Anwar al-Bunni está envolvido num acontecimento histórico. Esta é a história dele - e de torturados como ele mas também de torturadores como o dele. Tudo relatado ao Expresso pelo próprio Anwar, que não procura especificamente vingança deste homem que o torturou há nove anos: “Eu quero desmantelar um sistema - apesar de este homem ser mais do que uma simples peça, de ser um grande tubarão, não é a ele que é preciso neutralizar”
Esta não é a história de um general louco sem capacidade de sentir remorsos e que torturava por gosto todos os que fossem parar à sua masmorra. Esta não é a história de uma exceção. É a história de uma fórmula de opressão desenvolvida como modelo de governo e é contada em círculos e repetições, porque é essa a natureza da tortura.
“Muito antes de Bashar al-Assad chegar ao poder na Síria já o pai dele fazia desaparecer os opositores. Nada disto é novo na Síria, é assim que se fazem as coisas, é algo que corre na família”, começa por dizer ao Expresso Anwar al-Bunni, advogado de 61 anos especializado em Direitos Humanos, que esteve preso e foi torturado nas prisões do regime sírio duas vezes - a última entre 2006 e 2011. “Por essa altura eu já era um advogado conhecido na defesa dos Direitos Humanos, falava muito da tortura que se passava, escrevia artigos e até escrevi uma nova Constituição para a Síria em 2005, muito antes de alguém falar em mudanças.” Anwar al-Bunni ri-se muito ao telefone e diz: “Obviamente eles não acharam muita piada à existência de uma nova Constituição. Que loucura, que loucura”. Mais gargalhadas. Foram cinco anos de isolamento e maus-tratos que se transformaram em memórias que se transformaram em missão que se transformaram em armas judiciais contra um dos mais prolíficos torturadores da dinastia Assad: Anwar Raslan, um homem com quem al-Bunni partilha o primeiro nome - e com quem partilhou, ao princípio sem sequer saber, o itinerário de fuga da Síria.
Antes, muito antes de qualquer revolução, a família al-Bunni já tinha ficha nos Serviços Secretos da Síria, uma instituição omnipresente na vida de todos os cidadãos. “Toda a minha família sempre se opôs ao regime. O meu irmão mais velho foi o primeiro a ser preso, em 1972, e desde então quase toda a minha família direta - irmãos, irmãs, tios, tias ou mulheres e maridos deles - esteve presa. Ao todo, a minha família esteve presa na Síria um total de 73 anos, são 73 anos que não passamos uns com os outros.” A principal arma do regime não é uma arma de fogo mas a vigilância e o medo: “Toda a gente é um alvo, por coisa nenhuma, toda a gente tem medo, toda a gente sabe que pode desaparecer ou que um membro da sua família pode ser mandado para a prisão e torturado. Chegam, pegam em ti e nunca mais és visto sem sequer saber o que fizeste”.
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