O universo de Anastácia é do tamanho dos braços da avó. Os olhos mal se abrem e os pés espreitam irrequietos por entre os tons laranja do pano que a embrulha. Há um mar de cor à sua espera. É castanho como a terra e o pó que o vento levanta. Verde como a copa da árvore que lhe dá a sombra. É branco como as lonas que fazem o telhado das cabanas. E como as nuvens no céu. Mas também é negro como os corvos que voam por perto, cinzento como as poças infestadas de mosquitos. É azul como a capulana da avó e tão amarelo como a fita que ela traz à cabeça. E os chinelos gastos do miúdo que as olha. Anastácia, a menina que o colo e o calor embalam, é demasiado frágil para o mundo em guerra que a recebe no primeiro dia de vida.
A bebé não chora, ao contrário do que o tio acabara de jurar minutos antes, mas não faltam lágrimas à sua volta. Tantas que há quem já nem as tenha, e talvez por isso fique com a vista turva e incapaz de ver ao longe. Lurdes Assani, que fugiu da guerra, diz que é como ter “uma cacimba no olhar”. A falta de nitidez no esboço do futuro, demasiado carregado pelos tons sombrios do presente, é um problema sério em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Pode começar aqui mesmo, numa aldeia perto de Metuge, no chão onde se senta Lurdes, que tem três filhos e quatro netos. O mesmo onde está a avó de Anastácia. Em que centenas de milhares de deslocados esperam por nada depois de terem perdido tudo. É o chão de Montepuez, de Mueda, de Pemba, de Nangade, da Namuno e de Balama e de tantos outros distritos.
Este é um artigo do semanário Expresso. Clique AQUI para continuar a ler.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RMarques@expresso.impresa.pt