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Giorgia Meloni e Silvio Berlusconi às turras por causa do vodca de Putin

Giorgia Meloni e Silvio Berlusconi às turras por causa do vodca de Putin
FLAVIO LO SCALZO/REUTERS

Revelações embaraçosas para o antigo primeiro-ministro enfraquecem o seu partido nas negociações para formar o próximo Executivo. Giorgia Meloni, chefe da extrema-direita, será primeira-ministra nos próximos dias

A direitista radical Giorgia Meloni — que desde as legislativas de 25 de setembro, há menos de um mês, faz tudo quanto pode para ganhar imagem de moderada — está a dias de ser convidada pelo Presidente da República italiana para formar Governo. O seu Executivo de coligação com dois partidos conservadores (a Liga de Matteo Salvini e o Força Itália de Silvio Berlusconi) poderá nascer já este fim de semana.

É um recorde para Itália, pela rapidez na formação da equipa governativa, por ser a primeira vez que à frente está uma mulher e porque a União Europeia contará com um Executivo não meramente de direita, mas encabeçado por um partido que procede genealogicamente do Movimento Social Italiano, força neofascista nascida já em democracia, após a II Guerra Mundial.

Antes da votação, na sequência de uma reunião de apenas duas horas, os líderes dos três partidos afirmaram que “o programa de Governo já foi acordado”. A verdade é que no curto tempo que passou desde o seu triunfo pessoal nas urnas, Meloni (26%), chefe dos Irmãos de Itália (FdI), teve de contornar todo o tipo de obstáculos para formar o Executivo. O programa com que governará não será exatamente aquele que apresentou na campanha eleitoral.

Guerra condiciona governação

O primeiro-ministro cessante, Mario Draghi (independente), deixa à sua sucessora 10 mil milhões de euros de margem para urgências e promessas eleitorais. Muito dependerá da evolução da guerra que a Rússia iniciou na Ucrânia há nove meses, das suas consequências na Europa e da influência que tudo isto tenha nas contas públicas do país.

O principal obstáculo com que Meloni deparou no caminho é o aliado Berlusconi, que parece digerir mal os 8% de votos a que o seu partido se viu reduzido. Tal deu-lhe pouca margem de manobra para decidir os ministros importantes para os seus interesses pessoais e familiares: justiça (tem uma condenação judicial firme e três procesos pendentes) e telecomunicações (por ser dono da Mediaset). “Presumida, prepotente, arrogante, ofensiva”, lê-se numas notas tomadas pelo antigo governante sobre a sua aliada, no Parlamento, imortalizadas por uma teleobjetiva indiscreta. Era apenas o início do despique.

No início desta semana, Berlusconi conversou quanto quis com os seus parlamentares, supostamente à porta fechada, sobre a questão sobre a qual Meloni mais se pronunciou em público: atlantismo e europeísmo. Na primeira revelação da agência La Presse, Berlusconi louvava Vladimir Putin, descrevendo como “docíssima” a carta que o o Presidente russo lhe enviou quando fez anos, no passado dia 29.

A missiva vinha acompanhada de 20 garrafas de vodca e Berlusconi retribuiu em vinho italiano Lambrusco (que, por ser gasoso, é conhecido nos Estados Unidos como “Italian cola”). “Restabeleci relações com Putin”, anunciou, triunfante, após ter confessado em meses anteriores que o russo não lhe atendia o telefone. Berlusconi crê poder ser um bom mediador para a guerra.

“Guerra dos 200 anos ou mais”

No dia seguinte, terça-feira, as divulgações de La Presse subiram de tom. Berlusconi contara aos seus deputados (“Sabem o que se passou na Rússia?”) que Putin teve de declarar a “operação espacial” contra a Ucrânia por pressões de “toda a Rússia” e das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Luhansk (“Putin era contra qualquer iniciativa”).

Se a invasão não se resolveu numa semana, foi por culpa dos ocidentais, que deram dinheiro e armas a Kiev. “Uma guerra que devia ter durado uma semana vai transformar-se na guerra dos 200 anos ou mais”, vaticinou. “Se Zelenski não tivesse continuado com os ataques, a guerra já teria terminado”, afirmou, criticando o Presidente ucraniano, a quem responsabiliza por ter “triplicado os mortos”.

Perante os deputados, o veterano político acrescentou que agora o caso “não tem arranjo”, porque “infelizmente, no mundo ocidental não há líderes, nem na Europa nem nos Estados Unidos”. E lançou uma das suas piadas: “Posso fazer-vos rir? O único verdadeiro líder sou eu”. Ainda afirmou que Putin lhe dsise que era “o primeiro dos cinco amigos que lhe restam”.

A imprensa russa reproduziu as palavras de Berlusconi, que enervaram a UE e a NATO, bem como Washington. Berlusconi emendou a mão, acusando “traidores” de o terem gravado “na intimidade”. Quem pagou foi Antonio Tajani, ex-presidente do Parlamento Europeu e seu companheiro de partido. Dados os proclamados europeísmo e atlantismo da futura chefe de Governo, era ele o homem ideal para ministro dos Negócios Estrangeiros. No entanto, a oposição uniu-se contra a sua candidatura e Tajani repetiu pela enésima vez, visivelmente incomodado, que Itália sempre foi e será a favor da Europa e do Ocidente. Falou em italiano, mas também em inglês.

Meloni reagiu imediatamente e taxativa: “Quem não aceitar que Itália esteja ao lado da Europa e da NATO não poderá fazer parte do Governo, mesmo que o preço seja não se formar Governo”.

Igualdade sacrificada

Os analistas italianos tentaram interpretar as subidas de tom de Berlusconi, que não favorecem um Executivo chefiado por Meloni nem auguram nada de bom para o futuro. Houve quem explicasse, de forma mais ou menos direta, que o ex-governante está “velho”. “Talvez seja o último ato de um líder que nunca aceitou nenhum herdeiro”, escreveu um. “É como o rei Lear de Shakespeare”, rematou outro.

Nas próximos horas e dias o Governo será divulgado. Vaticina-se que não haja grandes surpresas, mas surgem indícios do rumo que irá tomar a nova “direita”. Maurizio Gasparri, um dos mentores da nova classe dominante, apresentou um projeto de lei para atribuir “capacidade jurídica ao feto”, o que levaria a restrições ao aborto.

Meloni revelou que a pasta da Igualdade (leia-se, entre homens e mulheres) perderá a categoria de ministério, sendo integrada na da Juventude e Desporto. No que toca à igualdade,

Itália ocupa, segundo o Fórum Económico Mundial, o 63º lugar entre 146 países (a Alemanha está em 10º, França em 15º e Portugal em 22º).

O nascimento do próximo Governo ditará o fim do centro-direita italiano como o conhecíamos desde 1994, chefiado por Berlusconi. Começa uma nova era, cheia de incógnitas.

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