Internacional

“Reconhecer uma língua e uma cultura é reconhecer a identidade política de um povo”

Mariano Jabonero atribuiu a Medalha de Honra da OEI a Marcelo Rebelo de Sousa “em reconhecimento do seu contributo para a consolidação do espaço ibero-americano”
Mariano Jabonero atribuiu a Medalha de Honra da OEI a Marcelo Rebelo de Sousa “em reconhecimento do seu contributo para a consolidação do espaço ibero-americano”
Miguel Figueiredo Lopes/Presidência da República

“A desigualdade é um problema crónico. Somos a região mais rica em recursos no mundo e a mais desigual do mundo", afirma Mariano Jabonero, secretário-geral da Organização dos Estados Iberoamericanos, em entrevista ao Expresso. Fala dos desafios desta comunidade de 23 países, que pela primeira vez vai adotar o guarani como língua oficial, ao lado do português e do espanhol, numa grande conferência internacional que começa esta terça-feira na capital do Paraguai

Há 850 milhões de pessoas que falam português ou espanhol nos 23 países membros da Organização dos Estados Iberoamericanos (OEI). O Expresso entrevistou Mariano Jabonero, secretário-geral desta organização, que defende a valorização das 300 línguas dos povos originários que existem nesta comunidade de países.

“A cultura é um bem que produz bem-estar” e um instrumento para combater o “problema crónico” da a desigualdade . “Somos a região mais rica em recursos no mundo e a mais desigual do mundo.”, afirma o responsável.

Jabonero vai estar no Paraguai terça e quarta-feira, 23 e 24 de maio, numa grande conferência internacional onde, pela primeira vez, o guarani vai ser língua de trabalho a par do português e do espanhol. Preservar e defender os 300 idiomas dos povos originários que se falam na comunidade de 23 países membros da OEI é um dos grandes desafios do secretário-geral.

Vai participar na III Conferência Internacional das Línguas Portuguesa e Espanhola (CILPE), ainda esta semana na capital do Paraguai [23 e 24]. O encontro tem a grande novidade de se realizar em três línguas, incluindo o guarani, língua oficial do Paraguai desde 1992, a par do espanhol. Que expectativas tem?
É a primeira vez que a Conferência se realiza em três línguas. O guarani, língua oficial, vai estar presente, o que mostra a importância da riqueza linguística da nossa região nas formas culturais que tanto admiramos. Acreditamos que será mais um impulso para a consciência da importância transversal das línguas e o seu empoderamento a favor das nossas comunidades. A primeira CILPE realizou-se em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, em novembro de 2019. É um instrumento fundamental do Programa Ibero-americano de Multilinguismo e Promoção do Português e do Espanhol da OEI, criado no final de 2018. Através da CILPE estabelecemos prioridades de ação, envolvemos parceiros como a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), o Instituto Cervantes ou o Camões. A CILPE de Lisboa definiu grandes áreas de cooperação entre as línguas, que vão da educação à cultura, passando pela mobilidade ou pela relação com a economia e a geopolítica.

A II CILPE foi no Brasil, também um país de língua portuguesa.
A segunda CILPE realizou-se em Brasília [2022], e aí dedicámos especial atenção às línguas e à ciência, bem como às tecnologias da linguagem que envolvem a inteligência artificial ou a cultura digital. Esta CILPE 2023, a terceira, realiza-se [em Assunção] no Paraguai, nos próximos dias 23 e 24, e conta com apoio do respetivo Governo.

Como é que a OEI pode melhorar as condições de vida dos povos indígenas?
Estamos a trabalhar num projeto de promoção das línguas indígenas, aprovado na cimeira de chefes de Estado e de Governo [dos países da OEI]. Há um fator básico: garantir o reconhecimento das línguas e da cultura [dos povos originários]. Na região temos o espanhol e português. Além destas duas línguas oficiais, há centenas de línguas indígenas que têm de ser reconhecidas. Reconhecer uma língua e uma cultura é reconhecer a própria identidade política de um povo, e isso é muito importante.

O reconhecimento das línguas indígenas contribui para formar uma identidade política das respetivas comunidades?
Quando um país reconhece politicamente uma comunidade indígena, valoriza-a. Passa a ser objeto da política e não sujeito da política. Estamos a trabalhar duramente pelo reconhecimento das línguas [originárias], criando sistemas de tradução simultânea, e assim garantirmos que as línguas indígenas tenham condições para entrar no mundo digital. Estamos a construir uma aplicação que já está na Bolívia, no Peru e na Guatemala, países com grande percentagem de povos indígenas. Na OEI desenvolvemos projetos em línguas indígenas. Temos projetos em guarani no Paraguai, em quechua, aymara, e achuar, no México. E também estamos a desenvolver um projeto de ciências da matemática no Panamá, com a comunidade yadenca, que também tem uma língua originária.

A língua pode formar uma identidade política?
A valorização das línguas [originárias] é a valorização política das comunidades indígenas.

Quantas línguas indígenas existem no espaço da OEI?
Mais de 300. É uma região com grande diversidade. Alguns países, como é o caso da Guatemala, que é um país pequeno, têm mais de 20 idiomas originários.

Essas línguas têm expressão escrita?
Algumas têm.

Há países na área geográfica da OEI que estão a viver momentos políticos tensos. Como é que a organização que dirige pode contribuir para pacificar a região?
A OEI, que dirijo, é um organismo que não tem missão política no sentido [estrito]. Na América Latina existe a Organização dos Estados Americanos, que tem esse objetivo político. O objetivo da OEI é a cooperação. Se o cumprirmos, estamos a colocar na agenda dos países da região o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos. É uma questão importante numa região em que existem países muito diversos em todos os sentidos, incluindo politicamente.
Também temos uma relação de cooperação com a União Europeia, que pode influenciar direta ou indiretamente o processo político.

Acaba de dizer que a OEI não tem missão política direta. A educação pode contribuir para a estabilidade de países que atravessam um momento de instabilidade política e social?
Nalguns países há tensões, em grande parte, ligadas a um certo nível de insatisfação dos cidadãos, que não veem os seus desejos e aspirações satisfeitos. Temos três tarefas fundamentais: uma é acompanhar o processo de transição política. Vivemos numa região de economias em transição, que, por vezes, pode passar pelo modelo de sociedade ou até pelo modelo de governo. Acompanhar a transição [é vital para garantir] que as políticas públicas sejam eficientes. A segunda tarefa é continuar a trabalhar intensamente para o fortalecimento institucional… temos países com instituições fracas, [e isso contribui] para o cansaço democrático. Os cidadãos, por vezes, desconfiam das suas democracias. É um trabalho importante que temos.

Porque desconfiam os cidadãos das democracias?
Porque as democracias nem sempre são capazes de garantir a qualidade que desejavam na educação, no emprego, nos transportes, e isso cria certa frustração entre os cidadãos. Na América Latina, a desigualdade é outro problema crónico. Somos a região mais rica em recursos no mundo e a mais desigual do mundo E essa desigualdade cria barreiras em termos de cidadania.

A desigualdade é uma doença crónica?
Sim, é crónico, porque já permaneceu muito tempo. Uma democracia saudável tem de criar limites à desigualdade. Sem esses limites, a democracia enfraquece. Há outro fator que tem sido associado à perda de bem-estar dos cidadãos, sobretudo durante a pandemia: a América Latina tem [menos de] 8% da população mundial, mas registou 30% das infeções do mundo, isto com a vacina. O que demonstra que a proteção à saúde na região é muito débil, e tudo isto contribui para que a cidadania expresse preocupação e insatisfação.

Como pode a OEI lutar contra a desigualdade?
O que temos feito e continuamos a fazer é trabalhar no fortalecimento do acesso à cultura. A cultura é um bem que produz bem-estar, se for para todos. Creio que este aspeto está a melhorar significativamente, porque é mais fácil facilitar o acesso à cultura digital do que aos sistemas presenciais. Melhorar e fortalecer a educação é outra via. Nos últimos anos, a OEI alfabetizou quase 2,5 milhões de pessoas. Segundo estudos do Banco Mundial, uma pessoa duplica o seu rendimento pelo simples facto de ter acesso à alfabetização. Nesta região, havia pessoas a ganhar um dólar ou dois por dia, e que duplicaram esse rendimento devido à educação. A educação melhora o conhecimento, mas, acima de tudo, melhora o bem-estar das pessoas.

Ou seja, é o passaporte para o bem-estar na zona da OEI?
Sim, é o famoso elevador [social]. Através da educação, cada pessoa pode ascender a um patamar superior.

A desigualdade atinge mais as meninas e as mulheres do que os homens?
É um problema maior para as mulheres do que para os homens.
Já existem dados e são muito relevantes no caso do ensino superior: Na região temos 32 milhões de estudantes no superior, mais mulheres do que homens. Houve uma mudança significativa: há mais raparigas no ensino superior, mas [são direcionadas] para carreiras mais ligadas aos serviços de saúde, à educação, às crianças, enquanto os rapazes escolhem carreiras que têm mais que ver com o mundo da tecnologia, etc., ou seja, com empregos que [exigem] formação superior.

Os números de acesso à educação são equiparados ou desiguais entre os países da OEI?
Quando se fala em Iberoamérica, tende-se a pensar que é uma região com unidade. Mas não é verdade. É uma região com países diversos e uma história muito diferente entre países. Vou dar um exemplo: o Uruguai é pequeno, tem cerca de quatro milhões de habitantes, não teve nenhuma guerra [em mais de 100 anos], tem classe média. Do lado oposto, El Salvador é um país onde a guerra civil [começou em 1979] e só terminou em 1993. O Panamá foi ocupado pelos Estados Unidos há não muito tempo [1989], a República Dominicana também. O nível de equidade não é o mesmo em toda a região, é maior em países como o Chile, a Argentina ou o Uruguai, e menor noutros, sobretudo na América Central: El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua. Nesses países o nível de equidade é, muito menor.

E a desigualdade em função do género?
Há uma variável na diferença de rendimentos entre homens e mulheres, influenciada pela circunstância de viverem numa zona rural ou urbana. Nas áreas rurais há maior desigualdade do que nas áreas urbanas, e ela é ainda mais evidente nas comunidades indígenas.

Quais são os grandes projetos da OEI neste momento?
Temos grandes projetos na área da cultura, que é muito importante, que apoiam a ligação entre a cultura, a economia e o emprego. Isto é muito importante porque, a cultura representa 2 a 4% do produto interno bruto dos países da nossa zona. A cultura tem um contributo importante para a riqueza dos nossos países e para o emprego. Durante a pandemia perderam-se 2,5 milhões de postos de trabalho no sector cultural. São 2,5 milhões de famílias sem rendimentos. A ligação entre economia e cultura é muito forte nesta região.

A pandemia mudou o sistema de educação?
Temos de caminhar para a educação digital. Após a pandemia, a educação sempre será híbrida, presencial e virtual, o que pode torná-la mais acessível a todos. A pandemia mostrou que parte dos alunos teve acesso à educação virtual, outros não. E há alunos sem acesso que ainda estão desligados da educação [no formato digital]. Outro assunto que nos preocupa é a questão da empregabilidade.

Em que países se perderam mais empregos durante a pandemia?
Na área da cultura foi nos países com maior atividade cultural: Brasil, Argentina e Chile sofreram o maior impacto de perda de postos de trabalho durante a pandemia.

Quando fala de empregabilidade, a que se refere?
Os nossos jovens, quando saem do sistema educativo, não possuem competências básicas para garantir empregos de qualidade. Esta questão preocupa-nos muito. Estamos a trabalhar com sistemas de formação profissional em muitos países da zona.

Espanha e Portugal também fazem parte da OEI. Há algum projeto nestes dois países?
Temos um projeto muito interessante e bonito, a que chamamos Escola de Fronteira, e em que trabalhamos com os ministérios da Educação de Portugal e Espanha. É um projeto que tem réplica na fronteira do Brasil, com países que falam espanhol. Esta é a mais extensa da América. E a fronteira entre Espanha e Portugal é a mais longa da Europa.

Os currículos nas Escolas de Fronteira são idênticos em Portugal e Espanha?
As escolas de um lado e de outro da fronteira partilham o currículo e as atividades, e são bilingues. As escolas do lado português usam o espanhol e o português.

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