Amnistia Internacional acusa Israel de “apartheid”, pela primeira vez: Estado hebraico trata palestinianos como “um grupo racial não-judeu inferior”
Com a bandeira palestiniana na mão, uma criança observa a demolição da sua escola, na aldeia de Yatta, a sul de Hebron (Cisjordânia) FOTO: Hazem Bader/AFP/Getty Images
Em causa está a forma como as autoridades israelitas tratam o povo palestiniano não só nos territórios ocupados como também dentro de Israel. “A Amnistia Internacional apela ao Tribunal Penal Internacional que considere o crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios ocupados palestinianos”, diz a organização de defesa dos direitos humanos, num relatório divulgado esta terça-feira. Os factos relatados no documento não são novos — inéditos são os termos usados pela Amnistia para qualificar a atuação de Israel
A palavra é forte, mas a Amnistia Internacional (AI) é inequívoca ao usá-la para qualificar a forma como o Estado de Israel trata o povo palestiniano. Ao longo de um detalhado relatório de 280 páginas, divulgado esta terça-feira, a maior organização de defesa dos direitos humanos do mundo acusa Israel de apartheid. A embaixada israelita em Portugal repudia o conteúdo do documento.
“A totalidade das leis, políticas e práticas descritas neste relatório demonstra que Israel estabeleceu e manteve um regime institucionalizado de opressão e dominação da população palestiniana em benefício dos judeus israelitas — um sistema de apartheid — onde quer que tenha exercido controlo sobre a vida dos palestinianos desde 1948”, defende a AI. A entidade acusa o Estado hebraico de considerar e tratar os palestinianos como “um grupo racial não-judeu inferior”, que é “sistematicamente privado dos seus direitos”.
Our official new report looks at the decades-long suffering of Palestinians under Israel’s rule. We've concluded that Israel’s treatment of Palestinians throughout Israel & the Occupied Palestinian Territories amounts to apartheid.
Para a Amnistia, está em causa a forma como “quase todas as autoridades militares e a administração civil de Israel” estão envolvidas “na aplicação do sistema de apartheid contra os palestinianos”, nas suas múltiplas realidades:
Os palestinianos de Israel: 1,9 milhões de pessoas (21% da população total)
Os palestinianos da Cisjordânia: 3 milhões (incluindo 870 mil refugiados)
Os palestinianos da Faixa de Gaza: 2 milhões (incluindo 1,4 milhões de refugiados)
Os palestinianos refugiados: 5,7 milhões (no total)
“Descobrimos que as políticas cruéis de segregação, expropriação e exclusão de Israel em todos os territórios sob o seu controlo equivalem claramente a apartheid. A comunidade internacional tem a obrigação de agir”, apela Agnès Callamard, secretária-geral da AI.
“As autoridades israelitas devem ser responsabilizadas pela prática do crime de apartheid contra os palestinianos”, defende a organização. “A AI pede ao Tribunal Penal Internacional [TPI] que considere o crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios ocupados palestinianos e pede a todos os Estados que exerçam jurisdição universal para levar os autores de crimes de apartheid à justiça.”
Um troço do “muro” que separa Israel da Cisjordânia, na zona de Jerusalém Oriental FOTO: Thomas Coex/AFP/Getty Images
O Expresso analisou o relatório — intitulado “O Apartheid de Israel contra os Palestinianos: Sistema Cruel de Dominação e Crime contra a Humanidade” (PDF disponível aqui) —, apoiado no trabalho de dezenas de organizações israelitas, palestinianas e internacionais, e destaca cinco manifestações de segregação e opressão.
1. Cidadãos de segunda
Em face do edifício legal israelita, os palestinianos têm múltiplos estatutos. Os que vivem em Israel são cidadãos com direito a passaporte e a votar nas eleições. Em 2018, contudo, a Lei da Nacionalidade veio destruir qualquer pretensão de igualdade entre árabes e judeus, ao consagrar Israel como “Estado-nação do povo judeu” e o direito à autodeterminação como exclusivo “do povo judeu”. Ao mesmo tempo, deixou de considerar a língua árabe oficial, relegando-a para um “estatuto especial”. Para a AI, esta lei cristalizou “a essência do sistema de opressão e de dominação sobre os palestinianos”.
“Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos… [mas sim] o Estado-nação do povo judeu e somente deles”
Benjamin Netanyahu, ex-primeiro-ministro israelita, em março de 2019
Relativamente aos palestinianos que vivem em Jerusalém Oriental — área que Israel ocupou na guerra de 1967 e anexou por uma lei de 1980 —, não têm cidadania israelita. Beneficiam de um frágil estatuto de residência permanente que é revogado não raras vezes, deixando milhares de palestinianos num limbo legal. Já os palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza aspiram, no máximo, a um cartão de identificação emitido pelas autoridades militares israelitas.
Um colonato judeu próximo da cidade palestiniana de Ramallah, na Cisjordânia FOTO: Ahmad Gharabli/AFP/Getty Images
Este sistema de fragmentação e segregação com base em diferentes regimes jurídicos “destina-se a controlar a população palestiniana e visa preservar uma maioria de judeus israelitas em áreas-chave em Israel e nos territórios palestinianos ocupados”, escreve a AI.
Restam os refugiados palestinianos, que exigem o direito de regresso às terras onde viviam antes da criação do Estado de Israel (1948), e que o veem negado por Israel. Vivem há décadas em campos na Cisjordânia, Faixa de Gaza e países vizinhos (Jordânia, Líbano e Síria).
2. Apropriação de terras
É um dos principais pilares do sistema de apartheid que a AI denuncia, tão antigo quanto o próprio Estado israelita. Com o objetivo de libertar cada vez mais terras para judeus, Israel adota legislação e recorre a subterfúgios administrativos para negar autorizações de construção a palestinianos.
Isso acontece, em especial, na região do Negev (sul de Israel), habitada sobretudo por populações beduínas. Mas também em Jerusalém Oriental, onde 38% das terras palestinianas foram expropriadas entre 1967 e 2017. E ainda nas áreas C da Cisjordânia (zonas sob total controlo israelita, que correspondem a 60% do território), onde os colonatos judeus não param de se expandir. São pelo menos 272 e ali vivem cerca de 450 mil judeus.
Obrigados a obter licenças de construção que depois lhes são negadas, os palestinianos veem-se forçados a recorrer à construção ilegal, que, mais cedo ou mais tarde, será destruída pelos bulldozers municipais. “Desde 1948, Israel demoliu centenas de milhares de casas e outras propriedades palestinianas em todas as áreas sob a sua jurisdição e controlo efetivo”, acusa a AI. “Inversamente, as autoridades israelitas permitem livremente emendas aos planos de desenvolvimento onde estão a instalar cidades judaicas em Israel ou colonatos israelitas nos territórios ocupados palestinianos.”
Um militar israelita de vigia durante a demolição de uma casa palestiniana, em Hebron, Cisjordânia FOTO: Hisham K. K. Abu Shaqra/Anadolu Agency/Getty Images
Com os bulldozers (que destroem casas árabes) e as gruas (que constroem colonatos judeus) transformados em armas da ocupação israelita, as populações palestinianas vivem cada vez mais encurraladas em guetos. Diz o relatório: “Trinta e cinco aldeias beduínas, onde vivem 68 mil pessoas, são ‘não reconhecidas por Israel, o que significa que são privadas do fornecimento de eletricidade e água, e alvo de demolições repetidas. Como as aldeias não têm estatuto oficial, os seus residentes também enfrentam restrições ao nível da participação política e são excluídos dos sistemas de saúde e de educação. Estas condições coagiram muitos a deixar as suas casas e aldeias, naquilo que configura uma transferência forçada.”
3. Restrições de movimentos
Na Cisjordânia, uma rede de postos de controlo militares (checkpoints), bloqueios de estradas e cercas físicas condiciona — e controla — os movimentos quotidianos das populações palestinianas. “As severas restrições de movimentos têm um efeito particularmente prejudicial no sector agrícola” que, em tempos, chegou a empregar um quarto da mão de obra do território e a garantir um terço das suas exportações, alerta a AI.
“No seguimento da ocupação, as autoridades israelitas privaram os palestinianos e a sua economia de 63% das terras mais férteis e melhores para pastagem localizadas em áreas C, através da construção de colonatos e da cerca/muro. E impuseram restrições severas ao movimento dos palestinianos e à sua capacidade de aceder às suas terras.”
A cerca/muro referida é uma vedação em construção de mais de 700 km — com troços em betão e outros em arame — que isola mais de 10% da Cisjordânia e afeta 219 localidades. Algumas comunidades ficam ensanduichadas dentro de “zonas militares”, obrigando quem ali vive a solicitar autorizações especiais para entrar e sair das localidades, ou mesmo para ir de casa para os terrenos agrícolas.
Nos arredores de Salfit, na Cisjordânia, um militar israelita abre um portão na vedação para que um grupo de palestinianos vá trabalhar nas oliveiras FOTO: Nasser Ishtayeh/Getty Images
Na Faixa de Gaza, a realidade é outra. Para os cerca de dois milhões de habitantes, a única via para entrar e sair do território sem ter de pedir autorização a israelitas ou egípcios é por túneis subterrâneos. “É quase impossível para os habitantes de Gaza viajar para o estrangeiro ou para outros territórios palestinianos ocupados”, diz a Amnistia. “São efetivamente segregados do resto do mundo.”
Neste retângulo de território de 40 km por 10 km, ganhar a vida é um exercício de criatividade. Mais de 35% das terras agrícolas e 85% das zonas de pesca estão inacessíveis aos palestinianos, por força da existência de uma “zona tampão” e de uma área marítima de acesso restrito.
“Desde a descoberta de petróleo e gás na costa de Gaza, Israel mudou repetidas vezes a demarcação da costa marítima de Gaza, por vezes reduzindo-a para apenas três milhas náuticas. A falta de acesso a água suficiente para pesca afeta cerca de 65 mil habitantes de Gaza e empobreceu quase 90% dos pescadores. Além disso, a marinha israelita usa força letal contra os pescadores de Gaza que trabalham na costa, e afunda e apreende os seus barcos.”
4. Detenções administrativas
Ocorrem tanto em Israel como nos territórios palestinianos. “Desde a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, as autoridades israelitas têm feito uso generalizado de detenções administrativas para prender milhares de palestinianos, incluindo crianças sem acusação ou julgamento sob ordens de detenção renováveis.”
Este é um método que visa, por exemplo, silenciar opositores da ocupação na Cisjordânia. Neste território, Israel aplica aos palestinianos o sistema judicial militar e aos colonos judeus, a lei civil. As detenções sem acusação ou julgamento podem durar meses ou anos.
Um jovem palestiniano é libertado após ter sido detido pelos militares israelitas na sequência de desacatos com colonos judeus, na aldeia de Burin, Cisjordânia FOTO: Jaafar Ashtiyeh/AFP/Getty images
“Embora a detenção administrativa possa ser legal em certas circunstâncias, o seu uso sistemático por Israel contra palestinianos indica que é usada para perseguir palestinianos, e não como medida de segurança extraordinária e seletiva. Consequentemente, a AI considerou que muitos detidos administrativos são prisioneiros de consciência detidos como punição pelos seus pontos de vista de contestação às políticas da ocupação”.
5. Tortura e assassínios
“Durante décadas, a Agência de Segurança de Israel, os Serviços Prisionais de Israel e as forças militares israelitas torturaram ou maltrataram detidos palestinianos, incluindo crianças, durante a prisão, transferência e interrogatório”, denuncia a Amnistia.
O relatório particulariza os “métodos duros” usados pelos serviços secretos para obter informações e “confissões” e que passam, segundo relatos dos palestinianos, pelo uso de algemas e outros instrumentos dolorosos, imobilização em posições de stresse, privação de sono, ameaças, assédio sexual, períodos prolongados em confinamento solitário e abuso verbal.
“Tribunais israelitas admitiram provas obtidas com recurso à tortura de palestinianos, aceitando o argumento de ‘necessidade’”
Relatório da Amnistia Internacional
Na Faixa de Gaza, os protestos populares inseridos na iniciativa “Grande Marcha do Regresso”, que visaram a fronteira com Israel em 2018 e 2019, ilustram esta denúncia. Semanalmente, milhares de pessoas exigiam o direito de retorno dos refugiados e o fim do bloqueio aplicado por Israel. Faziam-no junto à fronteira, diante de forte dispositivo militar que, não raras vezes, disparava. Até ao final de 2019, as forças israelitas tinham matado 214 civis em Gaza, incluindo 46 crianças.
“O assassínio ilegal de manifestantes palestinianos é talvez a ilustração mais clara de como as autoridades israelitas usam atos proibidos para manter o status quo”, acusa a AI. “À luz dos sistemáticos assassínios ilegais de palestinianos documentados no relatório, a AI também pede ao Conselho de Segurança da ONU que imponha um embargo de armas abrangente a Israel”, defende a organização. “O Conselho de Segurança também deve impor sanções específicas, como congelamento de bens, contra funcionários israelitas mais implicados no crime de apartheid.”
Palestinianos protestam contra a anexação do Vale do Jordão, a zona fértil em termos agrícolas da Cisjordânia, na aldeia de Tubas FOTO: Jaafar Ashtiyeh/AFP/Getty Images
“A AI examinou cada uma das justificações de segurança que Israel cita como base para a forma como trata os palestinianos. O relatório mostra que, embora algumas das políticas de Israel possam ter sido projetadas para assegurar objetivos legítimos de segurança, foram aplicadas de maneira grosseiramente desproporcional e discriminatória, que não cumpre o direito internacional”, conclui a organização. “Outras políticas não têm absolutamente nenhuma base razoável ao nível da segurança e são claramente moldadas pela intenção de oprimir e dominar.”
Reação de Israel
Num comunicado enviado à imprensa após a divulgação do relatório, o embaixador de Israel em Portugal diz que o relatório da Amnistia é “falso, tendencioso e antissemita”. “É lamentável que enquanto Israel está ocupado a promover a paz com os seus vizinhos, organizações internacionais na Europa estejam ocupadas a promover puro ódio e mentiras”, lastima Dor Shapira. “O Estado de Israel é uma democracia forte e vibrante, que garante a todos os seus cidadãos direitos iguais, independentemente da religião ou raça.”
O comunicado diz que “o Estado de Israel rejeita absolutamente todas as falsas alegações que aparecem no relatório da Amnistia”, o qual “consolida e recicla mentiras, inconsistências e alegações infundadas provenientes de conhecidas organizações de ódio anti-israelitas, todas com o objetivo de revender ideias antigas em novas embalagens”.