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“Quem vem reclamar este corpo?”: as histórias de quem sufocou em camiões

A carrinha abandonada em agosto de 2015
A carrinha abandonada em agosto de 2015
DIETER NAGL/ Getty Images

71 mortos. 54 mortos. 39 mortos. Nove mortos. Todos morreram da mesma maneira: dentro de camiões, quando tentavam entrar ilegalmente em países europeus ou nos EUA. Esta semana, no Reino Unido, um camião foi encontrado com 39 novos corpos num contentor. Horas depois, numa operação de trânsito, a polícia britânica encontrou mais nove pessoas na traseira de um segundo camião. O Expresso recorda outras histórias com contornos semelhantes

“Quem vem reclamar este corpo?”: as histórias de quem sufocou em camiões

Marta Gonçalves

Coordenadora de Multimédia

Há muito tempo que a família de Saeed Othman Mohammed não sabia nada dele. Tinha escapado do Iraque e queria chegar à Alemanha. Quando finalmente tiveram notícias, não chegaram do próprio mas pelas autoridades austríacas. Saeed estava morto há duas semanas, nunca chegou à Alemanha. O curdo de 35 anos foi uma das 71 pessoas encontradas mortas dentro da arca num camião frigorífico abandonado na Áustria. Com ele estavam tantos outros com histórias como a dele: gente que deixou o país de origem e procurava a segurança da Europa.

O camião em que Saeed viajava foi encontrado abandonado numa estrada em Parndorf, não muito longe da fronteira com a Hungria, a 29 de agosto de 2015. Nas laterais podia ler-se “Honest Chicken”, fazia parte de uma empresa de venda de carne de ave, escreveu o jornal britânico “The Guardian”. Pagou quase dez mil dólares e, em troca, tinham-lhe prometido passagem até a Alemanha, uma travessia que duraria dez dias e que incluiria uma caminhada de 22 horas na Bulgária.

Um homenagem em Budapeste, na Hungria, às 71 vítimas
Anadolu Agency/ Getty Images

Naquele verão viveu-se o pico máximo da crise migratória e, só em 2015, entraram em território europeu mais de um milhão de migrantes, segundo os dados das Nações Unidas. Vinham sobretudo da Síria e do Afeganistão, precisamente as mesmas nacionalidades das pessoas que partilharam a viagem com Saeed naquela arca frigorífica.

O curdo nunca deveria ter entrado na carrinha - um amigo já o avisara dos riscos, além disso já tinha pago mais 600 euros para assegurar um lugar num carro. De acordo com o jornal “The Guardian”, ninguém sabe como Saeed acabou na carrinha. Sabe-se que estava doente e que o último telefonema que fez foi a 25 de agosto para o traficante que o iria ajudar a chegar ao seu destino.

“Podemos presumir que as mortes já aconteceram há cerca de dois dias”, dizia o porta-voz da polícia à imprensa austríaca no local, pouco depois do alerta, a 29 de agosto.

Pelo menos quatro homens - três búlgaros e um afegão - foram detidos, julgados e condenados a pena de prisão perpétua pelo envolvimento em tráfico de migrantes e no homicídio das 71 pessoas.

A notícia da morte de Saeed só chegou à família alguns dias depois. Foi escondida da mãe e da irmã o máximo de tempo possível. Ambas só souberam quando chegaram ao aeroporto e alguém gritou: “quem vem reclamar este corpo?”.

Recentemente este foi o caso mais vítimas mortais. No entanto, não é único.

A noite mais quente

Jin Xicai tinha 18 anos. A história é contada pelo jornal “El País”, era dele um dos 58 corpos encontrados numa arca frigorífica de um camião no porto de Dover, o maior do Canal da Mancha, a 20 de junho de 2000. Esta será a história mais parecida com aquela que esta quarta-feira foi noticiada. O que as une? O país: Reino Unido; o caso: camião encontrado com cadáveres; a nacionalidade das vítimas: chinesas; a origem: Bélgica.

Imagem atual do porto de Dover, no Reino Unido
TOLGA AKMEN/ Getty Images

No meio das caixas de tomates, 54 homens e quatro mulheres encontraram a forma de passarem da cidade belga de Zeebrugge, no norte do país, até ao Reino Unido. Fizeram uma viagem de três horas fechados na arca - embora o sistema de refrigeração estivesse desligado. A carga era pouca e os migrantes conseguiram sentar-se e esticar as pernas. Morreram de asfixia. Faltou-lhes o oxigénio, sobrou-lhes o calor. Aquela foi a noite mais quente do ano na região.

“É difícil apontar que temperatura terá sido atingida dentro do camião”, explicou na época o porta-voz do porto de Dover.

A meio da noite, o funcionário que confirmava a mercadoria encontrou os corpos. Entre estes estavam dois sobreviventes, que foram de imediato transportado para o hospital mais próximo. Vieram todos do sul da China, nenhum deles passava dos 20 e poucos anos, foram levados até à Europa por uma rede tráfico de migrantes.

Jin Xicai completou dez semanas de viagem - sete das quais pela Sibéria -, chegou então a Moscovo. Depois pela Europa foi mais difícil seguir caminho: comboio, camiões e numa carroça puxada por cavalos. Atravessar cada fronteira eram um desafio. Ficou a faltar-lhe a última.

Não só na Europa

Em 2017, oito cadáveres foram encontrados pela polícia norte-americana num parque de estacionamento da cadeia de supermercados Walmart, em San Antonio, no Texas. A única pessoa encontrada viva foi levada para o hospital mas haveria de morrer nas horas seguintes. Passaram a nove mortos. Era um domingo de julho.

No total, estavam 39 homens fechados no camião. Aos que morreram faltou-lhes o ar e não aguentaram as temperaturas demasiado altas. “Estas pessoas são completamente indefesas e estão nas mãos dos condutores. Imaginem o seu sofrimento, fechadas na parte de trás de um camião com temperaturas a próximas dos 37 graus”, dizia em conferência de imprensa, citado pelo “New York Times”, o procurador responsável pelo caso.

Na mesma zona, anos antes, em maio de 2003, 19 pessoas sem documentos morreram também sufocadas dentro de uma carrinha de transporte de leite. Foram abandonadas trancados numa estrada na cidade de Victoria. O condutor conseguiu passar na fronteira da América Central para os EUA sem ser revistado. Disse apenas que não trazia carga.

Já em janeiro de 2019, 13 pessoas foram encontradas mortas num contentor de carga na cidade costeira de Khoms, na Líbia - local de muitas partidas para o Mediterrâneo Central, por onde milhares de pessoas tentam atravessar e chegar à Europa. Sufocaram. Foram resgatadas 56 pessoas com vida, noticiou a agência Reuters. Meses antes, em julho de 2018, 90 pessoas foram salvas de um contentor em Zuwarah, também na costa da Líbia. Oito pessoas morreram antes que as autoridades chegassem.

2019, Reino Unido. Mais 39 mortos

O camião onde os 39 corpos foram encontrados esta quarta-feira
Leon Neal/ Getty Images

Todos estes casos se assemelham com a história noticiada esta quarta-feira: um camião encontrado com corpos de 39 migrantes. Todos de nacionalidade chinesa, oito mulheres e 31 homens. Uma das vítimas seria um adolescente.

Foi ainda durante a madrugada que a polícia de Essex, nos arredores de Londres, foi alertada. Embora o veículo estivesse registado na Bulgária, terá partido da Bélgica há uns dias e entrou em território britânico este sábado. O condutor, que está detido, tem 25 anos e é norte-irlandês.

O caso está a ser investigado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mpgoncalves@expresso.impresa.pt

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