“Honrado cavalheiro, que comportamento é esse? Se exercer a arte da paciência verá que toda esta coisa do debate parlamentar se torna muito mais airosa”. “Cale-se homem! Controle-se!”. “Comporte-se como um adulto e se vir que isso está além das suas posses intelectuais então abandone esta Câmara que de certo conseguiremos dar conta do recado sem o senhor”. Não recebendo dos honrados deputados a calma pretendida, John Bercow acionou o megafone que tem nas cordas vocais e gritou, para deleite dos fãs que vai reunindo pela Europa fora: “Ordem! OOOOOORDEEEEMM!”
Estas são cenas habituais na Câmara dos Comuns britânica e têm-se tornado rotina à medida que se multiplicam as horas gastas em debates sobre o caminho para o Brexit. Como uma espécie de buraco negro, o tema tem consumido toda a energia política do país e os deputados têm demonstrado a sua frustração gritando de um lado para o outro das bancadas parlamentares.
Bercow também gosta de lançar os seus pauzinhos secos para a fogueira - e recentemente fez arder um precedente constitucional que o pode impedir de chegar à Câmara dos Lordes. Mas já lá vamos, porque o passado do ‘speaker’, que já está a ser descrito na imprensa internacional como o único garante de sanidade em meio milhar de deputados britânicos, é tão tumultuoso como o seu presente.
Mais poder para a legislatura
Apesar de ser visto como demasiado próximo dos europeístas numa altura em que a política britânica atravessa o momento de maior polarização de que há memória, é-lhe reconhecido pelo menos um mérito. Desde que Bercow chegou, quase todos os deputados têm tempo de antena para questionar os ministros e os ministros são chamados muito mais vezes para responder por coisas que dizem ou decidem. “Não é muito fácil para quem está no governo, mas é ótimo para a democracia”, diz ao Expresso Andrew Gimson, autor de várias obras sobre a vida política britânica e alguns dos seus protagonistas mais garridos.
Para o autor, o grande legado de Bercow será precisamente esse: o de recusar a indolência dos parlamentares e dos ministros. “Bercow é naturalmente um dissidente, que gosta de provocar as pessoas. Enquanto jovem fê-lo mostrando-se bastante à direita e agora enfurece os conservadores porque parece que está sempre do lado do ‘labour’. Um dos seus maiores méritos é que ele protege a legislatura, em vez de dar razão ao executivo”, diz numa entrevista por email.
Um passado pouco simpático
Há 37 anos, John Bercow era um jovem de 19 da direita dura, ocupado a escrever panfletos para o Monday Club, um grupo que tinha como objetivo principal impedir os cidadãos de países da Commonwealth de imigrarem para o Reino Unido. Poucos anos mais tarde viria a dirigir a Federação de Estudantes Conservadores que foi encerrada pela própria casa-mãe conservadora por ter conduzido uma campanha pró-Apartheid na qual um dos slogans era “Mandela à forca!”
Teve de garantir o seu lugar na escola, no bairro, no mundo da política, através apenas da sua inteligência já que cresceu pequenino, magrinho e cheio de acne. Com o raciocínio destruía os 'bullies' na escola, mas toda a gente o odiava. Bobby Friedman escreveu, numa biografia do 'speaker', que, “possivelmente para compensar o seu tamanho”, Bercow costumava apontar os erros de linguagem que os seus colegas de turma cometiam ao ler os clássicos da literatura britânica e que, depois, quando era a sua vez de ler, lia a lista de erros que tinha apontado durante a aula. “Isto contribuiu para que fosse considerado um rapazinho odioso”, escreve Friedman.
Ainda se tentou afirmar como atleta e chegou a ser campeão de ténis pelo distrito de Middlesex, mas os problemas de bronquite e asma acabaram por afastar o sonho. Continua um doente pelo ténis. Ele próprio já disse que grita mais a ver a Taça Davis do que no Parlamento.
Mas as coisas mudam - e como mudaram para Bercow, o vociferante ‘speaker’ de 55 anos. Em vez de ir da esquerda revolucionária para aquele centro meio amorfo ou mesmo para um centro com uma inclinação para o conservadorismo, o percurso natural de uma boa parte dos políticos, Bercow tornou-se um conservador muito próximo dos trabalhistas. O ‘click’ deu-se com Tony Blair e o seu ‘New Labour’, talvez a mais bem-sucedida reformulação ideológica na história de um partido europeu. Mas tudo começou quando se casou com Sally Illman, uma ativista trabalhista. Ela própria tinha vindo da direita, daquela militante até, mas acabou por se ir aproximando à esquerda, embalando nesse caminho um homem apaixonado por ela.
Alguns conservadores que ao longo dos anos se têm incompatibilizado com Bercow gozam-no, dizendo que “o problema do John é que descobriu o sexo e o Partido Trabalhista ao mesmo tempo”. Ele também tentou pouco agradar-lhes. Quando David Cameron concorreu à liderança do partido, Bercow estava sempre a referir a educação extremamente privilegiada do antigo primeiro-ministro como traço definidor de toda a sua personalidade. No Parlamento, como deputado, várias vezes fez intervenções defendo homens e mulheres do ‘Labour’.
Credenciais trabalhistas não lhe faltam: as suas origens são humildes, é filho de um condutor de táxis e de uma secretária - mas é filiado no Partido Conservador até hoje e foi pelos conservadores que se tornou deputado por Buckingham em 1996. À seleção dos candidatos para essa eleição chegou de helicóptero, mesmo no último minuto antes de fecharem as listas. “As mil libras mais bem gastas da minha vida”, disse aos jornalistas quando aterrou.
Portanto, vê-lo apoiar a lei de Harriet Harman para a discriminação positiva ou preparado para se juntar a Diane Abbott na sua demanda por listas partidárias totalmente constituídas por negros é uma viagem pelo menos tão impetuosa. Mas há uma mancha no seu percurso parlamentar: foi apanhado no escândalo das despesas dos deputados e teve que devolver mais de seis mil libras ao Estado. Só a reparar uma sanita e um lavatório gastou mais de mil.
Bercow não parece ter medo de falar dos momentos menos inspirados do seu passado político. “Até homens relativamente jovens adquirem algum juízo com o passar dos tempos”, disse ele quando tomou a cadeira de Presidente da Câmara dos Comuns, em 2009, onde chegou com apenas 45 anos.
“Às vezes parece um professor de liceu de segunda categoria”
Sempre foi barulhento e até ofensivo. Diz-se que pratica, fora do Parlamento, a nobre arte britânica da utilização inteligente de palavrões cabeludos e quando o ouvimos berrar “Era enfiá-lo num manicómio”, como fazia amiúde antes de passar à presidência do Parlamento, não é muito difícil acreditar nas histórias. As frases que dão início a este texto são apenas exemplos daquelas que já se ouviram no parlamento. Uma vez, dirigindo-se a Neil Kinnock, histórico trabalhista, disse: “Esses gritos e gesticulações configuram um comportamento que está muito aquém daquilo que lhe pagam”. E já se perderam a conta às vezes em que Bercow grita “Zen!” no meio do Parlamento, em contradição com o que a palavra supostamente quer significar.
“Por vezes é mesmo muito mal educado - parece um professor do liceu de segunda categoria, sempre zangado, apaixonado pelo som da própria voz, fazendo piadas à custa dos seus alunos. Às vezes é muito pomposo e maniento, mas enérgico também, e trouxe relevância aos Comuns”, diz Gimson, cujo último livro é a biografia de Boris Johnson (“Boris: The Adventures of Boris Johnson”), outra personagem nada comedida da política britânica.
Câmara dos Lordes em risco
Bastante popular fora de portas, nem toda a gente lhe acha a mesma piada em Westminster. Na quinta-feira começaram a surgir boatos de que os conservadores poderiam impedir a sua passagem - tradicionalmente automática depois de findo o mandato como ‘speaker’ - à Câmara dos Lordes. Tudo porque Bercow não tem sido tão imparcial como é exigido a um homem que é o árbitro do Parlamento. Fontes de Downing Street disseram ao diário “The Times” que “não vale a pena fingir que ele é muito popular entre os ministros” e que “é perfeitamente possível bloquear ou recusar a sua nomeação para a Câmara dos Lordes se Theresa May decidir nesse sentido”. Se isso acontecer, Bercow será o primeiro ‘speaker’ em 230 anos a não progredir para a câmara alta do Parlamento britânico.
O que é que aconteceu? Bercow - e quem se espanta com isso? - decidiu contornar um século ou dois de convenções parlamentares e conceder uma emenda a uma moção de um deputado anti-Brexit quando isso não se pode fazer. Bercow permitiu um voto a uma emenda do rebelde ‘tory’ Dominic Grieve que faz com que May tenha que apresentar um “plano B” para o Brexit já na próxima segunda-feira e não no prazo de três semanas previamente acordado. Os Comuns entraram num imenso alvoroço e desde aí não pararam de apontar flechas à “parcialidade europeísta” de Bercow que, de resto, não faz segredo do facto de ter votado pela permanência do Reino Unido na União Europeia.
Em mais uma cena bizarra no parlamento, Bercow respondeu da seguinte forma a um deputado que o acusava de conduzir um carro com um autocolante anti-Brexit: “Honrado cavalheiro, esse autocolante não é meu, está no carro da minha mulher e com certeza não está a querer dizer que a mulher é propriedade do homem e não tem direito à sua opinião”.
Quando chegou ao cargo passou a vestir fato em vez da espécie de ceroula e peruca que antes dele se usava - coisa que chocou meio país. Gimson diz que, como é “muito tradicionalista”, gostava de “ver voltar a peruca” que é como quem diz, “uma forma mais graciosa de fazer as coisas”, mas garante que quem vier a seguir a Bercow já não vai poder recuar naquilo que ele fez de mais essencial.
Apesar de o parlamento sempre ter sido soberano, os membros da Câmara baixa andavam, eles mesmos, um pouco cabisbaixos. “Os membros da Câmara voltaram a sentir-se encorajados para manterem um controlo apertado ao Governo, o que também torna as sessões parlamentares muito mais apetecíveis para o eleitorado. Isso, se não houvesse mais nada, já é uma coisa muito boa, já é um grande mérito”, disse ao Expresso.
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