“Se o Papa dissesse que não havia Deus, como ficava a Igreja Católica?”
8 de novembro de 1995: Bill Clinton foi um dos milhares que estiveram no funeral de Yitzhak Rabin, assassinado por um militante da extrema-direita
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É já esta terça-feira que Israel escolhe pela continuidade ou mudança política da sua governação. Mas o presente, este presente de um país complexo apoiado por parte do mundo e odiado ou incompreendido por outra, faz-se de um passado com os mesmos contrastes. Viagem ao dia em que Yitzhak Rabin morreu para chegar ao dia em que vamos saber se é Benny Gantz que sucede a Netanyahu ou se é este último que se sucede a si próprio
E de repente as sirenes eram tantas que todo o barulho da rua se dissolveu só num e até o samba que explodia das colunas que eles tinham montado na Praça Reis de Israel desapareceu por entre a certeza que algo de muito grave tinha acabado de acontecer. O pressentimento contagiou toda a gente como se um pó tivesse sido lançado de muito alto sobre a multidão confusa e torpe. Eles ainda não sabiam que celebravam sem razão - a confiança nas intenções de um político que admiramos tem destas coisas - mas haveriam de lembrar durante anos os meses que desperdiçaram nos preparativos desse nada.
Adam Keller parece que ainda traz esse vazio consigo, essa frustração; mas é tão idealista aos 65 anos como era naquele dia e recusa-se a acreditar que o sonho morreu aqui, nesta praça para onde nos convida, onde Yitzhak Rabin, antigo primeiro-ministro de Israel, foi assassinado. Naquele dia de novembro ou se perdia o homem ou se perdia o sonho e perdeu-se apenas o homem, pelo menos para Keller, um israelita que luta há mais de meio século pela paz entre o seu povo e os palestinianos. Rabin foi o último dos políticos em que a esquerda confiou e a 4 de novembro de 1995 foi assassinado por um israelita de extrema-direita que teria feito qualquer coisa para impedir Rabin de entregar aos palestinianos o que toda a comunidade internacional já lhes tinha consagrado nos Acordos de Oslo.
Rabin foi morto com dois tiros precisamente no fim desta manifestação de milhares de pessoas em defesa dos acordos. “As ruas estavam cheias, havia bandeiras de todos os países, jovens e velhinhos gritavam pelo fim do conflito. Eu estava aqui a recolher assinaturas neste papel que vos vou dar e, de repente, tudo congelou à nossa volta. Só as ambulâncias se moviam, vinham de todas as ruas. Durante uns minutos ninguém sabia o que se estava a passar, depois afinal era o Rabin que tinha levado um tiro e era grave”, conta ao Expresso. Mais tarde haveria de nos dar duas cópias dessa mesma petição que levou para esta praça que dois dias depois do assassinato passou a ter o nome “Rabin”. “Corremos todos da praça até ao hospital aqui perto, para onde ele foi levado, mas passadas poucas horas já sabíamos que ele não tinha sobrevivido.”
O momento atual da política israelita não o descansa nem um pouco. Que Benjamin Netanyahu não é o político do seu coração é fácil de adivinhar mas a opção número dois, Benny Gantz, é quase tão má na opinião de Keller: “Muitas pessoas como eu querem ver o Netanyahu fora do governo mas não estamos confortáveis com a alternativa. Benny Gantz é um general e está a tentar cortejar a extrema-direita com declarações que são bastante chocantes, como por exemplo gabar-se do número de palestinianos que matou na Faixa de Gaza. Gantz fez vídeos de campanha em que aparecem bairros palestinianos totalmente destruídos e onde releva o facto de ter matado “1.364 terroristas”. “Estas eleições são muito personalizadas, são sobre Netanyahu, quem o odeia e quem o adora, e há muitas pessoas dos dois lados. E ele conseguiu que as pessoas seguissem de uma forma quase acrítica, mesmo agora que está envolvido num processo judicial por suborno e fraude. Só que as pessoas dizem ‘e então se ele recebe uns dinheiros por fora?’, ‘e qual é o mal se ele recebe uns charutos?’.”
As últimas sondagens, publicadas pela última vez na sexta-feira, mostram um empate - 28 assentos para a coligação de Netanyahu e 28 para a de Gantz, mas é nas letras pequenas que esta eleição se vai decidir. Para entrarem no parlamento, os partidos têm de ter pelo menos 3,25% do votos. Este limite de 3,25% serve, segundo Keller, para limitar o acesso dos partidos árabes ao parlamento. “Dos dois lados há pequenos partidos que estão sempre à volta desse número e é precisamente isso que vai determinar quem é que será o novo primeiro-ministro. Se todos os partidos de direita conseguirem entrar, então Netanyahu será primeiro-ministro, se um não conseguir mas um dos coligados com Gantz também não conseguir então não sei, há dezenas de possibilidades e a margem de erro de todas as nossas sondagens é precisamente 3%.” Combinados, o bloco da direita pode conseguir 66 assentos, o que deixa o bloco de Gantz com apenas 54, segundo o “Haaretz”.
Os rivais: Netanyahu (esquerda) e Gantz
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Em 1993, Adam Keller fundou com Uri Avnery, célebre escritor, deputado e ativista falecido no ano passado, a Gush Shalom, uma das mais influentes organizações em luta pela criação de um Estado palestiniano em todo o mundo. Pede que nos encontremos no café Landwer, o primeiro grande café da cidade, construído por uma família fugida dos nazis em 1933. A própria cidade de Telavive tinha pouco mais de 20 anos quando este espaço abriu e não era a metrópole que é hoje. Nas papelarias da cidade vendem-se postais a preto e branco onde se vê um grupo de homens e mulheres e depois só dunas de areia a toda a volta. As legendas dizem coisas como “Dia da formação de Telavive” ou “Telavive, 1909”.
Keller é um de muitos israelitas, incluindo membros das Forças Armadas, que ao longo do tempo se foram tornando objetores de consciência à ocupação dos territórios palestinianos. Não faz dele matéria-prima rara mas de certa forma faz dele uma relíquia porque anda nesta luta há mais tempo que a maioria, desde o fim dos anos 60. Em 1988, durante a primeira intifada, Keller foi acusado de “insubordinação” e “difusão de propaganda prejudicial à disciplina militar” porque uma noite saiu da camarata e escreveu, em mais de 100 tanques e outros veículos militares, a frase “soldados das IDF, recusem-se a ser opressores, recusem-se a servir nos territórios ocupados”.
O ENCONTRO NA CAVE NO PORTO DE JAFFA
Aos 15 anos, conta Keller, “houve uma coisa que mudou tudo”. Um aluno mais velho do liceu onde estudava, em Telavive, foi dizer-lhe para aparecer naquele dia, pelas nove da noite, numa garagem perto do porto de Jaffa, a zona sul da cidade, primeiro bairro judeu daquilo que hoje é Israel. “Não me disse o que era, só disse que não podia perder aquele evento.” Keller entrou então com mais alguns colegas naquela cave e o convidado na noite era um soldado israelita desertor que passou algumas horas a desfiar os horrores - perpetrados por soldados israelitas - que estavam a acontecer em Gaza e noutros territórios. “Éramos uns 25 e de repente aparece um homem fardado. Começa a falar de uma brutalidade que nós nem sabíamos que estava a acontecer porque essa Intifada que se seguiu à anexação não era noticiada, hoje não conta como uma das ‘oficiais’ e foi severamente reprimida. Ele contou que os soldados estavam a matar pessoas no meio da rua, que destruíram ruas inteiras, que torturavam, que iam buscar pessoas a meio da noite para as executarem sem um julgamento.” Adam e os amigos não queriam acreditar que os seus compatriotas fossem capazes de tal coisa mas muitos rumores começaram aí a fazer sentido. “Sim, nós fazemos isto e eu mesmo as fiz e agora não consigo dormir e estou aqui a falar convosco”, foi a última frase do soldado.
Os ativistas que o tinham convidado tinham vindo armados com um conjunto de letras metálicas como aquelas que eram usadas para imprimir jornais e em duas horas tinham impresso milhares de panfletos “com o discurso - quase palavra por palavra - do jovem soldado”. Fizeram duas mil cópias e saíram pela noite, em grupos de dois, para colocar nas caixas do correio dos cidadãos de Telavive palavras que eles nunca antes tinham lido.
Mas Keller nem sempre foi tão ferozmente contra a política de expansão territorial que tem vindo a ser ora encorajada ora tolerada por sucessivos governos israelitas. Talvez porque era muito novo quando a Guerra dos Seis Dias terminou. Tinha 12 anos e conta que o pai levou a família a visitar “os novos territórios”: “O meu pai alugou um carro para levar a família a ver o que tínhamos conquistado. Foi uma espécie de viagem de estudo que ao mesmo tempo me pareceu como se fossemos os novos proprietários de um prédio e tivéssemos ido investigar o progresso das obras”.
“O argumento mais básico da direita é que não temos, do outro lado, um parceiro disponível para a negociação”, diz Keller, e esta perceção é culpa dos políticos israelitas, aponta. “O falhanço na implementação dos Acordos de Oslo ajudou imenso a direita. Não creio que esteja a dar-vos uma grande notícia quando digo que a esquerda israelita está em maus lençóis.” Quando a esquerda quer chegar ao poder, explica, “o que fazem é chamar um general que tenha estado em alguma guerra contra os palestinianos para dizer que não, eles não estão a pensar em invadir Israel, que não são perigosos e outras coisas assim”. E de facto o maior sucesso da esquerda foi com Rabin, “também ele general e um dos que ajudaram a conquistar os territórios palestinianos”. Tal como com Gantz, Rabin também tinha o seu lado belicista. “Rabin mandou-nos partir os ossos dos palestinianos, eu estava lá quando ele disse isso.”
Yitzhak Rabin em 1968
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Depois de Rabin, toda a esperança ficou sobre os ombros de Ehud Barak, eleito primeiro-ministro em 1999 mas também ele só ajudou à agonia da esquerda. “Pensámos que ele seria uma espécie de reencarnação de Rabin e que continuaria o seu trabalho, mas ele mais que ninguém é responsável pelo estado em que está a esquerda porque em 2000 foi encontrar-se com Arafat e não conseguiu assinar um acordo, culpando os palestinianos pelo falhanço e semeando ainda mais desconfiança entre os povos.”
A história de Camp David, a história verdadeira do que lá se passou, ainda ninguém contou, mas quase 20 anos após esse falhanço algumas pessoas decidiram partilhar com a imprensa as suas versões do que se passou. A delegação de Barak alegou na altura que Arafat teria planeado antecipadamente explorar o fracasso da cimeira para lançar a segunda intifada e isso foi como uma bomba na confiança da opinião pública israelita no processo de paz. Shimon Peres disse mais tarde que Barak conseguiu transformar o fracasso de Camp David numa ideologia, martelando sempre na mesma ideia que “do outro lado não há ninguém” com quem os israelitas se possam entender. O problema é que conselheiros e membros da Mossad na altura disseram ao jornal “Haaretz” que não tinham, na altura, qualquer informação de que fosse essa a intenção do líder palestiniano - nem que estivesse a tentar destruir Israel com o “grande retorno” dos refugiados palestinianos espalhados pelo mundo, como também foi dito na altura. A Intifada aconteceu de facto, quando Ariel Sharon decidiu visitar, em setembro de 2000, o Monte do Templo, em Jerusalém. “Barak voltou e foi como se o Papa tivesse ido ao céu e voltasse para dizer que não há Deus. Como é que ficava a Igreja Católica?”, pergunta Keller.