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Partido meu, partido meu, há alguém mais socialista do que eu?

Partido meu, partido meu, há alguém mais socialista do que eu?
Justin Sullivan/GETTY IMAGES

Num Michigan ainda “meio em escombros” por causa da crise de 2008-09, candidatos democratas à presidência dos EUA recordaram em novo debate que o sonho americano depende da solidez da classe média

Partido meu, partido meu, há alguém mais socialista do que eu?

Ricardo Lourenço

Correspondente nos Estados Unidos

A segunda ronda de debates entre os candidatos à nomeação democrata para as presidenciais americanas de 2020 começou ontem à noite em Detroit, cidade no estado do Michigan e símbolo de uma região em crise, o Midwest, destruída por décadas de desindustrialização.

O cenário é tal que a governadora local, Gretchen Whitmer, que tomou posse em Janeiro, fez campanha sob o lema: “arranjem a porcaria das estradas”.

Dez candidatos perfilaram-se, mas as atenções concentraram-se em Bernie Sanders e Elizabeth Warren, dois dos favoritos, a par de Joe Biden e Kamala Harris (estes últimos medem forças esta quarta-feira em nova contenda com outros oito pretendentes), símbolos da ala progressista do Partido, crítica da deslocalização acelerada sob a vigência de governos de direita e de esquerda. Tamanha agonia resultou numa taxa de desemprego perto dos 25% no pico da crise económica de 2008-09.

O contexto económico criou descontentamento social, que se materializou numa vitória de Donald Trump no estado do Michigan em 2016. Warren e Sanders procuraram assim recordar críticas antigas e reconquistar o eleitorado, na maioria sindicalizado e que em 2008 e 2012 contribuiu para a vitória de Barack Obama.

Contudo, o momento televisivo não despertou as atenções de grande parte dos americanos, talvez porque as primárias só começam a 3 de de Fevereiro do próximo ano e as eleições presidenciais propriamente ditas estão marcadas para 3 de Novembro de 2020. E para complicar ainda mais vida dos políticos democratas, e as audiências da CNN (canal que organizou o evento), a transmissão de ontem à noite teve de lutar contra um concorrente de peso - a final do programa The Bachelorette, onde de uma vez por todas uma rapariga escolheu um companheiro para a vida, no final de um processo de eliminação que deixou 14 pretendentes para trás. Cerca de 10 milhões de pessoas assistiram à decisão.

Em matéria de números de candidatos, registe-se que as primárias democratas batem de longe aquele “reality show”. No total, 25 disputam a nomeação, embora apenas os 20 melhores classificados nas sondagens e no capítulo da recolha de fundos tenham presença assegurada nos confrontos de ontem e de hoje, divididos em grupos de dez.

“A democracia não está à venda”, recordou Warren logo nos primeiros minutos, levando os espectadores no Fox Theater ao rubro, reflectindo o entusiasmo registado nos estudos de opinião internos do Partido, que a colocam na liderança no Iowa, o primeiro estado a ir a votos. “Temos de ser o Partido que luta pela Economia e pela Democracia que funciona para todos”.

Sanders adoptou o mesmo registo e lembrou que “87 milhões de americanos" não possuem seguro de saúde ao mesmo tempo que “a indústria farmacêutica e seguradoras acumularam em 2018 um lucro de cem mil milhões de dólares”, advertindo ainda que “49% da nova riqueza criada é canalizada para 1% da população, a mais endinheirada, entenda-se”.

Colocados no centro do palco, ambos defenderam que o Medicare (regime de cuidados de saúde público para americanos com mais de 65 anos) deve servir todos os cidadãos e ofereceram os exemplos europeus e canadiano para provar que “Saúde é uma questão de direitos humanos”, como argumentou o senador do Vermont.

Warren explicou que tal não provocará um aumento de impostos para a classe média porque “as grandes empresas e os multimilionários pagarão o que devem”, compensando o défice criado.

O governador do Montana, Steve Bullock, e o ex-congressista do Maryland John Delaney apresentaram uma visão centrista do Partido, classificando ideias como “Medicare for all” de “fantasia socialista" . Outro moderado, o antigo governador do Colorado John Hickenlooper, considerou ainda que o Sistema de Saúde público “elimina o direito de escolha do consumidor” e que “a matemática está errada”.

O duo de favoritos pareceu por momentos cercado por sete moderados - o mayor de South Bend, Pete Buttigieg, juntou-se a Sanders e Warren.

Justin Sullivan/GETTY IMAGES

Descriminalizar a imigração ilegal

No passado, os candidatos democratas foram criticados por defenderem que quem entra ilegalmente nos Estados Unidos não deve ser acusado criminalmente. “Tal é o que permite a Trump separar mães das suas crianças”, advertiu Warren. Sanders subiu a fasquia e acrescentou que os clandestinos devem ter acesso a cuidados de Saúde gratuitos e direito a subsídios de apoio.

Mais uma vez, Bullock, um democrata eleito três vezes num estado maioritariamente republicano e que ontem afirmou que a América poderá voltar a usar a bomba nuclear, atirou-se aos desejos dos progressistas. Warren acusou-o de fazer o “jogo de Trump”.

E quando a confusão parecia tomar conta do debate, Don Lemon, um dos moderadores, introduziu um assunto, porventura, ainda mais polémico - o número de massacres na América que todos os anos provoca em média cerca de 35 mil mortos.

Amy Klobuchar, a senadora do Minessota, observou que a primeira coisa a fazer neste capítulo é “destruir” a influência da National Rifle Association (NRA), organização que advoga o direito universal de acesso às armas e um dos maiores financiadores das campanhas eleitorais do Partido Republicano. “O dinheiro compra leis e as leis estão feitas de acordo com os desejos do NRA e não dos cidadãos”, lembrou Beto O’Rourke, ex-congressista estadual no Texas.

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“Socialismo não é a reposta”

John Hickenlooper teve de explicar uma frase dita há dois meses e que se tornou bastante impopular nos sectores mais liberais. “Socialismo não é a reposta”, reafirmou, voltando a criticar as opções de política de Saúde de Sanders e Warren. O senador do Vermont perguntou-lhe: “Então explique-me porquê que eu sou o democrata com mais chances de vencer Trump segundo todas as sondagens?”.

A conversa parecia ter voltado ao ponto de partida com uma batalha entre os favoritos, mais à esquerda, e os centristas. Warren lembrou: “eu sou uma capitalista, mas enfrentei Wall Street e ganhei”, referindo-se às regulações implementadas na era pós-crise, quando foi nomeada por Barack Obama para chefiar a agência de protecção do consumidor. “As grandes empresas têm Washington agarrada pelo pescoço. Eu sei lidar com elas. Estou pronta para lutar”.

Delaney mudou de tema, mas continuou a criticar, classificando o “Green New Deal”, da autoria da coqueluche do movimento progressiva, a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, apoiada por Sanders e Warren, de “tão realista como a construção do muro de Donald Trump”.

Warren assegurou que tal garantiria mais de um milhão de postos de trabalho, nomeadamente no Midwest, e que reduziria a influência das petrolíferas em Washington. Depois voltou as baterias para Delaney. “Não percebo porquê que há pessoas que se candidatam para dizer o que não se pode fazer. É hora de taxar os mais ricos - Delaney não se preocupe, os seus primeiros 50 milhões estão livres deste imposto”, ironizou. “É hora de perdoar a dívida dos estudantes e tornar o sistema público”. O antigo congressista corou e pouco mais disse durante o resto da noite.

Sanders percebeu a fragilidade do adversário e deu o golpe de misericórdia: “Estou farto de democratas que não apostam nas grandes ideias. Ouça Delaney, os republicanos não têm problema nenhum com grandes ideias. Veja o corte de impostos para os mais ricos de cerca de um bilião de dólares!”.

No final da noite, o Expresso conversou com Brian Farkas, ex-membro da direcção do Partido Republicano do Michigan, que em 2012 votou em Obama e quatro anos depois em Trump. Branco, classe média, moderado, confessa que aquilo que ouviu não o faz mudar de opinião quanto a uma nova vitória do magnata nova-iorquino em 2020. Questionamos porquê. “O Bernie e a Warren até colhem nestas paragens, ainda meio em escombros, mas a verdade é que também por estas paragens estamos finalmente a ver alguma recuperação económica. Trump continuará a dizer coisas racistas, a mentir, mas no final do dia nada disso me interessa. Olho para os vizinhos, amigos e familiares e vejo que no geral todos estão melhor.”

Hoje à noite realiza-se o segundo debate em Detroit, com a presença de mais dez candidatos, entre eles o antigo vice-presidente Joe Biden e a senadora da Califórnia Kamala Harris.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: correspondenteusa@expresso.impresa.pt

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