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Ataque ao Charlie Hebdo foi há cinco anos. O mundo continua com “razões para estar preocupado”

Ataque ao Charlie Hebdo foi há cinco anos. O mundo continua com “razões para estar preocupado”
FRANCOIS GUILLOT / POOL

Para o tenente-coronel João Paulo Alvelos, do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, “não podia ser mais paradigmático estarmos a assinalar este aniversário no mesmo dia em que acontecem as cerimónias fúnebres do general Qassem Soleimani”. A sua morte será retaliada, assegura. “Como, quando, onde? Não se sabe”

Ataque ao Charlie Hebdo foi há cinco anos. O mundo continua com “razões para estar preocupado”

Mafalda Ganhão

Jornalista

Foi há cinco anos. Os irmãos Chérif e Saïd Kouachi entraram de rompante na redação do jornal “Charlie Hebdo”, em Paris, e durante um minuto e 49 segundos dispararam a matar. O ataque fez 11 vítimas mortais (mais um polícia, que foi assassinado na rua, mais tarde) e 11 feridos. Acabaria por ser condenado a várias vozes, como um ataque à liberdade de imprensa, com a expressão “Je suis Charlie” (“eu sou Charlie”) a ser repetida um pouco por todo o mundo.

“A porta abriu-se. Ele tinha o puxador na mão direita. A esquerda agarrava na coronha do que era claramente uma arma completamente preta, cujo cano apontava para o chão. Nesse instante, todos nós entendemos. É o fim. O nosso fim chegou.” No livro “Um minuto, quarenta e nueve segundos”, Riss, o diretor do jornal satírico, recorda o episódio fatídico e reflete sobre o ataque que acabou com a vida dos seus colegas e amigos, e em que ele próprio ficou ferido.

“Foi uma execução política”, afirmou Riss numa entrevista: “Não foi um ataque cego, foi uma execução específica para silenciar pessoas que tinham uma palavra específica”.

Para o tenente-coronel João Paulo Alvelos, do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), “não podia ser mais paradigmático estarmos a assinalar este aniversário no dia em que acontecem as cerimónias fúnebres do general Qassem Soleimani”. O mundo tem razões para estar preocupado, sublinhou ao Expresso, evocando o enquadramento de tensão atual, após os Estados Unidos terem assassinado o general iraniano Qassem Soleimani. “Os iranianos não vão deixar de retaliar”, considera.

Sobre o ataque de Paris, o tenente-coronel recorda um momento particular. “Ainda me marca a frieza com que um dos irmãos, já depois de terem saído da redação, matou na rua um polícia que estava no chão, ferido”, descreve. Há um vídeo que o mostra, “imagens muito angustiantes”, de um dia que o militar diz ter ficado para a história como um evidente “ataque à democracia e à liberdade de expressão, levado a cabo no coração da Europa”.

Com as mortes dos jornalistas do Charlie Hebdo e os diversos ataques terroristas que lhe sucederam, a importância e a amplitude das redes jiadistas em França tornou-se conhecida, considera Jean-Charles Brisard, presidente do Centro de Análise de Terrorismo, um ‘think tank’ francês.

“Para além dos ataques de lobos solitários inspirados na propaganda jiadista, Paris, e depois Bruxelas e Manchester demonstraram que a Europa estava confrontada com uma rede operacional bem doutrinada, organizada e treinada”, afirma Felipe Pathé Duarte, investigador académico, especialista em segurança internacional. “A continuidade da ameaça provou a resiliência destas redes”, sublinha também.

Para Pathé Duarte, as respostas em matéria de políticas de segurança trouxeram uma mudança profunda ao “criar uma espécie de excecionalidade permanente”, que se traduziu tornar comuns “medidas de emergência que outrora eram consideradas ataques a direitos fundamentais”, com uma consequente alteração das dinâmicas políticas, “nomeadamente com o crescendo da extrema-direita”.

Cinco anos depois, no jornal onde tudo aconteceu, a memória permanece dolorosa, mas o título não se afastou da sua linha editorial, crítica dos políticos e da religião.

O tenente-coronel João Paulo Alvelos elogia o caminho seguido, de afastamento em relação a qualquer orientação de vingança. Lembra a capa logo após o atentado, a favor do “perdão”, com a ilustração de um beijo na boca entre um jornalista e um muçulmano, acompanhado pela manchete “O amor é mais forte do que o ódio”, embora a atualidade não nos permita falar de paz.

A edição especial lançada pelo “Charlie Hebdo” esta terça-feira fala de “novas censuras” e de “novas ditaduras”. E se o mundo continua ameaçado, de onde vêm as ameaças? Quais poderão ser os alvos?

“O Daesh não foi debelado, e parece estar a recuperar. Além disso, o centro de gravidade deste tipo de ameaça, mais que a estrutura, é a ideologia – e essa tem muita margem para continuar”, entende Felipe Pathé Duarte.

Apontado como o cérebro por trás da estratégia militar e geopolítica do Irão, o general Soleimani pode ter deixado a mais perigosa das heranças. O tenente-coronel João Paulo Alvelos fala na existência de “células terroristas bem organizadas, capazes de entrar em qualquer país e das formas mais imaginativas”, para sublinhar o seu receio em relação a potenciais “ações subversivas inesperadas”.

“Como, quando, onde? Não se sabe”, continua, mas seguramente a escolha terá em conta “o potencial mediático” da ação e do alvo.

A isto o militar, membro do OSCOT, junta a maior dificuldade para a Europa de obter informações em matéria de segurança. O Brexit tem esse custo, considera, ao lembrar que a Europa perde o acesso a dados preciosos, que podia obter através do Reino Unido, nomeadamente pela ligação deste país aos serviços de informação anglo-saxónicos.

Quando o factor surpresa pode ser a essência e o objetivo da retaliação escolhida, ações de prevenção serão particularmente difícieis. “Temo que não estejamos a falar de uma ação pontual”, conclui o tenente-coronel João Paulo Alvelos.

(Artigo atualizado a 10 de janeiro)

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