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Escalada do protecionismo: três pontos para perceber a potencial guerra comercial entre a UE e os EUA

Escalada do protecionismo: três pontos para perceber a potencial guerra comercial entre a UE e os EUA
BPA

Em causa está um programa norte-americano de subsídios e benefícios fiscais para empresas ligadas à transição energética que os europeus consideram ser prejudicial para a base industrial da UE. O risco é uma escalada nos subsídios de parte a parte que a esmagadora maioria dos economistas defende ser prejudicial para todos os envolvidos

O Presidente francês, Emmanuel Macron, partiu esta terça-feira para a capital norte-americana de Washington D.C. para uma visita de estado de três dias. Foi recebido com pompa e circunstância, com direito a saudação militar e um extravagante jantar oficial na Casa Branca, mas por detrás da cordialidade esconde-se uma tensão latente entre os aliados históricos.

Na Europa fala-se numa potencial guerra comercial com os norte-americanos, motivada pelo recente pacote de subsídios e benefícios fiscais aprovado pelo congresso americano para, entre outras coisas, fortalecer a sua indústria automóvel elétrica.

Macron, à semelhança de muitos na União Europeia (UE), considera que a estratégia dos EUA prejudica desproporcionalmente a indústria do velho continente, apelidando-a de “comercialmente super agressiva”, e tem apelado à Comissão Europeia para impor medidas retaliatórias.

Aqui fica a potencial guerra comercial entre a UE e os EUA em três pontos.

1. “Inflation Reduction Act”

Em causa está uma lei intitulada “Inflation Reduction Act”, ou “Ato de Redução de Inflação”, aprovada pelo Senado dos EUA dia 7 de agosto e assinada por Joe Biden, Presidente norte-americano, na semana seguinte.

A legislação contempla três grandes eixos, sendo eles clima e energia, saúde e política fiscal. Mas, neste caso, o mais relevante é mesmo o investimento no setor do clima: são 369 mil milhões de dólares (355 mil milhões de euros, no câmbio atual) em investimento para a transição energética e para atenuar os efeitos nefastos das alterações climáticas.

Entre as várias vias de ação, a lei estabelece um programa de subsídios para incentivar a produção local de baterias de veículos elétricos e um crédito fiscal de 7500 dólares, destinado a particulares e empresas, para a aquisição de carros elétricos.

Eis o problema: os benefícios fiscais são direcionados apenas à compra de veículos cuja montagem final seja feita nos EUA, Canadá ou México, deixando de fora, por exemplo, uma vasta gama de automóveis fabricados na UE.

Mais: as subvenções empresariais propostas são demasiado elevadas para os bolsos europeus, tornando o continente menos aliciante para muitas empresas.

Joe Biden assina o "Ato de Redução de Inflação", dia 16 de agosto de 2022
MANDEL NGAN/Getty Images

Um dos principais receios prende-se exatamente na possibilidade do “Ato de Redução de Inflação” relocalizar investimento para os EUA, tanto na indústria automóvel, como no mercado emergente das baterias para carros elétricos, resultando na perda de competitividade do bloco comunitário.

Numa prova disso mesmo, o grupo sueco Northvolt, um dos maiores produtores de baterias de lítio, sinalizou ao jornal Financial Times que está a pensar aumentar a sua presença no mercado da América do Norte em detrimento do continente europeu.

Como nota a empresa, a justificação é simples: nos EUA poderá receber entre 570 e 770 milhões de euros em subsídios para construir uma fábrica, enquanto a Alemanha oferece apenas 155 milhões. Além disso, a energia é hoje significativamente mais cara na Europa, dificultando a sua posição negocial.

Só em França, espera-se uma perda de 10 mil milhões de euros em investimento e 10 mil postos de trabalho, estimou Bruno Le Maire, ministro da Economia francês, numa entrevista ao jornal Les Echos.

2. A resposta - “Comprar Europeu”

Logo em outubro, foi criado um grupo de trabalho bilateral entre a UE e os EUA precisamente para discutir esta lei e as suas repercussões para o comércio e indústria. No âmbito dessas conversações, Katherine Tai, representante norte-americana de Comércio Estrangeiro, foi convocada a Bruxelas.

Os enviados da UE insistiram que os veículos produzidos no seu território deveriam ser igualmente contemplados no esquema de créditos fiscais, tal como os fabricados no México e Canadá, mas Tai rejeitou a proposta. Em vez disso, sugeriu apenas que Bruxelas desenvolvesse o seu próprio programa de subsídios.

Esta e várias outras declarações norte-americanas, lidas como manifestações de indiferença perante as preocupações dos seus aliados, foram mal recebidas pelas principais capitais do continente. O certo é que, apesar da discórdia, estas parecem ter acatado o conselho de Katherine Tai - com destaque para Paris e Berlim.

“Os americanos estão a ‘comprar americano’ e a seguir uma estratégia muito agressiva de ajuda estatal”, disse Emmanuel Macron em outubro a um jornal francês. “Precisamos de uma lei ‘Comprar Europeu’, precisamos de reservar [os nossos subsídios] para os fabricantes europeus”, acrescentou poucos dias depois.

Nesse sentido, as discussões entre a França e a Alemanha têm-se intensificado nos últimos dias. Na mira está um potencial plano de intervenção no mercado comunitário através de generosas subvenções para indústrias cruciais, nomeadamente as ligadas à transição energética.

Elisabeth Borne, primeira-ministra francesa, e Robert Habeck, ministro da Economia alemão, durante uma visita de Borne à Alemnanha no dia 25 de novembro
JOHN MACDOUGALL

“A Europa tem de reconhecer - tal como reconhecemos com a produção de microchips - que uma certa resiliência, uma certa soberania estratégica da Europa, é também necessária na produção industrial de produtos energéticos”, argumentou Habeck esta terça-feira.

A concretizarem-se, as subvenções estariam condicionadas pelas características de produção dos vários artigos a considerar. À semelhança do “Ato de Redução de Inflação”, Bruxelas quer beneficiar apenas empresas que produzam totalmente na Europa ou utilizem uma certa percentagem de matérias-primas fabricadas no continente nas suas linhas de produção.

Thierry Breton, Comissário europeu para o Mercado Interno, já terá começado esse processo e propôs na quarta-feira estabelecer uma plataforma intitulada “Clean Tech Europe” ("Europa da Tecnologia Verde"), que terá como objetivo “desenvolver uma perspetiva a longo prazo para o reforço das capacidades industriais da UE”.

3. As consequências - divisão no ocidente e fragmentação na Europa

Aproveitando a visita de Macron, Joe Biden tentou esta quinta-feira colocar água na fervura ao dizer que há “afinações” que podem ser feitas para acomodar os europeus, não propondo, no entanto, qualquer medida concreta.

Os próprios europeus sempre defenderam que não há nada de inevitável nesta guerra comercial, e sempre preferiram uma solução conjunta baseada nos princípios do comércio livre.

“O importante para nós é que nos mantenhamos no sistema de comércio internacional”, disse também esta quinta-feira Margrethe Vestager, vice-presidente executiva da Comissão Europeia. “É este o caminho a seguir, e não entrar numa disputa com os americanos”, rematou.

As consequências de um potencial conflito comercial seriam, de facto, prejudiciais de parte a parte.

Macron aludiu a uma delas durante a sua visita a Washington quando disse que o “Ato de Redução da Inflação” vai “dividir o ocidente” e criar “grandes diferenças” entre os mercados das duas regiões.

Emmanuel Macron e Joe Biden, na Casa Branca
Nathan Howard

Em primeiro lugar, a contenda transatlântica poderia pôr em causa a unidade no apoio ao esforço militar ucraniano contra a invasão da Rússia, numa altura em que todos os membros da NATO se mostram disponíveis para fornecer armamento e auxílio diplomático a Kiev.

Em segundo lugar, o alinhamento entre europeus e norte-americanos é crucial no combate ao que ambos consideram ser a grande ameaça para a ordem internacional vigente: a recente assertividade económica e militar da China.

Numa época de crescente competição tecnológica, a China já controla grande parte das cadeias de fornecimento ligadas à extração e refinação de matérias-primas como o lítio ou o níquel, utilizadas para produzir semicondutores e baterias de carros elétricos, pelo que sairia a ganhar de um desentendimento entre dois dos seus principais parceiros comerciais.

Depois, qualquer plano protecionista na Europa levaria a uma quebra geral nas suas exportações, afetando desproporcionalmente os Estados-membros mais pequenos, entre eles Portugal, mais expostos ao comércio com países fora do bloco. Um recente relatório da consultora Frontier Economics aponta para uma perda anual de entre 28 e 60 mil milhões de euros só em exportações.

Contudo, tendo em conta o tom conciliatório da conferência de imprensa de Biden e Macron, muitos ainda ambicionam uma resolução pacífica para este impasse.

A primeira oportunidade para alcançar um acordo será a 5 de dezembro numa reunião do Conselho de Comércio e Tecnologia UE-EUA, um fórum bilateral formado em junho de 2021, onde estarão Katherine Tai e Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano. A julgar pelo intervalo de tempo alocado para a discussão do “Ato de Redução de inflação” - menos de uma hora -, não se esperam grandes progressos.

Texto de José Gonçalves Neves, editado por …

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