Internacional

Shinzo Abe morto em atentado a tiro: o líder japonês que resistiu a escândalos e bateu recordes de longevidade

Shinzo Abe em campanha pelo Partido Liberal Democrata
Shinzo Abe em campanha pelo Partido Liberal Democrata
YOSHIKAZU TSUNO/AFP/Getty Images

Duas vezes chefe do Governo, o liberal apostou em mudar a Constituição para mitigar o pacifismo adotado desde a II Guerra Mundial, mas em vão. Conseguiu deixar marca nas reformas económicas. Morreu vítima de um atentado enquanto fazia um comício para as eleições do Senado, agendadas para domingo

O ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, baleado esta sexta-feira na cidade de Nara, morreu em resultado dos ferimentos sofridos, confirmou a televisão estatal NHK, citando fonte oficial.

Desaparece assim um governante que bateu recordes de longevidade na chefia do país e resistiu a numerosos escândalos políticos e financeiros que envolveram também a sua família. Aos 67 anos, deixara há quase dois anos o cargo de primeiro-ministro, por razões de saúde.

O nacionalista pragmático tinha 52 anos quando se tornou chefe de Governo pela primeira vez, em 2006. Era então o mais jovem primeiro-ministro da história do seu país no pós-guerra. Deixou marca durante o segundo mandato (2012-20) com uma política ousada de recuperação económica e intensa atividade diplomática.

Shinzo Abe chegou a pedir desculpas ao Parlamento, em 2020, por um escândalo relacionado com o financiamento de receções organizadas para os seus partidários. A Justiça decidiu, porém, não acusar formalmente o governante.

Antes, a reputação de Shinzo Abe e da sua mulher, Akie, bem como a do então ministro das Finanças, ficaram manchadas por um negócio imobiliário. Os seus nomes foram apagados de documentos relativos à venda de um terreno do Estado a uma instituição educativa privada ligada ao casal, a um preço quase dez vezes inferior ao do mercado.

O pai da “Abenomics”

No verão de 2020, quando se tornara impopular devido à gestão da pandemia, considerada desastrosa pela opinião pública, Abe admitiu que sofria de uma doença inflamatória intestinal crónica, colite ulcerosa, e demitiu-se. Esta doença tinha já sido uma das razões para o fim abrupto do primeiro mandato, em 2007.

Shinzo Abe tornou-se conhecido a nível internacional sobretudo pela política económica, apelidada de Abenomics, lançada no final de 2012. Combinava flexibilização monetária, estímulos fiscais maciços e reformas estruturais.

Vista aérea da cena do atentado contra o antigo primeiro-ministro japonês
JIJI PRESS/AFP/Getty Images

Conseguiu alguns êxitos, como um aumento significativo da taxa de participação das mulheres e dos cidadãos idosos na força de trabalho, bem como maior recurso à imigração face à escassez de mão-de-obra. No entanto, sem reformas estruturais suficientes, a Abenomics só produziu êxitos parciais.

A ambição última de Abe era rever a Constituição pacifista japonesa de 1947, escrita pelos ocupantes norte-americanos e não mais mais alterada desde então. Queria recuperar o direito do país a ter forças armadas propriamente ditas.

Tendo construído parte da sua reputação com base na posição dura sobre a Coreia do Norte, Abe também assumiu um Japão descomplexado com o passado: em particular, recusou-se a carregar o fardo do arrependimento pelas atrocidades cometidas pelo exército japonês na China e na península coreana na primeira metade do século XX.

O polémico santuário Yasukuni

No entanto, absteve-se de visitar como primeiro-ministro o santuário Yasukuni de Tóquio, um foco do nacionalismo japonês. Em 2013, uma visita ao templo a título particular indignou Pequim, Seul e Washington.

As relações entre Tóquio e Seul deterioraram-se no contexto das suas disputas históricas, enquanto que as relações com Pequim, que pioraram, continuam tensas.

Com os Estados Unidos da América, um aliado histórico do Japão, Abe foi-se adaptando às circunstâncias. Foi capaz de estabelecer laços estreitos com o ex-Presidente Donald Trump, com quem partilhava a paixão pelo golfe.

A vsita de Shinzo Abe ao santuário Yasukuni de Tóquio, em 2013, enfureceu as capitais vizinhas
TORU YAMANAKA/AFP/Getty Images

Também tentou não hostilizar o Presidente russo, Vladimir Putin. Ainda assim, falhou o esforço por resolver a disputa sobre as Ilhas Kuril do Sul, anexadas pela União Soviética no final da II Guerra Mundial e que não mais regressaram à soberania do Japão.

O ex-governante procurou reforçar a presença do Japão na cena internacional, por exemplo, através da mediação entre o Irão e os Estados Unidos, promovendo o multilateralismo e aumentando os acordos de comércio livre.

Oposição débil

Para permanecer no poder, Abe beneficiou largamente da ausência de um rival sério dentro do seu PLD. Ajudou-o ainda a fraqueza da oposição, que ainda não recuperou da desastrosa passagem no poder entre 2009 e 2012. Desde a II Guerra Mundial, o PLD só esteve longe do Governo em dois períodos de dois anos cada.

Algumas leis aprovadas por Abe, nomeadamente sobre o reforço da proteção dos segredos de Estado, a expansão das missões das Forças de Autodefesa Japonesas e o reforço da luta contra o terrorismo, causaram controvérsia no Japão. Levaram mesmo a grandes manifestações, raras no país.

Por outro lado, manteve-se muito tempo focado na esperança de organizar os Jogos Olímpicos de Tóquio no Verão de 2020, que seriam o ponto alto do seu último mandato, mas que a maioria da opinião pública criticava. A competição desportiva acabou por realizar-se um ano mais tarde, à porta fechada, por causa da covid-19. Abe já não era primeiro-ministro, tendo passado o cargo a Yoshihide Suga, que em outubro deu lugar a Fumio Kishida.

Curiosamente, o primeiro-ministro que mais tempo tinha ficado no cargo antes de Shinzo Abe foi seu tio-avô, Eisaku Sato. Também do PLD, governou entre 1964 e 1972.

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