Internacional

Ex-militar de Bashal al-Assad condenado por conivência com crimes contra a Humanidade em tribunal alemão. Nunca aconteceu antes

Uma baixa patente do exército sírio foi condenado na Alemanha por ser cúmplice com a tortura levada a cabo pelo regime do Presidente Bashar al-Assad
Uma baixa patente do exército sírio foi condenado na Alemanha por ser cúmplice com a tortura levada a cabo pelo regime do Presidente Bashar al-Assad
THOMAS FREY/Getty

“Esta decisão é histórica porque condena todo o sistema penal do regime sírio. Gharib é um homem, mas fazia parte de uma máquina organizada com ordens para prender civis pacíficos, fazê-los desaparecer, torturá-los, matá-los e esconder os seus corpos em valas comuns”, disse aos jornalistas no fim do veredicto Anwar al-Bunni, uma das testemunhas

Ex-militar de Bashal al-Assad condenado por conivência com crimes contra a Humanidade em tribunal alemão. Nunca aconteceu antes

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Um tribunal na cidade alemã de Koblenz decidiu esta quarta-feira condenar a quatro anos e seis meses de prisão o ex-militar de baixa patente no exército sírio Eyad al-Grarib, de 44 anos, por ter sido cúmplice de crimes contra a Humanidade durante a guerra da Síria, que faz 10 anos a 15 de março. Eyad al-Grarib saiu da Síria como milhões de outras pessoas, pediu estatuto de refugiado na Alemanha como mais de um milhão de outros sírios, mas deu ordem para a tortura de milhares de dissidentes presos durante os tumultos destes últimos anos na Síria. “O acusado é condenado a quatro anos e seis meses de prisão por ter viabilizado a perpetração de crimes contra a Humanidade, nomeadamente na forma de tortura e de privação da liberdade”, disse a juíza Anne Kerber no fim do julgamento, citada pelo “Guardian”.

“Esta decisão é histórica porque condena todo o sistema penal do regime sírio. Gharib é um homem, mas fazia parte de uma máquina organizada com ordens para prender civis pacíficos, fazê-los desaparecer, torturá-los, matá-los e esconder os seus corpos em valas comuns”, disse aos jornalistas no fim do veredito Anwar al-Bunni, uma das testemunhas de acusação, ele mesmo encarcerado numa prisão gerida por um outro militar que ainda está a ser julgado, Anwar Raslan. Anwar al-Bunni falou ao Expresso aquando do início do julgamento. A sua história, como ele mesmo diz, não é nada distinta da dos milhares de pessoas que foram presas durante os anos de protestos - a única diferença é que al-Bunni deu de caras com o seu torturador nas ruas de Berlim, em 2014, e pôs em marcha uma operação de recolha de testemunhas entre a comunidade síria na Alemanha.

“Eu vi-o mas não quis saber assim tanto dele em específico, é apenas um dos culpados; mas comecei a pensar que de certeza há imensos membros dos Serviços Secretos entre as pessoas que fugiram no regime e dei início aos contactos com várias ONG e comecei também a falar com refugiados e a recolher as suas histórias na prisão em que Anwar Raslan mandava”, disse ao Expresso. Não procura vingança deste homem, até porque outros, diz, sofreram mais do que ele. “Eu quero desmantelar um sistema - apesar de este homem ser mais do que uma simples peça, de ser um grande tubarão, não é a ele que é preciso neutralizar”.

Anwar Raslan, ex-brigadeiro do exército, deve conhecer a sentença em outubro. Também desertou mas alegadamente terá sido responsável por mais crimes - e muito mais graves. Tanto Raslan como al-Grarib receberam asilo na Alemanha mas em 2019 foram presos depois de um esforço internacional para a recolha de provas dos crimes na Síria terem revelado os seus nomes. A Procuradoria Federal da Alemanha acredita que os dois são “peças de uma máquina quase industrial de torturar pessoas”, e ambos, acreditam os procuradores, estiveram envolvidos na gestão da infame “secção 251” da prisão central de Damasco, a capital da Síria. Mas é sobre Raslan que recai a maioria das suspeitas.

Este caso teve a atenção do mundo logo desde o primeiro dia, já que os crimes pelos quais ambos foram levados a tribunal não aconteceram no país onde estão a ser julgados. Raslan, de 56 anos, começou a ser julgado a 23 de abril por crimes contra a Humanidade, ao abrigo de uma provisão da lei alemã, a “jurisdição internacional”, que permite que crimes contra a Humanidade cometidos noutros países possam ser julgados em solo alemão. Os procuradores acreditam que Raslan foi responsável pela tortura de mais de 4000 pessoas, que resultou na morte de 58 dessas e pela violação de pelo menos uma. Eyad al-Gharib, foi julgado por suspeita de ter enviado para a prisão de al-Khatib pelo menos 30 manifestantes contra o regime, depois de uma série de manifestações em outubro de 2011, na cidade de Duma, a norte da capital.

Raslan sempre foi uma das patentes mais próximas do regime de al-Assad. Mas um ano depois do início da Guerra na Síria, que começou em março de 2011 e que já matou quase 400 mil pessoas, decidiu desertar em 2012 para o lado de quem se opunha ao regime; fugiu como outros 5,6 milhões de sírios hoje espalhados pela Turquia, pela Jordânia, pelo Líbano e por vários países europeus, e pediu estatuto de refugiado na Alemanha e na entrevista para receber essa proteção falou do seu trabalho com o regime, não tendo dito até que ponto esteve envolvido na detenção e tortura de milhares de sírios.

Conversas com sobreviventes e acervo fotográfico são provas neste julgamento

Em fevereiro de 2019 foi preso em Berlim, tal como al-Gharib. Ambos fazem parte do milhão de sírios que a Alemanha aceitou receber entre 2014 e 2016 - decisão que muitos problemas políticos provocou não só a Angela Merkel, chanceler alemã, como a vários presidentes de câmaras de cidades alemãs que aceitaram integrar estas pessoas nas suas comunidades. Andreas Hollstein, mayor de Altena, foi esfaqueado no pescoço por causa da sua política de defesa dos requerentes de asilo e as ameaças de morte a outros políticos com os mesmos objetivos continuam a ser uma realidade na Alemanha. As pessoas que contaram as histórias de tortura - 16 das quais vão falar presencialmente neste julgamento e mais de 500 contaram, sob juramento, as suas histórias aos investigadores alemães -, também fazem parte desse contingente.

O caso contra al-Gharib foi construído à volta de centenas de horas de gravação de conversas com sobreviventes, informação de dissidentes com ligações ao regime e análises médicas e forenses ao enorme acervo de fotografias reunido por um militar mandatado pelo próprio regime para registar as torturas. O militar (conhecido apenas por “César”) fugiu e entregou a vários advogados especializados em direito internacional as 50 mil imagens que tirou, 7000 entre elas são de cadáveres que sucumbiram aos ferimentos ou à fome em várias das prisões do regime.

“A mensagem que esta decisão envia a todos os que fazem parte do regime sírio é que estes crimes não serão esquecidos, na verdade este veredicto é apenas o início. O mundo está a começar a entender que é preciso que estas pessoas respondam pelo que fizeram. Para os sírios que foram para a rua há 10 anos, esta luta não está ganha e não acabou e um dia a luta pela justiça e pela democracia poderá acontecer em solo sírio”, disse aos jornalistas Patrick Kroker, advogado do Centro Europeu para os Direitos Humanos e Constitucionais, que representa o conjunto das vítimas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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