Na primeira votação que o seu Governo disputou na Câmara dos Comuns, Boris Johnson averbou uma pesada derrota. Com 328 votos a favor e 301 contra, os deputados aprovaram a realização, na quarta-feira, do debate e votação de um projeto de lei que impede o Brexit sem acordo e obriga o Governo, à falta de consenso com os 27, a pedir novo adiamento da saída da União Europeia (UE).
Reagindo ao desaire, para o qual contribuíram 21 deputados da sua própria bancada, o líder do Governo e do Partido Conservador anunciou que, caso a lei passe, será forçado a pedir eleições antecipadas, embora a contragosto. “Posso confirmar que vamos apresentar uma moção ao abrigo da Lei dos Mandatos Parlamentares Fixos”, confirmou o chefe do Governo britânico. Antecipar o ato eleitoral, que normalmente aconteceria em 2022, exige o voto de dois terços da Câmara dos Comuns, isto é, 434 deputados.
Segundo Johnson, o país terá de escolher quem vai a Bruxelas a 17 de outubro falar com os parceiros europeus. A data provável das eleições seria 14 ou 15 do próximo mês. O primeiro-ministro afirma que caso seja o trabalhista Jeremy Corbyn a liderar as negociações, sucedendo-lhe no cargo, irá capitular perante a UE. Se for o próprio Johnson, conseguirá um acordo, garante.
“O Parlamento está prestes a destruir qualquer acordo que pudéssemos conseguir em Bruxelas”, criticou Johnson, em tom agastado. Se a votação de amanhã espelhar a de hoje, os deputados estarão a “entregar o controlo das negociações à UE”.
Os 21 rebeldes, a quem ameaçou de expulsão e exclusão de candidaturas a eleições futuras, já começaram a receber chamadas telefónicas dos líderes da bancada. Entre eles estão ex-membros do Governo de Theresa May, como Philip Hammond (que foi ministro das Finanças), David Gauke (Justiça) ou Rory Stewart (Desenvolvimento Internacional), além de nomes de prestígio como Kenneth Clarke (o deputado há mais tempo em funções, desde 1970) e Nicholas Soames, neto do antigo primeiro-ministro Winston Churchill, um alegado herói pessoal de Johnson, que escreveu uma biografia desse ilustre antecessor. Soames anunciou esta noite que não se recandidata.
A ministra da Economia, Andrea Leadsom, afirmara esta noite que só haveria expulsões após a votação de quarta-feira, mas a realidade mostra que se equivocou.
Adiar para 31 de janeiro
O projeto de lei a debater quarta-feira à tarde prevê que, se chegar a 19 de outubro sem acordo de saída, o Governo terá de pedir novo adiamento do Brexit à UE, até 31 de janeiro, a menos que o Parlamento aprove a saída sem acordo (o que é altamente improvável).
Qualquer prorrogação da data legalmente consagrada (31 de outubro) requer a aceitação unânime dos 27. Sem isso (ou, em alternativa, uma revogação, que pode ser unilateral), o Reino Unido sai da UE quer haja ou não acordo.
Theresa May, antecessora de Boris Johnson, fechou um acordo com os 27 em novembro de 2018, mas o Parlamento britânico chumbou-o três vezes. Um dos maiores críticos do documento foi o atual primeiro-ministro.
O odiado backstop
Johnson afirma querer sair da UE com acordo, mas acha preferível sair sem acordo a adiar de novo o Brexit. Para já quer renegociar e exige que a UE aceite remover do documento o conjunto de disposições conhecido por backstop, destinado a evitar nova fronteira entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (independente e membro da UE).
Esta será, após o Brexit, a única fronteira terrestre entre o Reino Unido e a UE. Fica, além disso, numa zona que conheceu até há escassas décadas conflitos sangrentos entre católicos e protestantes.
O backstop estipula que, caso não haja um acordo comercial bilateral entre o Reino Unido e a UE, até final de 2020, que torne a fronteira dispensável, então o Reino Unido ficará em alinhamento regulatório com os 27 e a Irlanda do Norte sujeita a regras do mercado único.
Isto desagrada quer aos eurocéticos, que consideram o backstop uma forma encapotada de manter o país na UE, e ao Partido Democrático Unionista (DUP), que apoia o Governo minoritário de Johnson. Há europeístas que têm votado contra o acordo na esperança de conseguir novo referendo e a revogação total do Brexit.
Os parceiros europeus têm, até à data, mostrado pouca disponibilidade para remover o Brexit. É o caso do negociador-chefe da UE para esta pasta, Michel Barnier, do presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, e do primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar. Boris Johnson reunir-se-á com este último, segunda-feira, em Dublin.
Eleições não são garantidas
Se a lei for aprovada, disse Johnson, o país deve ir a votos. Acontece que não é prerrogativa sua marcar eleições. Devido à Lei do Mandato Parlamentar fixo, terá de convencer dois terços dos deputados a encurtar a legislatura.
Apesar de várias forças da oposição há muito exigirem uma ida às urnas — reivindicação reforçada desde que Johnson sucedeu a May, eleito apenas pelos militantes conservadores —, tal não implica que apoiem qualquer antecipação das legislativas. A data será relevante, já que a oposição rejeita uma eleição depois de um previsível Brexit sem acordo. “A prioridade é evitar uma saída da UE sem acordo a 31 de outubro, veremos o que vem depois”, disse o líder trabalhista, Jeremy Corbyn.
Já a ministra-sombra dos Negócios Estrangeiros, Emily Thornberry, explicou que o Partido Trabalhista só apoiará eleições antecipadas quando a lei que impede o Brexit sem acordo entrar em vigor.
Outra forma de fazer cair o Governo é aprovar uma moção de censura, coisa que Corbyn já admitiu fazer. Neste caso, segue-se um período de 14 dias para que o Governo cessante (ou outro) procure a confiança da Câmara dos Comuns. Esta via — para lá do insólito de podermos ver deputados do partido do Executivo a votar para derrubá-lo — seria mais ariscada para Johnson. Dado que não tem maioria, nos 14 dias a oposição poderia viabilizar um primeiro-ministro alternativo.
Governar sem maioria
Primeiro-ministro desde 24 de julho, Boris Johnson passou hoje a liderar um Governo sem o apoio da maioria dos deputados. A passagem do deputado Philip Lee para os Liberais Democratas reduziu a 309 o número de parlamentares conservadores votantes (são 310 mas um é secretário da Mesa, pelo que não vota). Mesmo somado aos dez deputados unionistas, com quem tem um acordo, o Executivo fica com 319, abaixo do limiar da maioria.
Lee trocou de bancada esta tarde, durante o discurso de Boris Johnson. Num comunicado, acusou o Governo de querer “um Brexit danoso, agindo sem princípios” e recorrendo a “manipulação e bullying”, além de pôr em risco vidas, formas de vida e a própria integridade do Reino Unido.
Com a expulsão dos 21 rebeldes, a bancada conservadora ficará reduzida a 289 membros (288 votantes) e os independentes passam a ser 35, a menos que algum dos castigados adira a outro partido.