Dez números sobre o estado da liberdade religiosa no mundo
Um muçulmano xiita em oração, junto à Mesquita Al-Kadhimiya, em Bagdade, no Iraque
Ghaith Abdul-Ahad / Getty Images
Um em cada três países em todo o mundo regista situações de perseguição ou discriminação religiosa. A conclusão consta do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, apresentado esta terça-feira
O medo provocado pela pandemia de covid-19 e as muitas perguntas sem resposta colocadas pela infeção levaram à elaboração de teorias da conspiração e à identificação de bodes expiatórios, alguns deles de cariz religioso.
“As teorias da conspiração proliferaram online, alegando que os judeus causaram o surto. Na Índia foram lançadas alegações contra minorias muçulmanas, enquanto em vários países, como a China, o Níger, a Turquia e o Egito, a pandemia foi imputada aos cristãos”, alerta o Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo 2021, apresentado esta terça-feira pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre.
O documento analisou a prática religiosa em 196 países e concluiu que em 62 — um em cada três — subsistem demonstrações de perseguição ou discriminação religiosa. É apenas um de vários números preocupantes em torno das questões da fé nos quatro cantos do mundo.
51
por cento da população mundial vive em países onde existe perseguição religiosa
A percentagem diz respeito a cerca de 3900 milhões de pessoas, em apenas 26 países. A conclusão óbvia é que alguns dos países mais populosos do mundo são simultaneamente dos que mais violam a liberdade religiosa. São exemplos a China (1400 milhões), a Índia (1400), o Paquistão (225), a Nigéria (210) e o Bangladesh (165).
Destes 26 países, quase metade (12) situa-se em África. “Nos últimos dois anos, grupos jiadistas consolidaram a sua presença na África Subsariana e a região tornou-se um paraíso para mais de duas dezenas de grupos ativos e cada vez mais cooperantes”, diz o relatório, “incluindo filiados no Daesh e na Al-Qaeda”.
2
países enfrentam acusações de genocídio por motivos religiosos
São eles a China e Myanmar (antiga Birmânia). Em ambos os casos, os alvos da perseguição são minorias muçulmanas: na China os uigures e em Myanmar os rohingyas.
Na China, onde vivem cerca de 30 milhões de muçulmanos, o epicentro da repressão é a província de Xinjiang (noroeste), onde mais de um milhão de uigures (fieis de um ramo sunita do Islão) vivem em “campos de reeducação” em massa e são sujeitos a “programas de reeducação” coerciva.
Em Myanmar (de maioria budista), além dos rohingyas sistematicamente empurrados para o vizinho Bangladesh (estima-se que um milhão viva nos campos de refugiados), há registos de violência contra cristãos e hindus no estado de Kachin.
No caso da China, apenas Estados Unidos e Canadá qualificam as ações do regime de Pequim como genocídio. Ao contrário, prossegue uma investigação no Tribunal Internacional de Justiça por genocídio em Myanmar.
Homens uigures em oração, num cemitério em Turpan, na província chinesa de Xinjiang
Kevin Frayer / Getty Images
36
países enfrentam acusações de discriminação religiosa
Nesses estados, onde vivem 1240 milhões de pessoas,a liberdade religiosa não é plenamente desfrutada nem goza de garantia constitucional. Nove deles registaram melhorias em comparação com o último relatório, há dois anos: Cuba, Egito, Indonésia, Iraque, Marrocos, Palestina, Sudão, Síria, Usbequistão. Em 20 outros, a situação agravou-se.
Em países não tão castigados com práticas discriminatórias, houve conquistas e reveses recentes. Na África do Sul, em janeiro deste ano, terminou a proibição de as mulheres muçulmanas usarem o véu nas forças armadas. Já no Senegal, Malawi e Libéria, foi negado às muçulmanas o direito a usarem o véu nas escolas ou locais de trabalho.
43
países têm na origem das restrições à liberdade religiosa governos autoritários
Vários países asiáticos continuam a ser governados por ditaduras marxistas de partido único, com ideologias e mecanismos de controlo religioso. É o caso da Coreia do Norte, do Vietname e do Laos, por exemplo.
Mas nada se compara ao que acontece na China. Esta “destaca-se de forma duvidosa por ter afinado um dos motores de controlo religioso mais difundidos e eficazes do Estado em funcionamento em qualquer parte do mundo”, diz o relatório.
Em Urumqi, capital regional de Xinjiang, a polícia instalou mais de 18 mil câmaras de reconhecimento facial que vigiam cerca de 3500 complexos residenciais da cidade. Em todo o país, estima-se que haja 626 milhões de câmaras de vigilância equipadas com inteligência artificial, colocadas em áreas públicas e privadas — e muito atentas à dinâmica de determinados grupos religiosos e étnicos.
“O Partido Comunista Chinês tem um dos motores de controlo religioso mais difundidos e eficazes do Estado, atualmente em funcionamento em qualquer parte do mundo.”
Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo 2021
26
países são vulneráveis a ataques por parte de redes transnacionais jiadistas
Fazem-no com grandes níveis de crueldade, forçando rapazes a entrar nas suas fileiras como crianças-soldado, recorrendo à violação como arma de guerra e a decapitações em massa, tanto de cristãos como de muçulmanos que recusam juntar-se aos jiadistas.
“O Daesh e a Al-Qaeda, com patrocínio ideológico e material do Médio Oriente, associam-se e radicalizam ainda mais as milícias armadas locais para estabelecer ‘províncias do califado’ ao longo da linha do Equador, crescente violência jiadista que se estende do Mali a Moçambique na África Subsariana, às Comores no Oceano Índico e às Filipinas no Mar do Sul da China”, lê-se no documento. Moçambique é uma entrada recente neste clube sinistro.
7
países, no mínimo, todos asiáticos, são palco de ataques à liberdade religiosa com origem em movimentos nacionalistas étnico-religiosos
“Este tipo de nacionalismo propõe que a identidade individual deriva em parte e é elevada pela pertença a uma grande nação definida por uma confluência única de religião, etnia, língua e território.” Existe na Índia e no Nepal (de maioria hindu), no Sri Lanka, Myanmar e Tailândia (de maioria budista) e, de forma menos acentuada, no Butão.
“Estes movimentos oprimiram ainda mais as minorias religiosas, reduzindo-as ao estatuto de facto de cidadãos de segunda classe.”
Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo 2021
Outro caso nesta categoria é o Paquistão, de maioria muçulmana, “há muito tempo nas mãos de uma identidade religiosa-nacionalista armada”. Mesmo na China, o ataque aos uigures combina um forte elemento de nacionalismo étnico-han-chinês.
Neste grafíto, em Bombaím, a palavra “indiano” (na vertical), surge a partir de várias religiões existentes no país
INDRANIL MUKHERJEE / AFP / Getty Images
30
países foram palco de assassínios motivados por questões de fé, desde meados de 2018
Uns casos foram menos noticiados, como a perseguição violenta por parte de muçulmanos contra convertidos cristãos no Djibuti, na Libéria e no Uganda. Outros foram notícia em todo o mundo pela carnificina em que se transformaram.
Foi o que aconteceu em várias cidades do Sri Lanka, a 21 de abril de 2019, dia especial para os cristãos por ser Domingo de Páscoa: três igrejas e três hotéis de luxo foram alvo de ataques suicidas e explosões, que provocaram 269 mortos.
59
igrejas foram vandalizadas e danificadas no Chile, em 2019 e 2020
Dos templos atacados, em oito cidades chilenas, 53 eram igrejas católicas e seis evangélicas. Os ataques aconteceram durante os protestos antigovernamentais que eclodiram a 7 de outubro de 2019 (Estallido Social), que começaram por ser pacíficos, mas rapidamente degeneraram em violência.
“A violência [contra as igrejas] incluiu fogo posto, pilhagem, profanação do Santíssimo Sacramento, interrupção dos cultos religiosos e danos nas portas e portões das igrejas. Houve incidentes em que bancos de igreja e estátuas religiosas foram utilizados para construir barricadas e pedras foram atiradas através de vitrais.”
A 18 de outubro de 2020, em Santiago do Chile, no exterior da Igreja de Asunción, em chamas, gritou-se: “Deixem-na cair, deixem-na cair”
MARTIN BERNETTI / AFP / Getty Images
O relatório é omisso em relação às razões que podem ter estado na origem desta violência direcionada aos locais de culto, mas à época a Igreja chilena estava em polvorosa, atingida por um grande escândalo de encobrimento de abusos sexuais.
1000
jovens cristãs e hindus, com idades entre os 12 e os 25 anos, são raptadas todos os anos por homens muçulmanos no Paquistão
É um calculo, por baixo, do Movimento pela Solidariedade e Paz do Paquistão. As raparigas são sujeitas a conversões forçadas e obrigadas a casar-se. Muitas são vítimas de violação, prostituição forçada, tráfico de seres humanos e violência doméstica.
Nalguns casos, as famílias conseguem libertar as raparigas com recurso aos tribunais, mas, não raras vezes, a justiça decide a favor do raptor. Foi o caso de Maira Shahbaz, de 14 anos, que viu o seu casamento com um homem confirmado pelo Supremo Tribunal de Lahore, em agosto de 2020.
Em novembro seguinte, o primeiro-ministro Imran Khan ordenou uma investigação sobre a conversão forçada de mulheres e raparigas das comunidades religiosas minoritárias do país.
2
viagens ecuménicas do Papa Francisco lançaram pontes entre Cristianismo e Islamismo
A última deslocação está fresca na memória. Foi em março passado, ao Iraque, de onde o infame grupo terrorista que se autoproclamava “Estado Islâmico” declarou o seu “califado”. Foi a primeira visita de um Papa católico a um país muçulmano de maioria xiita.
Anteriormente, o Pontífice dera grande impulso ao diálogo inter-religioso, em fevereiro de 2019, com uma viagem inédita aos Emirados Árabes Unidos, onde presidiu à primeira missa de sempre na Península Arábica.
Um ponto alto desta deslocação foi um encontro com o Grande Imã Ahamad Al-Tayyib de Al-Azar, líder do mundo muçulmano sunita. Ambos assinaram uma declaração conjunta sobre “Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Vida em Comum”. Apelaram a que se deixe de “utilizar as religiões para incitar ao ódio, violência, extremismo e fanatismo cego” e que nos abstenhamos de “utilizar o nome de Deus para justificar atos de homicídio, exílio, terrorismo e opressão”.