Internacional

Cabeça rapada, tatuagens, ativista de boas famílias, um AVC quase mortal. Quem é John Fetterman e como conquistou a Pensilvânia?

O novo senador da Pensilvânia, John Fetterman na antiga metalúrgica da cidade onde vive, Braddock
O novo senador da Pensilvânia, John Fetterman na antiga metalúrgica da cidade onde vive, Braddock
The Washington Post

John Fetterman saiu da sua casa de classe média-alta, em York, Pensilvânia, para ir ser presidente da câmara de área abandonada e empoberecida pela queda da produção industrial. Ainda lá vive, numa garagem reconvertida. A quatro dias das primárias teve um AVC grave e estava semi-consciente quando a mulher o informou que era o nomeado democrata para o Senado. Conseguiu derrotar o médico Mehmet Oz, estrela da televisão norte-americana, e há quem diga que está encontrada nele a fórmula para estancar a fuga de votos da classe trabalhadora para os republicanos: um progressista que não tenta mudar os conservadores. Será que isto é bom?

John Fetterman vive com a mulher, três filhos e alguns cães numa garagem readaptada, num bairro de classe média-baixa, na cidade de Braddock, arredores de Pittsburgh, Pensilvânia. Não existem provas físicas de que tenha algum dia vestido outra coisa além de largas camisolas com capucho, os hoodies, que por acaso até estão na moda agora, mas Fetterman não os usa por ou para ser cool, sempre se vestiu assim.

O homem que venceu o republicano médico-estrela-de-tv Mehmet Oz e vai ser o próximo senador da Pensilvânia não era exatamente o que os democratas desejavam (o partido apoiou o seu principal oponente durante a primeira corrida ao Senado, em 2016, e estava muito mais interessado no moderado Conor Lamb também desta vez) mas, talvez sem que as cúpulas se tivessem apercebido disso, é bem possível que Fetterman seja o que precisam, agora e no futuro.




John Fetterman com a mulher, Gisele Barreto Fetterman, depois de ambos votarem para a corrida ao senado
ANGELA WEISS

Os dois metros de altura, as suas tatuagens, o seu sotaque da Pensilvânia serviram-lhe para captar a atenção dos moderados, mas também de alguns conservadores. Ele conseguiu ser progressista sem se focar apenas nos assuntos identitários e culturais, apesar de ser, por exemplo, um resoluto defensor do direito ao aborto e acusado de ser leniente com quem comete crimes.

Apesar de ter crescido numa casa de classe média-alta, em York, muito diferente de Braddock, não caiu de paraquedas no estado que quer representar. Utilizou em seu benefício este momento de paroxismo trumpiano que os republicanos estão a atravessar, nunca teve que trabalhar muito para fabricar uma ligação com os eleitores brancos, com um grau baixo de habilitações académicas, remediados e pouco cosmopolitas. Fez o que Trump também conseguiu fazer, mas pela esquerda.

Antes disso tudo, teve um AVC que quase o matou. Estávamos a 13 de maio de 2022. Quatro dias depois, venceu as primárias democratas, mas estava inconsciente quando isso aconteceu.

Acordou da cirurgia às 20h30. A sua mulher, Gisele Barreto Fetterman, imigrante brasileira que - disse a própria à “Intelligencer” - serve de contra-peso à “timidez incapacitante” do marido, deu-lhe a notícia, e seguiu diretamente para aceitar a nomeação pelo seu marido. Ele estava de novo a dormir minutos depois, sob sedativos fortes.

Até então, Fetterman tinha estado totalmente submerso na campanha, a discutir estratégia pela noite dentro, no Twitter a toda a hora, a falar com todos os que queriam falar com ele, a ligar a potenciais eleitores. A caminho de um evento com a mulher começou a misturar palavras e ela levou-o diretamente para o hospital.

Só que uma recuperação de tal tombo leva muito tempo, mais tempo do que aquele que os democratas dispunham para convencer os eleitores que eram a aposta certo um estado que tanto pode cair para um partido como para outro. Nas mãos de Fetterman estava o futuro do direito ao aborto, a importância da luta contra as alterações climáticas e o direito aos planos de saúde mais baratos. Então, impossibilitado de dar entrevistas presenciais ou aparecer em comícios, Fetterman usou as mãos, mais precisamente os dedos, freneticamente a bater num ecrã. Foi uma estratégia que a necessidade desenvolveu, e não uma equipa de jovens influencers ou especialistas em redes sociais.

“John nunca foi um candidato em que tivéssemos de explicar o que é um meme ou perguntar: ‘sabes por que razão este tweet é engraçado, certo?”, disse o seu diretor de comunicação, Joe Calvello, à “Intelligencer”. O próprio Fetterman faz ‘memes’, tem umas noções de design gráfico e colou no seu oponente, Mehmet Oz, o médico-estrela-da-tv que não vive na Pensilvânia mas sim numa enorme mansão em New Jersey, o rótulo de rico desligado dos problemas.

A campanha usou isso de todas as formas. Fetterman brincou com os erros ortográficos de Oz, que escreveu mal o nome da sua cidade natal, brincou com um vídeo onde o médico se queixa do preço das “crudités” no supermercado, ou seja, vegetais crus cortados aos pedaços.

Nesse dia, Fetterman fiz um vídeo viral a segurar numa caixa com pedaços de cenoura e pepino a dizer: “pessoal, isto aqui na Pensilvânia é uma embalagem de vegetais crus, se vocês não acham isso então eu provavelmente NÃO sou o vosso candidato. Se acham, podem doar QUALQUER valor para a campanha”.

1º resultado: 500 mil dólares.

De qualquer forma, o dinheiro nunca foi problema para a sua campanha. De fevereiro a abril, portanto ainda antes de vencer as primárias, recolheu 4 milhões de dólares - e quase tudo em pequenas doações.

Resultado 2: uma vingança da campanha de Oz que quase custou a Fetterman a eleição.

A diretora de comunicação da campanha do republicano respondeu a esse vídeo dizendo que se Fetterman algum dia tivesse comido vegetais na vida não teria sofrido um enfarte. Não esquecer que Mehmet Oz é médico. Os funcionários e voluntários da campanha de Fetterman ficaram irritados ao ponto de compor vinganças igualmente venais, mas o democrata, depois da sua experiência de vida-morte, proibiu expressamente os ataques maliciosos. “Eu só tento ser o tipo de indivíduo no qual eu gostaria de votar, acredito mesmo em falar da forma que falo e agir como sempre agi”, disse Fetterman à “Intelligencer”.

O tema da saúde, para desespero da campanha de Fetterman, pegou. O facto de Fetterman mal aparecer em público e, das poucas vezes em que ia aparecendo, mostrar dificuldade em responder com clareza aos seus interlocutores, era um problema. Oz distanciou-se do comentário dos vegetais mas nem por isso a sua campanha deixou de publicar coisas como fotografias adulteradas de um Fetterman obeso com frases tipo “Fetterman é uma fraude!” ou “John Fetterman não aparece em público desde 12 de maio” (o dia antes do enfarte). Ou “Enviem um SMS com a palavra PREGUIÇOSO para o 26771”.

Os soluços no discurso, as dificuldades em entender até a sua própria voz, juntar metades de palavras com outras metades de outras palavras que, ao cérebro amachucado, parecem similares, tudo isto são sintomas normais de um enfarte tão grave como o de Fetterman, que aos 53 anos quase morreu. Muitos jornais nacionais, incluindo os maiores, como o “Washington Post”, lançaram artigos a questionar a falta de informação sobre a saúde do candidato. E a campanha emitiu vários comunicados com a explicação dos médicos que o acompanharam. No fim de agosto, a sua vantagem que havia sido de dígitos estava nos cinco pontos percentuais.

A vida pública deste gigante de cabeça rapada com uma coleção estupenda de sweats de marcas de skaters não começou agora. Começou quando foi eleito para presidente da câmara de Braddock, em 2005. A pequena cidade tinha 2000 habitantes mas Fetterman era tudo o que os meios de comunicação social sonham encontrar: além de estar a tentar renovar as periferias industriais do Rust Belt com arte e centros de teatro comunitário, combina irreverência no aspecto com uma pós-graduação em Harvard, em Política Pública.

Em 1993, quando Fetterman tinha 24 anos, o seu melhor amigo morreu num acidente de carro a caminho de o ir buscar. Sem saber o que fazer para explicar o sucedido foi tentar ajudar pessoas no programa Big Brothers Big Sisters, onde jovens adultos podem ser mentores de outros jovens mais novos, provenientes de famílias sem condições para os educar. Nicky Santana foi o menino que beneficiou da ajuda, também monetária, da família de Fetterman. Ambos os progenitores haviam morrido com sida. Um “duplo soco”, como ele mesmo disse ao jornal “Politico” que o pôs a pensar “nesta crueldade da desigualdade”. “Tudo advém dessa lotaria aleatória que é o nascimento”, disse Fetterman. “Por que é que não fui a enterrar os meus pais, vítimas de uma doença horrível como a sida, antes do meu nono aniversário?”

Talvez esteja aqui a razão que leva Fetterman a não acreditar assim muito em castigos longos na prisão - e isso é um problema num país com bolsas de violência em quase todas as grandes cidades. Como vice-governador, Fetterman teve assento na Comissão de Perdão da Pensilvânia e votou para que pessoas acusadas, por exemplo, de tentativas de esfaqueamentos, fossem ouvidas nessa comissão. É verdade que os perdões aumentaram bastante desde que ele ocupou o lugar, em 2019, mas também que as decisões de Fetterman muitas vezes coincidiram com os conselhos de juízes, agentes de liberdade condicional, procuradores e funcionários das prisões.

A vitória foi inesperada, a ansiedade subiu como um arrepio pela equipa. “Certamente que fiquei desconfortável nas últimas semanas, ficou apertado” disse à revista “New Yorker” Brendan McPhillips, gestor de campanha de Fetterman, um homem bem versado em como a política da Pensilvânia funciona em margens estreitas. “Eu fui o raio do diretor da campanha de Joe Biden aqui, em 2020. Sabíamos que a eleição da Pensilvânia sempre seria apertada.”



John Fetterman com o ex-Presidente Barack Obama, que fez uma "tour" por alguns dos estados mais periclitantes para ajudar os dmeocratas
Jeff Swensen/Getty Images

As queixas que os democratas tinham quando ele foi o escolhido continuam as mesmas: está sempre sozinho, detesta tentar convencer pessoas, apoia medidas ambientais mas não é exatamente um ativista verde. O fraturamento hidráulico, ou fracking, tem vantagens, no seu entender, e apesar de defender o controlo da posse de armas, ele mesmo tem algumas em casa. Fetterman é a personificação do nó górdio democrata: devem os progressistas continuar a tentar ganhar de volta as classes trabalhadoras, que têm passado para o lado dos republicanos onde encontram políticas ‘do senso-comum’ (leia-se: as casas de banho sem géneros definidos não são uma prioridade), ou lutar contra o racismo estrutural na América, e apoiar negros, mulheres, asiáticos como candidatos, segmentos demográfico que historicamente têm garantido algumas vitórias aos democratas?

Não é uma questão fácil: a força dos números ou a pureza do ideário. De qualquer forma, Fetterman foi presidente da Câmara de Braddock, uma cidade onde a maioria da população é negra, pelo que é capaz de conseguir agradar além da trumplândia.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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