Internacional

Índia, um país castigado por fenómenos naturais, fome e massacres — a pandemia é apenas a última das tragédias

Cinclone Amphan atingiu a Índia em maio passado
Cinclone Amphan atingiu a Índia em maio passado
Rupak De Chowdhuri/REUTERS

A escritora Arundhati Roy chama "crime contra a humanidade" ao que está a acontecer na Índia. Mas a escala maciça das perdas de vidas está longe de ser inédita

Luís M. Faria

Jornalista

Com mais de 200 mil mortos de covid-19 e uma taxa oficial de infeções diárias que chega aos 350 mil (em ambos os casos, o número real é provavelmente superior, segundo a "Economist"), a situação na Índia é considerada uma catástrofe - não apenas nacional, mas global, dado o potencial para gerar o desenvolvimento de novas variantes que se espalhem pelo mundo e retardem o combate à doença.

Num país tão grande e ainda afligido por pobreza maciça, as desgraças têm historicamente uma tendência para ser a grande escala. O Indiatoday recorda que a peste fez 12 milhões de vítimas entre 1896 e 1939. Houve ainda uma epidemia de encefalite letárgica (1,5 milhões de mortos), bem como epidemias de cólera (1910-1911, 1961-1975), e varíola (1974), além, evidentemente, da gripe espanhola de 1918, que assolou o mundo inteiro e terá morto entre 10 e 20 milhões na Índia, segundo as estimativas. Isto para dar só alguns exemplos. Já em 1994 houve uma epidemia de peste em Surat, e em 2002 o SARS, antecessor do SARS-Cov2, não poupou a Índia.

Mas não são só as doenças que matam. Outros eventos naturais agravados pela ação (ou inação) humana são as inundações, os furacões, as avalanches, os desabamentos de terras e os terramotos, todos eles relativamente frequentes na Índia. Em maio de 2020, durante a pandemia, o super ciclone Amphan acrescentou à miséria das populações, desalojando quase cinco milhões de pessoas, matando um mínimo de 128 e causando prejuízos económicos estimados em mais de 13 mil milhões de dólares.

Fatores naturais e humanos

Segundo um relatório sobre gestão de desastres na Índia publicado pelo Ministério do Interior em 2011, este "é um dos dez piores países suscetíveis ao desastre em todo o mundo. A Índia é vulnerável devido a um conjunto de fatores, incluindo condições geo-climáticas adversas, características topográficas, degradação ambiental, crescimento populacional, urbanização, industrialização, práticas de desenvolvimento não científicas, etc. Estes fatores, ou por serem originais ou ao acelerarem a intensidade e frequência dos desastres, são responsáveis pelo pesado custo em vidas humanas e interrupção dos sistemas de suporte à vida no país".

O relatório prossegue: "A razão básica para a elevada vulnerabilidade do país a desastres naturais reside nas suas condições geográficas e geológicas únicas", bem como em "várias atividades induzidas pela ação humana, tais como a pressão demográfica crescente, as condições ambientais em deterioração, a desflorestação, as práticas agrícolas e pecuárias defeituosas, a urbanização sem planeamento, a construção de grandes barragens ou canais hídricos".

Celebração do 30.º aniversário do desastre de Bhopal
Rupak De Chowdhuri/Getty Images

Um exemplo de como a negligência humana tem custos potencialmente tão graves como qualquer evento natural é o desastre de Bhopal. Em 1984, uma fuga de gás numa fábrica de pesticidas expôs meio milhão de pessoas e fez quase quatro mil vitimas. Considerado o pior desastre industrial de sempre, foi também um caso flagrante de injustiça, pelas consequências brandas ou nulas que teve para os responsáveis, e pela ausência de indemnizações e tratamento adequado para muitas das vítimas.

Massacres coloniais e intercomunitários

Bhopal mostrou que não são só as catástrofes naturais, ou os desastres naturais agravados pela ação humana, que matam largos milhares de pessoas na Índia. Um tipo de ação puramente humana e recorrente na Índia são os massacres. Geralmente fruto de tensões intercomunitárias ou religiosas, aconteceram às dezenas no último século. Os maiores ocorreram em 1947, quando o Paquistão se cindiu da Índia recém-independente. O número total de mortos terá atingido os dois milhões.

Em 1984, oito mil pessoas perderam a vida em massacres de Sikhs na sequência do assassinato da primeira-ministra Indira Gandhi (ela foi morta por dois guarda-costas Sikhs, após o exército indiano ter atacado um edifício sagrado dessa religião).

Em 2002, conflitos entre hindus e muçulmanos terão feito até duas mil vítimas, a maioria delas muçulmanas, no estado de Gujarat. O atual primeiro-ministro, o nacionalista hindu Narendra Modi, era então ministro-chefe de Gujarat e foi acusado de ter incitado a violência. Uma investigação especial ilibou-o em 2012, mas a população muçulmana não aceitou o veredito, e estudiosos como Raheel Dhattiwalla continuam a descrever o que sucedeu como um pogrom anti-muçulmano.

Infelizmente, os massacres em massa são uma velha tradição no país. No período colonial, um dos mais famosos é o de Amritsar (Punjab), ordenado por um oficial inglês contra uma multidão pacífica que ia participar num festival religioso em 1919. Um mínimo de 379 mortes, e quase de certeza bastante mais, foram o saldo desse crime que envergonhou internacionalmente o Reino Unido e contribuiu para acelerar o movimento independentista indiano.

Fome e responsabilidades

Alguns anos antes de a independência finalmente se concretizar, outro tipo de praga que tem afligido a Índia ao longo dos séculos regressou dramaticamente. A responsabilidade pela famosa fome de Bengal, entre 1943 e 1944, ainda hoje é atribuída, pelo menos em parte, ao então primeiro-ministro britânico Winston Churchill, sendo um dos atos pelos quais ele é mais habitualmente criticado, juntamente com o desastre de Galipoli em 1915.

Defensores e apologistas de Churchill, como o historiador Andrew Roberts, negam que ele tenha tido culpas no caso de Bengal. A fome aconteceu na sequência de inundações que destruíram infraestruturas essenciais, e a maioria das mortes terá ocorrido como efeito da malária. Quanto aos abastecimentos alimentares, esses historiadores reconhecem que Churchill poderia ter feito mais, mas a sua preocupação principal era a guerra, e havia necessidades também noutros países asiáticos.

Seja como for, as mortes talvez tenham chegado aos três milhões (estimativas alternativas falam em cerca de um milhão). E se essa fome foi um dos eventos que marcaram os últimos anos do domínio britânico na Índia, vem a propósito lembrar que outra fome maciça marcou a fase inicial desse domínio. A Grande Fome de Bengal (1769-1770) matou entre dois e dez milhões de pessoas. Um século depois, outra fome, em Orissa, vitimou uns cinco milhões.

São tragédias a uma escala imensa, que resultam de elementos naturais como inundações e secas e também, pelo menos em parte, de falhas humanas - tal como a pandemia de covid-19 atualmente em curso.

Num texto publicado quarta-feira no jornal "The Guardian", a romancista Arundhati Roy fala em "anti-ciência, ódio e idiotice" a propósito de Modi e do seu partido. E descreve o que está a acontecer na Índia como "crime contra a humanidade".

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