigo agora. Sabia que andar de bicicleta na Bélgica é como esquiar para os noruegueses? Todos o fazem. Mas vamos para Marimyr (Siggerud), é tão agradável.”

Nós continuamos. Em breve estará a anoitecer. Como é que ele lida com a escuridão consequente do seu cargo? “Penso um pouco como um médico numa sala de emergência. Vou trabalhar, mas também devo proteger-me para não me irritar, porque senão não consigo funcionar. Se não consigo lidar com a situação, não funcionará”, expressa ele, enquanto os seus braços e as suas pernas balançam de um lado para o outro. A guerra é existencial para a Ucrânia. Qual é o limite máximo da dor? Será que ele existe mesmo? Até agora, este ano, o consumo de munições pela Ucrânia excedeu a produção total da NATO. Qual será o resultado? “Uma solução política ou uma solução militar estão relacionadas”, afirma Jens.

A guerra é existencial para a Ucrânia. Qual é o limite máximo da dor? Será que ele existe mesmo? Até agora, este ano, o consumo de munições pela Ucrânia excedeu a produção total da NATO

“Uma solução negociada é governada pelo equilíbrio de forças no campo de batalha. Nada acontece de repente. Acontece quando uma das partes já não acredita que pode vencer a batalha. Neste momento, a mesa de negociações é a solução. A NATO quer a paz. Mas não uma solução a partir da qual a Rússia consiga o que deseja. Em todo o caso, os ucranianos, em última instância, devem decidir o que é aceitável. Mas se queremos uma solução negociada amanhã, devemos fornecer apoio militar hoje.”

Jens Stoltenberg fica parado num cruzamento. Um pai e uma filha desviaram-se. “Você sabe chegar ao Trilho do Luar?”, pergunta o homem, sem reconhecer o esquiador com o boné vermelho que colocou sobre a testa e as orelhas, à medida que o frio da tarde se aproximou. Jens aponta. “Naquela direção, ali, subindo a encosta e depois descendo a ladeira, e quando atravessar a pista iluminada — segue para a esquerda, e ali está o Trilho do Luar.” O homem agradece e Jens sorri: “É a melhor descida.” Tomamos a mesma ladeira. “Tenha cuidado”, menciona Jens. Vou com calma, ele pede desculpas. “Uma amiga minha ficou gravemente ferida nas costas nesta ladeira, enquanto outra pessoa sofreu uma concussão grave.” O secretário-geral da NATO não tem tempo para qualquer tipo de dano agora. As pistas tornam-se mais difíceis à medida que a temperatura diminui. Os trilhos ficaram ao sol todo o dia, e quando a sombra vem faz com que congelem e fiquem gelados. “Também não consigo ver quase nada”, comenta. “Na verdade, estou de óculos, mas agora só consigo ver o gelo nos trilhos quando já é demasiado tarde. Os óculos estão em casa, em Bruxelas.”

Em casa, em Bruxelas. Onde é que ele pertence realmente? No dia primeiro de outubro, outra pessoa assumirá a liderança da NATO. O próprio Jens não sabe o que fazer. Ele apenas diz que quer ir para casa... Para a casa de Ingrid, para a casa em Oslo. Mas antes disso, ele preferiria pôr termo a uma guerra. “A minha mãe envia o seu afeto e o seu agradecimento”, diz um jovem que encontramos. A mãe é da Finlândia. “Tem sido um enorme esforço”, expõe Jens enquanto ri. “E também vamos conseguir a adesão da Suécia. Só demora algum tempo.” Uma criança passa por nós, outra criança e uma terceira, a uma velocidade vertiginosa. Depois chegam os pais. A mãe em primeiro lugar, o pai por último. “Olá, olá!” Agora um norueguês ficará feliz.

No Trilho do Luar, o pai segue um pouco atrás do seu grupo e mantém o controle. Em Bakhmut, os pais cavam trincheiras. Este é o lugar onde os pensamentos de Jens Stoltenberg estiveram neste inverno... com aqueles que vivem e morrem no pior de todos os invernos.

* jornalista e escritora, autora de “O Livreiro de Cabul”

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