Austrália, Japão, EUA e Índia reúnem-se “sem objetivos militares”, por um Indo-Pacífico “aberto e livre”. A China vê em tudo isto uma ameaça
Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália durante a primeira reunião do Quad - um grupo de aliados do Indo-Pacífico para fazer frente ao domínio chinês na região
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A agenda internacional de Joe Biden está focada na região do Indo-Pacífico e o Presidente dos Estados Unidos nunca fez disso segredo. O objetivo é claro: unir os aliados da região num contrapeso ao poder chinês que só tende a expandir-se com a nova Rota da Seda e os seus muitos milhares de milhares de milhões de investimento. Será que esta nova união entre a Austrália, o Japão, a Índia e os Estados Unidos vai promover a cooperação ou dar início a uma nova
Depois de um encontro bilateral com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, o Presidente norte-americano, Joe Biden, liderou esta sexta-feira a primeira reunião presencial do chamado “Diálogo Quadrilateral para a Segurança” - o Quad -, um grupo que integra, além dos Estados Unidos, a Austrália a Índia e o Japão.
É um dia bastante significativo na nova aposta de Biden no Indo-Pacífico, e acontece cerca de uma semana depois do escândalo AUKUS, um pacto na área da Defesa e Tecnologia que une os Estados Unidos, a Austrália e o Reino Unido num esforço concertado para contrabalançar o peso da China na região.
Antes da reunião dos Quad, Joe Biden reuniu-se com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi
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Quem não ficou mesmo nada feliz com o anúncio deste acordo foi a França, que esperava vender submarinos militares à Austrália e viu-se atirada para fora do negócio quando, afinal, a Austrália decidiu assinar este tratado que vai muito além da compra de submarinos: armas de longa distância de grande precisão e partilha de conhecimento na área da inteligência artificial são apenas duas das áreas de investimento.
A irritação dos franceses rapidamente demonstrou a crua verdade dos novos tempos: nas capitais europeias poucas ou nenhumas vozes acompanharam a acrimónia dos franceses contra Londres, Washington e Canberra, os Estados Unidos adotaram uma política de oposição à China e os aliados europeus consideram sensato não se levantar ondas contra esse facto.
O que se decidiu na reunião?
"Estamos aqui juntos, na região do Indo-Pacífico, uma região que queremos ver sempre livre de coerção, onde os direitos soberanos de todas as nações são respeitados e onde as disputas são resolvidas pacificamente e de acordo com o direito internacional", disse o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, no início da reunião. O seu congénere japonês, Yoshihide Suga, usou quase as mesmas palavras: “Temos um compromisso inabalável com um Indo-Pacífico livre e aberto”. Tom diferente veio da China.
Os líderes da Índia, Japão, Austrália e Estados Unidos reunidos na primeira reunião presencial do chamado Quad, um grupo que reune aliados do Indo-Pacífico em vários acordos de cooperação económica, tecnológica, securitária
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O porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros, Zhao Lijian, criticou o Quad, sem nunca referir o nome do grupo, numa conferência de imprensa, citada pela Reuters: “Um grupo fechado e exclusivo cujo objetivo é opor-se a outros vai contra o ar dos tempos e contra as aspirações regionais de vários países. Não encontrará apoio e está fadado ao fracasso".
Como já vários artigos tinham conseguido antever, esta reunião não resultou em nenhum anúncio estrondoso de uma nova aliança militar, nem no comunicado está nenhuma ameaça, mais ou menos velada, aos interesses chineses. Já na terça-feira, no seu discurso na 76ª Assembleia Geral da ONU, Biden tinha dito e sublinhado - “deixem-me repetir” - que não procura uma nova Guerra Fria. À CNN, quando a reunião do Quad já decorria, um porta-voz da Casa Branca deixou bem claro que o encontro é “informal” e não contém “nem uma dimensão militar nem uma dimensão securitária”.
Questionado sobre alguns países da região que podem pensar que a iniciativa do Quad é "muito agressiva contra a China", o porta-voz negou essa perceção, dizendo que os líderes "estão unidos na forte crença de que o Quad se destina a complementar as instituições já existentes".
O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, anunciou o acordo AUKUS em videoconferência, dia 16, com o seu homólogo britânico, Boris Johnson, e o Presidente dos EUA, Joe Biden
Quanto a anúncios concretos os países do Quad concordaram em participar num "esforço de diversificação e implantação 5G", em criar um programa de bolsas de estudo que abrir as principais universidades norte-americanas a estudantes indianos, australianos e japoneses e também ficou escrito que o Quad vai debruçar-se sobre a possibilidade de criar uma “rede verde para o transporte de mercadorias”. Além disso, como Biden já tinha anunciado na ONU, os membros do Quad vão unir-se para produzir, na Índia, mil milhões de doses de vacina que devem chegar ao mercado ainda em 2022.
Alianças renovadas, disputas antigas
Um tema comum entre a reunião bilateral com Modi e a conferência do Quad é a cooperação em tecnologia, uma área que aparece cada vez mais interligada com a geopolítica. Os membros do grupo partilham uma certa urgência em aprender a lidar com o crescente poder económico, tecnológico e militar da China.
Austrália, Índia e Japão sabem que devem dividir a região com um gigante e que não podem tentar aniquilar um país tão essencial nas cadeias de abastecimento de todo o mundo - muito menos agora que a nova Rota da Seda (a iniciativa “Belt and Road”) vai fomentar o comércio da China com cerca de 70 países, numa “estrada” que passa pelo Vietname, Indonésia, Índia, Irão, Quénia, Itália, Alemanha, Países Baixos entre muitas outras paragens. Como se pode ver apenas por esta pequena lista, as preocupações políticas, sociais, de direitos humanos que cada país possa albergar contam pouco para esta relação económica que ainda nem nasceu mas da qual poucas nações escolheriam ficar completamente afastadas.
Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken
Independentemente das questões de pormenor que ficaram decididas na reunião, um objetivo os membros do Quad - e os do AUKUS - já conseguiram. “O Quad não vai simplesmente dissipar-se como espuma do mar e fazer as vontades à China.
O choque do anúncio do AUKUS a semana passada e, esta semana, a reunião do Quad, mostram claramente que o esforço para contrabalançar o peso da China entrou numa fase mais séria”, escreveu na revista “Foreign Policy” Raja Mohan, diretor do Instituto de Estudos do Sul da Ásia da Universidade Nacional de Singapura.
A Índia apoiou os Estados Unidos no AUKUS, e os Estados Unidos agradecem até porque Washington sabe que o peso da Índia, quase com a mesma população que a China e por isso igualmente um mercado gigantesco, com a vantagem de haver em Modi, e com os indianos em geral, uma proximidade política e histórica que não existe com a China, é essencial nesta balança de interesses.
Exercícios militares em Taiwan, uma ilha que se vê como independente da China mas que a China não reconhece, tal como várias organizações internacionais. Muitos países europeus e muito claramente os Estados Unidos são defensores públicos da independência de Taiwan
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É certo que os países do Quad não querem hostilizar a China, nem podem, muito menos agora que a nova Rota da Seda vai trazer um investimento chinês em tantos países subdesenvolvidos da região. É aqui que reside talvez a principal fraqueza de todo este esforço para marcar presença no Indo-Pacífico: os países envolvidos, e outros na região, podem ver-se obrigados a escolher entre os Estados Unidos e a China e essa escolha é imprevisível para o Ocidente, na melhor das hipóteses. Outro dos problemas é o medo de que o novo acordo de Defesa leve a uma corrida ao armamento numa região que não é de todo estável.
Guerra de paus e punhos
Uma das tendências da última década na geopolítica asiática foi a crescente pegada da China no Oceano Índico, onde a Índia é potência residente. A China quer garantir que todo o seu comércio de energia e tráfego marítimo passa com segurança mas Pequim também tem aspirações de projetar o seu poder na região e desenvolveu uma estratégia que passa pelo desenvolvimento de relações comerciais com estados que, em muitos casos, são vizinhos da Índia que, por seu lado, tenta fazer o mesmo, com uma série de medidas que visam o investimento nestes países e através do estreitamento de relações com países que se opõem ao domínio chinês, através de iniciativas como o Quad, precisamente.
Entre a China e a Índia há ainda outras quezílias bem mais concretas. Os dois países partilham a fronteira não-demarcada mais longa do mundo (cerca de 3490 km). Na sua parte ocidental, entre Ladakh do lado indiano e as regiões autónomas de Tibet e Xinjiang do lado chinês, deu-se o conflito de 2020, em que soldados dos dois lados se envolveram em conflito direto, homem a homem, a 4000 metros de altitude, uma luta com pedras, paus, punhos e arame farpado.
Um pastor na região de Ladakh, na fronteira entre a China e a Índia, a maior não-demarcada de todo o mundo
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É possível que, num futuro próximo, a região do Indo-Pacífico seja descrita como uma dinâmica de competição, não tanto de cooperação. Com os Estados Unidos a identificarem a China como seu principal competidor estratégico no plano de Estratégia de Defesa Nacional no ano passado, e o crescente envolvimento diplomático, económico e de defesa da Índia com o sudeste da Ásia e os litorais do Índico, juntamente com os esforços de potências como Austrália e Japão para contrariar o domínio da China, o região está certamente a caminho de um período mais conturbado.
De qualquer forma, como em tudo, há sempre quem veja oportunidades nestes períodos de grande tensão. Bilahari Kausikan, ex-representante de Singapura nas Nações Unidas, disse, citado pela “Foreign Policy” no mesmo texto de Raja Mohan que esta mudança nas correntes geopolíticas pode beneficiar os países da região já que os países da região vão ser “cortejados” pela China e pelos países do Quad e do AUKUS.