Liz Truss foi ou não foi a primeira a “beijar mãos” em Balmoral? Pequena história de indigitações atípicas no Reino Unido
A rainha Isabel II com a nova primeira-ministra britânia, Liz Truss, em Balmoral, na Escócia, onde Truss obteve autorização da monarca para formar governo
JANE BARLOW/Getty Images
Não é um levantamento exaustivo, até porque no Reino Unido quase tudo corre dentro dos parâmetros estabelecidos, por vezes há séculos, mas há mais exemplos de primeiros-ministros indigitados longe de Windsor. Liz Truss foi esta terça-feira à Escócia receber de Isabel II autorização para formar Governo, mas no regresso a Londres encontrou, nas primeiras páginas dos jornais, não tanto felicitações, como repetidos avisos sobre a gravidade do momento que o país enfrenta
O sempre temperamental clima britânico conseguiu esta terça-feira ter uma interferência nunca vista na vida política do país. Devido às condições atmosféricas adversas, Liz Truss chegou cerca de 10 minutos atrasada ao seu encontro com Isabel II, facto que deixou o Reino Unido sem um chefe de Governo durante quase uma hora. Boris Johnson chegou às 11h15 a Balmoral, onde a rainha o esperava para receber a sua demissão, que aceitou. Pouco pouco depois do meio-dia, chegou Truss, para ser oficialmente empossada pela monarca.
A cerimónia aconteceu na residência escocesa da chefe de Estado a conselho dos seus médicos. Acossada por problemas de mobilidade, Isabel II nunca poderia assegurar com antecedência estar capaz de se deslocar a Londres. Mantendo-se em Balmoral, afastou incertezas. Ainda esta semana faltou aos Highland Games, provas desportivas muito do seu apreço.
Truss é ou não é a primeira a ser empossada em Balmoral?
O cenário da transferência de poder mudou este ano, precisamente porque os 96 anos de Isabel II impedem que se movimente com rapidez entre cidades distantes. O castelo de Balmoral fica numa extensa propriedade detida pela família real britânica, onde a rainha e a família costumam passar o verão. Foi ali que, a 31 de agosto de 1997, receberam a notícia da morte da princesa Diana, em Paris.
É a primeira vez, em mais de 70 anos de reinado, que Isabel II indigita um chefe de Governo em local que não o Palácio de Buckingham. Mesmo na restante história democrática do Reino Unido, só há mais um episódio: a rainha Vitória, em 1885, convocou Robert Salisbury a Balmoral para lhe pedir para formar Governo. Ainda assim, não foi exatamente igual ao que aconteceu esta terça-feira.
Numa publicação longa na rede social Twitter, o historiador Nigel Fletcher, do King’s College, explica que as circunstâncias da indigitação de Truss não são exatamente iguais às da de Salisbury. A rainha Vitória pediu-lhe em Balmoral que formasse um Executivo, mas a oficialização do cargo de primeiro-ministro aconteceu já em Londres. Ficámos também a saber que Salisbury “beijou mãos” quando foi empossado, pelo relato que “The Times” fez na altura e cujas páginas Fletcher publica na sua aula (ver abaixo).
Se em Balmoral nunca outro chefe de Governo tinha sido empossado com todos os trâmites cumpridos, pelo menos o castelo escocês está dentro dos limites do Reino Unido. Em 1908, liberal Herbert Henry Asquith recebeu em França o convite para formar Governo, já que o então rei Eduardo VII estava a passar férias do outro lado da Mancha.
Antes disso, também com a rainha Vitória, Benjamin Disraeli teve de viajar até à Ilha de Wight, em 1868, para “beijar as mãos” e tornar-se primeiro-ministro. A expressão kissed hands está também no comunicado desta terça-feira, mas não significa que Truss tenha mesmo osculado as mãos de Isabel II. Trata-se de uma metáfora para a aceitação do cargo de chefe de Governo perante o monarca em exercício.
Houve tempos em que não foi metáfora e outros, muito mais recentes, em que deixou de ser metáfora por força da gravidade, nervosismo ou apenas inépcia do indigitado. Tony Blair quase beijava as mãos da rainha, pois tropeçou no momento em que apenas ia apertá-las num “passou-bem”.
Na página online da biblioteca da Câmara dos Comuns ficam bem explícitos todos os passos necessários, formalidades, protocolos, datas e lugares aconselhados a quem está prestes a tornar-se primeiro-ministro. É um texto engraçado.
Diz assim, debaixo do subtítulo “A indigitação”: “Quando fica claro que um indivíduo pode formar Governo, é nomeado primeiro-ministro, para citar Harold Wilson em 1964, ‘logo na hora’. Não há beija-mão, embora essa expressão seja usada para descrever o processo. O ato acontecia, mas ficou em suspenso (Tony Blair, no entanto, lembra-se de tropeçar no tapete e “praticamente caiu nas mãos da rainha, não tanto beijando-as, mas envolvendo-as”). Em vez disso, um primeiro-ministro masculino curvar-se-á e apertará a mão do monarca, e uma primeira-ministra fará uma reverência. Nos últimos anos, este momento foi fotografado para os meios de comunicação social. Não há mais formalidades”.
A reunião de Truss com a rainha terminou antes das 13h e a oficialmente primeira-ministra regressou a Londres, onde falará ao país por volta das 16h.
Os dias difíceis já vêm anunciados nas páginas dos jornais
Não a esperam dias fáceis. Analistas que têm falado com o Expresso e com muitos outros jornais por todo o mundo referem os tempos mais conturbados pelo menos desde a tomada de posse de Margaret Thatcher (1979-90), a líder que Truss sonha tornar-se, mas de quem ainda está longe. A ‘Dama de Ferro’ soube analisar a época em que subiu ao poder e começou por subir impostos, tal era a gravidade da crise no país. Truss, mesmo contra algumas das vozes mais economicamente liberais dentro do seu partido, insiste em baixá-los, porque considera essa “folga” essencial para as empresas poderem investir e as pessoas gastarem mais na economia.
Os jornais britânicos dedicaram as suas capas desta terça-feira à nova primeira-ministra, como seria de esperar. Também eles focam em primeiro lugar as dificuldades que Truss terá de enfrentar, com a subida de preços de bens essenciais e energia no topo da lista de dores de cabeça dos britânicos.
“The Times”, que apoiou nesta corrida ao Partido Conservador o rival de Truss, Rishi Sunak, titula: “Straight to Business”, algo que pode ser traduzido de forma livre pela expressão “mãos na massa”. O jornal frisa que Truss assume o cargo "nas circunstâncias mais desafiadoras de qualquer dos seus antecessores em tempos de paz”, expressão questionável quando existe uma guerra a acontecer. Sucede que, comparando com guerras passadas, nas quais o Reino Unido esteve diretamente envolvido, a da Ucrânia tem consequências monumentais mas não envolve a morte de civis nem soldados britânicos em grande escala.
“The Daily Telegraph”, que se pôs ao lado de Truss na campanha recente, é referência do público mais conservador. Informa esta terça-feira que que congelamento de preços da energia proposto pela nova governante pode estar em vigor até 2024.
O diário “The Guardian”, mais conotado com a oposição aos conservadores, opta pelo mesmo caminho que “The Times”. Centra-se no esforço que Truss terá de empreender para unir o partido em redor das medidas de auxílio às famílias, que terá de fazer aprovar já nos primeiros dias da sua gestão. É algo que a própria já prometeu fazer.
“The Guardian” descreve os conservadores como um partido “extremamente dividido”, que está “a ficar para trás nas sondagens”, com “deputados amotinados já prontos para arquitetar a queda de Truss”. As sondagens mais recentes dão vantagem de cerca de dez pontos percentuais ao Partido Trabalhista, maior força da oposição, chefiado por Keir Starmer.
É contra este tumultuoso cenário que Truss terá de escolher os seus principais ministros. Os nomes que escolher serão o maior farol para entender a direção política que pensa tomar, mas também a sua capacidade de aglutinar e sarar feridas após uma disputa que venceu pela margem de 57%-43%, a mais curta na história interna do partido.
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