Há reminiscências desse regime em cada anúncio feito pelos líderes que tomaram o domínio de Cabul. Apesar das promessas de renovação inicialmente feitas pelos talibãs, a retórica foi desmontada pelos próprios, logo durante as primeiras semanas de governação. Antonio Giustozzi, especialista em História Contemporânea, que serviu na Missão de Assistência das Nações Unidas ao Afeganistão entre 2003 e 2004, garante ao Expresso que, apesar da imagem de força, há neste momento divisões internas entre as diferentes fações no grupo dos talibãs, cada uma delas a querer ir numa direção.
"À medida que vão tendo de definir políticas, vão percebendo o quão divididos estão. Os talibãs estão quase prontos a desistir da esperança de restabelecer qualquer ponte diplomática com o Ocidente. Pela forma como as coisas estão a correr, a expectativa de o Governo receber qualquer ajuda por parte do Ocidente quase morreu." O também investigador na área de Relações Internacionais do King's College de Londres descreve que, desde que os olhos ocidentais se desviaram de Cabul, o debate interno recentrou-se nos poderes regionais, que não reconhecem os talibãs "apenas porque sim": todos eles têm exigências a fazer.
A diplomacia não é, contudo, uma arte dominada por governantes que não têm qualquer experiência de Executivo, explica Antonio Giustozzi. "O talibã médio que desenha políticas pensa a política e as relações internacionais como a venda de um tapete. Pensam que é só atribuir um preço e recebem o tapete, mas, nas relações internacionais, isso é muito mais complicado."
Reconhecimento internacional estará longe, mas os talibãs também não fazem questão
A China, e outros países em que os direitos humanos não são condição 'sine qua non', podem até manifestar abertura para o reconhecimento deste Governo, mas não há um grande interesse por parte dos talibãs, porque não há uma partilha de fronteira que facilite transações com estes Estados. Com o Ocidente, no entanto, as pontes diplomáticas estão queimadas, refere o investigador.
"Os talibãs já expressaram, em contacto com os norte-americanos e com os europeus, que esperam obter garantias e só depois dar algo em troca, como algumas promessas vagas de alívio às medidas aplicadas às raparigas no país. Para obter reconhecimento internacional, isso não é suficiente. Há alguns talibãs que têm mais experiência e que compreendem melhor como a diplomacia funciona, mas, em geral, não estão dispostos a fazer nada para obter algo do outro lado..."
O país mais infeliz do mundo
Apesar disso, tendo em conta os dados publicados pela Organização das Nações Unidas, a comunidade internacional tem todos os motivos para não desviar o olhar. No Afeganistão, 24 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária para sobreviver. Mais de metade da população de 38 milhões sofre de fome aguda, com quase nove milhões de afegãos em risco de fome. “Toda a atenção prestada à Ucrânia é muito importante, é claro, porque [o que lá se passa] tem impacto em todo o mundo, mas não é dada sequer uma fração dessa atenção ao Tigray [a região da Etiópia de que é originário, onde há um conflito armado devastador em curso], ao Iémen, ao Afeganistão, à Síria e a todos os outros”, lamentou Tedros Adhanom Ghebreyesus durante uma conferência de imprensa, em que também disse que o mundo “não presta o mesmo grau de atenção às vidas dos negros e às dos brancos”.
Nos últimos meses, funcionários do Governo perderam os seus empregos e o Afeganistão subiu ainda mais no ranking da pobreza, em grande parte devido aos pacotes de sanções internacionais. No território afegão, mães vendem os filhos e há ainda transações de órgãos humanos a servir de tampão à fome. António Guterres pôs o dedo na ferida no final de março passado: os afegãos precisam de 4,4 mil milhões de dólares para a população ter o suficiente para comer.
É um número ambicioso, especialmente porque grande parte dos holofotes está concentrada na guerra na Ucrânia, e alguns países ricos congelaram quase nove mil milhões de dólares em ativos afegãos no estrangeiro. O investigador na área de Relações Internacionais no King's College revela como é desesperante a situação financeira do país: "A economia colapsou por muitas razões. Uma delas é o bloqueio das reservas nos bancos, porque os exportadores precisam da conta bancária para receber o capital estrangeiro. E quando se importa algo tem de se pagar. Hoje em dia é muito difícil fazer envios de dinheiro."
É um grande golpe para muitos negócios. "Quem está em negócios obscuros não quer saber porque já não utilizava os bancos, mas os negócios legítimos ressentem-se", sublinha Antonio Giustozzi.
A resistência não se desmobiliza
Uma organização insurgente continua a manifestar-se a norte do país, com disparos e explosões, que são respondidos com violência por parte dos talibãs. Como o sistema não está organizado nem devidamente centralizado, os talibãs tiveram de deslocar algumas forças para norte, para "lidar com o assunto".
"Há um grande nível de repressão. E, quanto à violência arbitrária, nos primeiros cinco meses de 2022 foram registadas milhares de mortes. Quando se mata arbitrariamente, as vítimas nem sequer têm de ser 'culpadas' daquilo de que são acusadas. Isto continuou nos últimos dois meses." Sem democracia, o país sufoca. A intolerância em relação à liberdade de expressão condiciona a imprensa, que agora, mais do que nunca, tem de estar alinhada com o regime, salienta o investigador de História Contemporânea e Relações Internacionais.
Os talibãs estão a ensinar os "limites" aos jornalistas: "Não devem criticar o Governo, como não se faz no Catar, na Arábia Saudita, no Kuwait ou em Omã. Quem não está alinhado com as regras é detido por alguns dias ou mais, mas há também jornalistas a serem espancados."
O sistema partidário caiu e todas as atividades políticas, a acontecerem, são clandestinas. "Antes de os ativistas fazerem manifestações, devem pedi-lo ao regime. Claro que os talibãs dizem: 'não, não está autorizado.' Penso que as coisas piorarão, porque a resistência mantém-se."
Uma sucessão de promessas não cumpridas
Nos últimos meses, os líderes no poder, em especial o Ministério de Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, anunciaram muitas novas restrições. Em dezembro, esta pasta do Executivo, que substituiu o Ministério afegão de Assuntos da Mulher, determinou que as mulheres não poderiam deslocar-se por mais de 72 quilómetros sem estar acompanhada de um parente próximo do sexo masculino. Esta limitação também inclui agora viagens ao estrangeiro e várias mulheres que viajavam sozinhas foram impedidas de embarcar. Proibições semelhantes também foram introduzidas em vários centros de saúde de todo o país.
"Há muitas mulheres a viver no interior, no campo, e estas mulheres não vão a lado nenhum. Mas há outras para quem isto faz muita diferença, como para as professoras, enfermeiras e outras mulheres que trabalham na cidade. Não há muitas mulheres para lá destes setores, mas há algumas... Para as jornalistas também é difícil trabalhar nestas condições. Não há muitas, mas ainda restam algumas." Antonio Giustozzi acrescenta que, mais grave do que isto, em situações urgentes, o hospital pode estar a dias de distância. "É um problema para as mulheres, porque muitos homens trabalham longe de casa", analisa.
Está a aumentar o ressentimento. Uma série de outros decretos emitidos nas semanas mais recentes, direcionados às mulheres, impõem o uso de hijab para as mulheres nos locais de trabalho, a segregação de género em parques públicos e a proibição da frequência de escolas secundárias por parte das raparigas, o que desencadeou fortes protestos de mulheres afegãs. Esta é mais uma das promessas desrespeitadas pelos talibãs, que, quando assumiram o poder, afirmaram que todos os afegãos tinham direito à educação. O Afeganistão permanece assim: um país mergulhado na iliteracia, no isolamento, na desigualdade, e, por isso, na pobreza.