Não é ficção: a China quer pontuar todos os comportamentos de cada cidadão
Num futuro próximo, além do bilhete de identidade, os chineses terão um código que atesta a sua credibilidade
Num futuro próximo, além do bilhete de identidade, os chineses terão um código que atesta a sua credibilidade
Jornalista
Imagine um país onde, para poder fazer um seguro, matricular um filho numa escola privada ou comprar um bilhete de TGV, o cidadão vê a sua vida escrutinada ao mais ínfimo pormenor. Os sítios de internet que consulta, o que faz nos tempos livres, como se saiu nos exames médicos, que jornais compra, como se comporta ao volante, se costuma dar sangue — tudo é levado em linha de conta na hora de autorizar ou rejeitar o pedido.
Esse país já existe — é a República Popular da China — e essa forma de intrusão cívica está em acelerada concretização, através do Sistema de Crédito Social, um mecanismo de pontuação dos cidadãos que ora os recompensa ora os penaliza em função de comportamentos. “O Sistema de Crédito Social não é ficção científica, existe realmente”, diz ao Expresso a investigadora Meia Nouwens, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres. “Através dele, uma grande quantidade de informação pessoal, registos, geolocalização com recurso a câmaras e check-ins, transgressões da lei ou maus comportamentos diminuem a pontuação de um indivíduo. Nalguns casos, as pontuações decorrem de registos, noutros são calculadas por algoritmos, embora não haja transparência em relação à forma como os algoritmos fazem os cálculos.”
Muitas horas a jogar no computador podem rotular alguém de ocioso. Se atravessar a rua fora das passadeiras pode passar por indisciplinado. Já comprar artigos para bebé contribui para uma imagem responsável. Andar a pé indicia hábitos saudáveis. E há que ter cuidado com os amigos das redes sociais: maus exemplos podem prejudicar quem apenas os tem na lista.
A Baihe, maior plataforma chinesa de encontros, já permite que os utilizadores publiquem a sua pontuação. A aplicação Honest Shanghai, onde são avaliadas experiências — como comer num restaurante caro, por exemplo —, já usa tecnologia de reconhecimento facial. “A melhor forma de descrever o que o crédito social faz é dizer que é uma forma de tecnologia aumentada de ‘gestão social’”, diz Meia Nouwens.
De iniciativa governamental, este projeto ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da chamada China Continental — para já, Macau e Hong Kong ficam de fora. “O crédito social é uma ferramenta que torna o controlo político do Partido Comunista Chinês [PCC] inseparável do desenvolvimento económico e social da China”, explica ao Expresso a analista de política chinesa Samantha Hoffman, colaboradora do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas. “Foi planeado para supervisionar, moldar e classificar comportamentos através de processos económicos e sociais.”
Este tipo de controlo — efetuado por agências estatais e por empresas privadas — não é uma inovação da liderança de Xi Jinping. No passado, cada cidadão tinha um ficheiro pessoal permanente (dang’an) que descrevia todo o seu percurso, nomeadamente a nível escolar e profissional. Hoje, a mais-valia é a tecnologia e “a capacidade de analisar grandes quantidades de dados em todo o país de uma forma mais holística e rápida”, explica Meia Nouwens. “Ainda não existe um sistema nacional único — é uma tarefa muito grande. Mas está decerto a ser testado.”
Em várias localidades chinesas, há programas-piloto a serem experimentados. Um dos laboratórios é a cidade de Rongcheng, na ponta leste da China. A cada um dos 740 mil residentes adultos é atribuído um crédito de 1000 pontos, que vai aumentando ou diminuindo consoante o seu comportamento. Uma multa de trânsito desconta cinco pontos. Atos heroicos acumulam 30 pontos.
Na via pública, há retratos enormes dos ‘cidadãos-modelo’. Um deles é a viúva Yuan Suoping, de 55 anos, que continuou a cuidar da sogra acamada após a morte do marido.
Em Shenzhen, no sul, há câmaras de vigilância com tecnologia de reconhecimento facial que identificam, por exemplo, peões que atravessam as ruas fora das passadeiras. Instantaneamente, são enviadas multas por mensagem. A tecnologia é desenvolvida pela startup local Intellifusion.
Na aldeia de Jiakuang Majia, no Leste, a pontuação é gerida de forma mais artesanal. Há fichas em papel onde funcionários do Estado vão fazendo contas: montar novos cestos no campo de basquetebol, oferecer uma televisão ao centro cívico, fazer voluntariado ou ter um filho a servir no Tibete dão pontos.
A nível nacional, este sistema já deixou em terra 5,4 milhões de chineses que pretendiam viajar em comboios de alta velocidade. Outros 17 milhões foram impedidos de comprar bilhete de avião. Em 2013, a justiça chinesa aprovou uma “lista negra” de devedores e estima-se que seja esse ranking que esteja na origem dessas proibições.
Para Pequim, há que promover a confiança na sociedade e na economia. Samantha Hoffman faz outra leitura: “O crédito social está ligado ao conceito de ‘construção espiritual da civilização’. A sua origem remonta à propaganda dos anos 1980 em resposta à desilusão popular com o PCC e à atração por ideias estrangeiras”. O objetivo é “impedir que versões alternativas da ‘verdade’ ameacem o poder do partido”.
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