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“O descontentamento e a raiva foram crescendo, crescendo, e houve um momento em que… pummm!”

“O descontentamento e a raiva foram crescendo, crescendo, e houve um momento em que… pummm!”
NurPhoto/Getty Images

O Presidente chileno, Sebastián Piñera, anunciou medidas sociais e, mais recentemente, substituiu alguns dos seus ministros mas os protestos continuam. E vão continuar, diz Ricardo Higuera, presidente da Asociación de Chilenos en Portugal, enquanto o governo não fizer mais do que adotar “medidas cosméticas” ou não se responsabilizar pela violência e repressão das forças de segurança

“O descontentamento e a raiva foram crescendo, crescendo, e houve um momento em que… pummm!”

Helena Bento

Jornalista

No meio dos preparativos para uma marcha de solidariedade para com a população do Chile (marcada para esta sexta-feira, 1 de novembro, a partir das 17h00, no Rossio, em Lisboa), depois de uma concentração com o mesmo objetivo realizada na semana passada, em Lisboa, Ricardo Higuera, presidente da Asociación de Chilenos en Portugal, conta ao Expresso como a preocupação da comunidade chilena cá passou de tentar perceber se estava tudo bem com familiares e amigos para se organizar nas redes sociais de modo a “mostrar uma realidade que tem sido encoberta pelos media tradicionais”.

O Presidente chileno anunciou medidas sociais e, mais recentemente, substituiu oito dos seus 24 ministros, mas os protestos continuam. O que falta fazer?
As medidas anunciadas pelo Presidente, tanto no que diz respeito à substituição de ministro como ao aumento das reformas, têm sido consideradas apenas medidas cosméticas, que não resolvem nada, que não vão ao fundo do problema. É verdade que foi anunciada uma remodelação do Governo chileno, mas foram mantidos os ministros das áreas mais problemáticas e cujas falhas e debilidades motivaram os protestos, como os transportes, saúde e educação. Isso é não ouvir a população. Os problemas do Chile são imensamente maiores do que isso.

Quais são os principais, na sua opinião?
Têm que ver com o facto de as pensões estarem nas mãos de privados, o que faz com que as pessoas recebam muito menos do que aquilo que ganhavam quando trabalhavam. Na área da saúde, também são muitos os problemas: os hospitais e centros de saúde não dão resposta às necessidades das pessoas e o mesmo no caso da educação. A ministra que o Presidente decidiu manter no cargo foi responsável por criar uma narrativa falsa em torno do movimento estudantil chileno e transformar estes estudantes em delinquentes e criminosos. Por causa disso, houve inúmeros problemas em diferentes escolas, com a presença de militares e polícias dentro dos estabelecimentos de ensino durante muito tempo. A privatização da água e o não reconhecimento dos povos originários são outros dois dos grandes problemas do país, assim como o sentimento de injustiça que fica sempre que as grandes empresas são penalizadas por irregularidades cometidas. Pagam multas ou os seus trabalhadores ficam obrigados a assistir a aulas de ética, e o problema fica resolvido. Os chilenos têm a sensação — a mesma que têm vindo a sentir de há 30 anos para cá — que as instituições não funcionam e que os governos, mas especialmente o atual, estão a governar apenas para uma elite. As reivindicações são muitas e são muito claras, e a principal é mesmo alterar a Constituição.

Um investigador chileno afirmou ao Expresso que a atual Constituição (concebida em 1980 pelos militares que derrubaram o regime socialista do Presidente Salvador Allende) “não reflete os valores e interesses da sociedade”. É essa também a sua opinião?
Quase todos os problemas de que os chilenos se queixam hoje em dia, como a injustiça e a desigualdade, seriam resolvidos se a Constituição fosse alterada. É imperativo para nós, chilenos, que isso aconteça. Houve uma tentativa nesse sentido feito pelo anterior governo [liderado por Michelle Bachelet] mas que não teve qualquer consequência. A maior luta de todas neste momento, e que exige uma grande mudança estrutural, é criar uma Assembleia Constituinte e redigir uma nova Constituição.

Só isso fará os chilenos sair da rua?
Bom, não tenho grandes certezas quanto a isso. Há muitas pessoas que exigem mesmo a demissão do governo e outras que ficaram aliviadas com a substituição do Ministério do Interior e da Segurança Pública [Andrés Chadwick, que foi muito criticado pelo seu papel na gestão da ordem pública durante os protestos, que contaram com uma forte presença do Exército e da polícia nas ruas], mas os problemas são, de facto, muito estruturais. Para já, e esta é a minha opinião, o governo deveria assumir a responsabilidade pela situação atual e enviar uma mensagem forte a garantir que o Chile vai efetivamente entrar num grande processo de renovação que inclui a alteração da Constituição. Mas não há uma única resposta.

Como é que a comunidade chilena em Portugal tem encarado os protestos?
No início houve uma grande preocupação em saber se os familiares e amigos no Chile estavam bem mas o foco agora tem que ver com a informação sobre os protestos que vai sendo transmitida pelos meios de comunicação chilenos e também internacionais. A comunidade tem-se organizado e utilizado as redes sociais para mostrar uma realidade que tem sido encoberta. Logo desde o início, os media chilenos criaram uma narrativa desfasada da realidade no que diz respeito à repressão policial e militar nas ruas, e à violência. Há muita informação que não tem sido divulgada pela televisão, rádio e mesmo pela imprensa escrita, e o nosso objetivo, e que é também o objetivo das comunidades chilenas noutros países, é utilizar as redes sociais para mostrar o que se tem tentado esconder.

Que narrativa é essa?
Os media tradicionais chilenos focaram-se, desde o início, na violência e nos roubos nos supermercados e nos incêndios nas estações de metro, e tentaram criminalizar o movimento. Foi precisamente por isso que o Governo acabou por decretar o estado de emergência e o recolher obrigatório. Mas a realidade é outra — há muitas manifestações que têm sido pacíficas, há uma luta pacífica por melhores condições de vida, e, por outro lado, há atos de violência e repressão militar que não têm sido noticiado. O próprio governo tem evitado falar sobre os mortos e os desaparecidos e as pessoas que foram violentadas pelas forças de segurança, e quando o faz é de uma forma muito distante, desligada, referindo-se apenas aos números. Ainda não assumiu uma verdadeira responsabilidade, e também isso deixa os chilenos revoltados. Substitui ministros, anuncia uma ou duas medidas e acha que isso é suficiente. Quando se fala da desconexão entre governo e população não tem só que ver com a luta dos últimos 30 anos e com as privatizações, também tem que ver com isto. Os chilenos têm a sensação de que o governo está a provocá-los, de que há qualquer coisa que o governo não está a querer fazer. E é por isso que continuam a protestar.

Ainda em relação à cobertura dos media, nota que os órgãos de comunicação portugueses têm feito o mesmo?
O que para nós foi chocante, e não aconteceu apenas com os órgãos de comunicação portugueses mas com todos os outros, foi perceber o tempo que o conflito demorou até receber alguma atenção. Houve uma espécie de lapso de tempo, e isso explica o desespero da população em querer mostrar a todo o custo o que estava a acontecer. Tudo demorou muito mais tempo do que achávamos que iria demorar.

Que impressões lhe têm chegado do ambiente nas ruas do Chile?
Na semana passada, a sensação de vulnerabilidade e medo era muito forte, precisamente por causa da repressão policial e do Exército. Ninguém estava à espera que o presidente autorizasse a saída de tantos militares para a rua...

Porque é que o fez, na sua opinião?
Precisamente por causa da desconexão de que lhe falava, da falta de sintonia do governo com as reivindicações sociais. Isso faz com que não tenha pulso sobre o que está a acontecer. O descontentamento e a raiva foram crescendo, crescendo, e houve um momento em que… pummm!, explodiu. E acho que para o governo também foi isso… pummm!, algo completamente inesperado, precisamente por não ver nem ouvir a sociedade. Já tinha havido inúmeros protestos antes destes, todos eles pacíficos mas sem qualquer impacto sobre o governo. Ninguém estava à espera que isto rebentasse desta forma, e rebentou com tanta raiva que o governo ficou sem saber o que fazer. Em relação aos familiares e amigos da comunidade chilena em Portugal, não temos conhecimento de situações críticas, de mortes ou desaparecimentos, mas o que nos chega todos os dias é a sensação de que ninguém sabe ao certo quando é que tudo isto vai acabar.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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