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Espanhóis já podem escolher morrer, como fizeram Ramón e María José

Apoiantes do projeto de lei exigiram à porta do Congresso dos Deputados, em Madrid, o direito a escolher morrer sem sofrer
Apoiantes do projeto de lei exigiram à porta do Congresso dos Deputados, em Madrid, o direito a escolher morrer sem sofrer
Kiko Huesca/epa

A nova lei estabelece um sistema rigoroso de requisitos e garantias para o exercício deste direito. População está maioritariamente a favor, indicam sondagens

Espanhóis já podem escolher morrer, como fizeram Ramón e María José

Ángel Luis de la Calle

Correspondente em Madrid

Se Ramón Sampedro estivesse vivo, esta quinta-feira seria um dia feliz para ele. O Parlamento espanhol aprovou, com ampla maioria, a lei orgânica de regulação da eutanásia, direito pelo qual Sampedro lutou durante os últimos anos da sua atribulada vida. Tetraplégico desde os 25 anos, após um salto de uma rocha para o mar, este marinheiro galego tornou-se símbolo vivo das aspirações de muitas pessoas afetadas por males irreversíveis para lograr uma morte digna.

Ajudado por um grupo de amigos encabeçado por Ramona Maneiro, perseguida pela justiça durante anos como cooperadora na morte do doente, Sampedro pôs fim à sua existência em 1998. A sua epopeia, levada ao cinema em 2004 por Alejandro Amenábar no filme “Mar Adentro”, protagonizado pelo oscarizado Javier Bardem, deu um safanão à consciência da sociedade espanhola.

Não foi simples o caminho percorrido desde então. Em mais de vinte ocasiões, nas duas últimas décadas, fracassaram as tentativas de grupos políticos de ideologia progressista para levar à discussão pública a regulação deste assunto delicado. O texto do projeto agora aprovado estava praticamente ultimado desde 2018, mas as eleições consecutivas desse ano e do seguinte afastaram da agenda parlamentar o debate programado.

Por fim, com 198 votos a favor, 138 contra e duas abstenções (a maioria absoluta no Congresso dos Deputados é de 176 deputados), la lei entrará em vigor nas primeiras semanas de 2021, depois da segunda leitura por parte do Senado, onde não se esperam grandes alterações ao articulado. Espanha passa a ser a sexta nação do mundo, depois dos Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Canadá e Nova Zelândia, a dispor de uma regulação baseada na defesa do direito a dispor da própria vida e a despenalizar a assistência ao suicídio.

Processo por etapas

As prolongadas discussões especializadas para chegar a este momento conduziram, segundo peritos, a um texto com muitas garantias, no qual a casuística está bastante pormenorizada. A lei reconhece o direito das pessoas maiores de idade, de nacionalidade espanhola ou residentes com doenças irreversíveis ou que causem sofrimento físico ou psíquico insuportável a decidir o momento da sua morte. Caso não possam provoca-la pelos seus próprios meios, as pessoas que os ajudem no gesto final não serão perseguidas penalmente.

O sujeito (ou os seus familiares mais próximos em caso de incapacidade de fazê-lo) deve expressar a sua vontade de pôr fim à vida em quatro ocasiões distanciadas no tempo, certificadas pelo seu quadro médico habitual e pelo ditame de um especialista independente. O veredicto final cabe a uma Comissão de Avaliação e Seguimento que se constituirá para este efeito em todas as comunidades autónomas espanholas.

Os trâmites, que se calcula que possam durar cerca de um mês, estão adscritos e são financiados pelo sistema nacional de saúde. Os médicos poderão exercer o direito à objeção de consciência. Em muitos dos seus aspetos fundamentais, a lei aprovada em Espanha é muito parecida com a que se debate em Portugal.

“Por fim começarei o luto”

O caso de Ramón Sampedro mobilizou consciências e levou ao conhecimento da população espanhola um grave problema social que não fora abordado por impedimentos religiosos ou éticos. Recentemente houve outros exemplos que contribuíram para aumentar a sensibilização popular para a aspiração a uma morte digna.

Ángel Hernández é um desses casos. Em abril do ano passado ajudou a sua mulher, María José Carrasco, vítima de esclerosos múltipla que lhe impedia qualquer movimento e lhe causava dores insuportáveis, a tomar uma dose de pentobarbital sódico, que lhe tirou a vida. María José exprimira inúmeras vezes aos seus próximos, incluindo ao marido Ángel, o desejo de acabar com o sofrimento.

“Morrerei quando Deus quiser”, garante um ativista anti-eutanásia diante do Parlamento espanhol
Marcos del Mazo/getty images

Hernández, que esteve prestes a ser preso por ter ajudado a companheira a morrer, é hoje um homem satisfeito e relaxado, como declara ao Expresso: “Por fim começarei o luto e deixarei María José ir-se aos poucos dos meus pensamentos, porque a tenho constantemente na cabeça. Quis que fosse assim para poder continuar a lutar”. Recorda, face aos sectores que se opõem à regulação agora aprovada, que “a eutanásia é um direito, não uma obrigação”.

Se uns celebram o avanço nos direitos sociais, há sectores que anteveem calamidades de toda a índole. Lourdes Méndez, porta-voz parlametar para a saúde do partido de ultradireita Vox, assegurou aos jornalistas que “a norma instaurará em Espanha a indústria da morte, como resposta a um sistema de pensões quebrado”. Méndez segue a linha traçada marcada pelos dirigentes do partido, que qualificam a nova lei de “criminosa” e anunciam que recorrerão para o Tribunal Constitucional.

A tese do Vox, segundo interpreta Pablo Echenique, líder parlamentar da aliança Unidas Podemos (UP, esquerda radical, sócio dos socialistas na coligação de Govenro), é: “Para o Vox, a lei visa cortar custos através de um genocídio de idosos”. Além do Vox, votaram contra a lei o Partido Popular (PP, centro-direita) e os seus aliados da União do Povo Navarro (UPN).

“Legislar por cima das crenças”

A favor manifestaram-se o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda), a UP, as forças independentistas catalãs e bascas e os nacionalistas de origem cristã do Partido Nacionalista Basco (PNV). Um dos seus porta-vozes, Joseba Aguirretxea, afirmou ao Expresso que “é necessário legislar por cima das crenças de cada um”. Também o Cidadãos (Cs, centro-direita liberal), votou pela lei.

Segundo o presidente do PP, Pablo Casado, “nunca houve exigência social” suficiente para regular este assunto. Considera, como o Vox, que teria sido mais justo dedicar esforços a melhorar o sistema de cuidados paliativos já em vigor. As sondagens dos institutos mais credíveis demonstram uma visão clara dos espanhóis nesta matéria.

O Centro de Investigações Sociológicas (CIS, paraestatal), não faz perguntas sobre eutanásia desde 2009. Nessa altura 76,3% dos inquiridos declararam-se a favor da regulação da eutanásia. Em 2019 a empresa privada Metroscopia, reconhecida e respeitada, revelou uma subida dos que dizem “sim” para 85%, incluindo 65% dos católicos praticantes espanhóis.

Igreja e Ordem dos Médicos contra

A igreja sempre se bateu contra a regulação aprovada. O porta-voz da Comissão Permanente da Conferência Episcopal remeteu o Expresso para um comunicado emitido há meses, que afirma que a lei “questiona um princípio ético básico: não matarás”. Acrescenta que a nova norma jurídica “abre via livre a uma cultura de descarte”.

Posição similar tem o Comité de Bioética do Ministério da Saúde, organismo consultivo que se manifestou em setembro contra “considerar a eutanásia um direito subjetivo”, que inicia “um caminho devastador” e implica “um retrocesso civilizacional”. O Comité também cita esse comunicado: “Responder com a eutanásia à dívida que a nossa sociedade contraiu com os mais velhos não parece o caminho autêntico a que nos chama uma ética do cuidado, da responsabilidade e da reciprocidade e solidariedade entre gerações”.

Embora a maioria dos profissionais de saúde inquiridos nos estudos de opinião sejam pessoalmente a favor da eutanásia, a Ordem dos Médicos espanhola opõe-se à lei e defende um maior desenvolvimento dos cuidados paliativos. Em Espanha morrem por ano 400 mil cidadãos, em circunstâncias normais. Destes, 50 mil não recebem assistência paliativa.

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